27 outubro, 2006

 

Despenalização do aborto


Opção de cada um mas mais de alguns.

Porque não é um tema fácil, aqui seguem as escolhas de algumas pessoas com opções diversas.
Talvez assim possamos rever as posições pessoais sobre a matéria.

Contra:
http://www.bloguedonao.blogspot.com/
http://www.antiaborto.blogspot.com/

A favor:
http://despenalizar.blogs.sapo.pt/
http://www.redejovensigualdade.org.pt/blog/

Ou será ao contrário ? Não sei.

E os do a favor contra os que são contra. Mas com humor:
http://www.youtube.com/watch?v=NXt8F7aw2LA

Resultados:
http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=278759&idselect=10&idCanal=10&p=200

Comments:
"Movimentos a favor do 'sim' são os mais numerosos na campanha



Joana Pereira

A dois meses do referendo sobre o aborto, marcado para o próximo dia 11 de Fevereiro, são já sete os movimentos cívicos que apresentaram publicamente vontade de participar na campanha. Exactamente o mesmo número de grupos de cidadãos que, aquando da consulta popular de 1998 sobre a interrupção voluntária da gravidez tiveram voz activa. Mas com uma diferença importante: se há oito anos se registou uma predominância de movimentos que apelavam ao "não" no referendo (quatro contra três), desta vez aqueles que defendem o "sim" no boletim de vo-to estão em maioria, pelo menos para já.

Apesar de nenhum deles ainda estar inscrito na Comissão Nacional de Eleições - cada movimento necessita de reunir pelo menos cinco mil assinaturas para ser legalizado e poder participar activamente na campanha - e de ainda se poderem apresentar mais grupos de cidadãos, a balança parece pender visivelmente para um dos lados: contra os cinco movimentos de cidadãos que defendem o "sim" à despenalização do aborto, existem apenas dois movimentos que apelam ao "não" no boletim de voto. O que, quantitativamente, poderá significar um substancial desfasamento na participação das duas facções na campanha, nomeadamente quanto aos tempos de antena na rádio e televisão.

Segundo a Lei Orgânica do Referendo, em período de campanha referendária os quinze minutos diários dos tempos de antena na televisão pública e nos canais privados serão "repartidos entre os intervenientes em dois blocos, de forma igual". Num primeiro período de sete minutos e meio, têm voz os partidos com assento na Assembleia da República que entenderem fazer campanha no referendo.

O segundo bloco terá de ser repartido equitativamente pelos movimentos cívicos e pelos partidos sem representação parlamentar. Quer isto dizer que, se se considerarem os sete movimentos até agora apresentados e ainda as várias formações políticas mais pequenas, cada um terá direito a ocupar poucos segundos com os seus spots de campanha.

Mas, ainda assim, os argumentos do lado do "sim" à despenalização poderão garantir mais tempo de antena. Aos fins-de-semana, altura em que os tempos de antena alcançam os 30 minutos, a discrepância de espaço mantém-se.

Mas, a avaliar pelos objectivos de campanha dos movimentos, não será a televisão o principal veículo de opiniões.

Sessões de esclarecimento

Todos os grupos de cidadãos são unânimes em declarar a opção por debates e sessões de esclarecimento. Vasco Freire, mandatário dos Médicos Pela Escolha (MPE) - grupo de profissionais de saúde que apela ao "sim" ao aborto - considera que, apesar de já existirem "ideias e pessoas a trabalhar nos spots televisivos", é à "pluralidade de debates" que será dada total relevância. "Queremos promover debates entre todos os profissionais de saúde, não apenas médicos, e pessoas mais velhas, com mais experiência", conta o médico.

Também o Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim (MCRS) pretende encetar um "conjunto de actividades que sirvam para esclarecer as pessoas", afirma a mandatária Maria José Magalhães.

O mesmo propósito demonstra o Movimento Voto Sim que, com uma longa lista de adesões, apresenta 67 nomes de deputados das bancadas do PSD, PS e BE - parlamentares que, já se sabe, votam da mesma forma no referendo mas apresentam visões distintas quanto ao que fazer caso o referendo não seja vinculativo, isto é, se não votarem mais de metade dos cidadãos inscritos no recenseamento.

Já o grupo de cidadãos Em Movimento Pelo Sim, no seu manifesto, garante que irá dinamizar diversas iniciativas "como debates, reuniões, almoços-convívios, concertos, conferências de imprensa e teatro em torno da campanha".

O movimento dos Jovens Pelo Sim, do qual fazem parte várias personalidades culturais da sociedade portuguesa e militantes de várias juventudes partidárias, pretende "mobilizar um discurso jovem que vá de encontro à linguagem própria da juventude". Na sessão de lançamento, o mandatário Jorge Nuno Sá, militante da Juventude Social-Democrata e antigo deputado à Assembleia da República, declarou que é necessário "lançar o debate para que, ao contrário do que se verificou em 1998, não haja falhas na mobilização da juventude".

Defensores do 'não'

Pelo lado do "não" ao aborto, o movimento Aborto a Pedido? Não!, com sede em Coimbra, também "procurará contribuir para o debate, de forma serena e determinada, promovendo o esclarecimento dos aspectos éticos, médicos, sociais e jurídicos relacionados com a questão do aborto e a sua liberalização".

Por seu turno, o médico João Paulo Malta, mandatário da Plataforma Não Obrigada, garante que as "acções de campanha irão decorrer de forma planeada e faseada", mas prefere não revelar os pormenores: "Permitam-me que reserve as surpresas para essa altura."

Partidos

Em relação aos partidos políticos, o PSD é mesmo o que apresenta uma posição mais recuada: o seu líder, Marques Mendes, já disse que vai votar "não", mas o partido dá liberdade de voto e nem sequer tem posição oficial sobre o assunto. O PS também dá liberdade de voto aos seus militantes, mas assume a posição pelo "sim". Claramente deste lado estão o PCP e o Bloco de Esquerda. Tal como claramente pelo "não" está o CDS/PP, liderado por Ribeiro e Castro, que vai fazer campanha activa."

DN, 11-12-2006, pág. 8

http://dn.sapo.pt/2006/12/11/nacional/movimentos_a_favor_sim_os_mais_numer.html
 
Sim acusa não de 'clonar' movimentos antiaborto

Paula Sá e Pedro Correia

Quinze movimentos favoráveis ao "não" e cinco pelo "sim". Salvo alguma surpresa de última hora, pois o prazo para a inscrição na Comissão Nacional de Eleições só termina amanhã, é este o número de organizações criadas para o referendo sobre o aborto que vão para o terreno em defesa das suas teses (ver páginas 4 e 5). A campanha oficial decorre de 30 de Janeiro a 9 de Fevereiro, mas já está tudo a mexer para levar os portugueses a optar na consulta do dia 11, esgrimindo-se os primeiros argumentos mais contundentes.

Da parte do "sim", avança-se uma explicação para o facto de os movimentos pelo "não" serem em número três vezes superior. "É a repetição de uma estratégia usada com frequência pelo PCP, que multiplicava organizações como se fossem clones. Esta estratégia nem sempre produziu grandes resultados", observa Helena Matos ao DN. Defensora do "sim", tal como já sucedeu no referendo de 1998, esta jornalista receia a "banalização da figura do referendo", sublinhando que a questão do aborto já devia há muito ter sido decidida no Parlamento. Subsiste, nesta matéria, "um vazio legal" que preocupa esta activista do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim.

"É indiferente o número de movimentos. O que conta é a mobilização dos cidadãos", diz ao DN Miguel Relvas. Ex-secretário-geral do PSD, este deputado que em 1998 não exprimiu opinião sobre o assunto integra hoje o Movimento Voto Sim, de que é um dos mandatários. Assume esta posição por contestar a "legislação anacrónica" que subsiste em Portugal: "O princípio da criminalização da mulher não tem razão de ser." O catedrático Nuno Grande, do movimento Médicos pela Escolha, também vota sim. "Por imperativo de consciência", justifica ao DN.

Isilda Pegado, advogada e ex-deputada independente da bancada social-democrata, não esconde a "alegria enorme" que sente ao ver constituídos 15 movimentos pelo "não", quando em 1998 apenas houve quatro. Presidente da Federação Portuguesa pela Vida e membro da Plataforma Não Obrigada, rejeita a ideia da clonagem dos grupos cívicos que se vão bater contra a despenalização da IVG: "A sociedade sentiu que era preciso mobilizar-se. Trata-se de uma verdadeira descentralização e a única forma de chegar ao País real é através de movimentos de raiz local."

Terá perpassado pelos defensores do "não" o medo de que o "sim", passados oito anos do último referendo sobre o aborto, tenha singrado junto da opinião pública? E daí a mobilização em massa (foram entregues mais de 120 mil assinaturas na CNE)? "Não há medo nenhum!" - garante Isilda Pegado. O que existe, diz, "é uma situação diferente em termos políticos. O primeiro-ministro, a maioria do Governo e o partido no poder, o PS, defendem oficialmente o 'sim'. O que não aconteceu em 1998. Esta realidade tem muito peso, como é óbvio".

O professor universitário João César das Neves, um convicto defensor da vida desde a concepção, e por isso mandatário do movimento Diz Que Não, desvaloriza o empenho do poder na campanha do "sim" e não encontra relação directa com a "vibração" da sociedade perante este "tema civilizacional". Em oito anos de debate, os movimentos, sobretudo os do "não", estão, na sua opinião, "mais oleados" e conscientes de que o que está em causa no referendo é a estrutura legal do País.

DN, 11-1-2007, pág. 3 a 5

http://dn.sapo.pt/2007/01/11/tema/sim_acusa_de_clonar_movimentos_antia.html
 
Movimentos reúnem 260 mil assinaturas

Martim Silva

Terminou ontem mais uma etapa do processo que vai levar à realização, a 11 de Fevereiro, do terceiro referendo nacional em Portugal, o segundo sobre a despenalização do aborto.

E terminou com uma nota significativa: em relação à consulta de 1998, o número de movimentos de cidadãos que formalizaram a participação na campanha (tendo, por exemplo, direito aos tempos de antena legais nas televisões e rádios) subiu de sete para 21, triplicando. E as assinaturas que estes levaram a sustentá-los passaram de 50 mil para mais de 260 mil. Cinco vezes mais!

Jovens pelo Sim e Diz Não à Discriminação foram os dois últimos grupos de cidadãos a formalizar o processo, precisamente ontem, no último dia em que tal era permitido.

Cabe agora à Comissão Nacional de Eleições, onde o processo é centralizado, avaliar a documentação entregue e validar a participação dos movimentos na campanha - o mínimo legalmente exigido são cinco mil assinaturas correctas.

O número de assinaturas recolhido indica que "os grupos de cidadãos e os partidos se mobilizaram para trazerem o maior número de subscrições, dando a noção de grandeza da votação que poderá haver", afirmou ontem mesmo à Lusa o presidente da CNE, João de Barros Caldeira.

Recorde-se que o referendo de 1998 registou uma reduzida taxa de participação, de cerca de 30%.

Além das mais de duas dezenas de movimentos (três quartos deles favoráveis ao "não" na consulta popular), oficializaram a presença no período de campanha outros nove partidos: os seis que têm assento no Parlamento (PS, PSD, PCP, CDS, BE e Verdes) e ainda o Partido Popular Monárquico, o Partido Humanista e o Partido Nacional Renovador. Outras forças, como a Nova Democracia, de Manuel Monteiro, ou o histórico MRPP, optaram por ficar de fora.

Financiamento proibido

Além da entrega das assinaturas, terminou também ontem o prazo para a entrega dos respectivos orçamentos de campanha. Neste caso, há que ter em atenção que, como confirma uma deliberação da Comissão Nacional de Eleições, os partidos políticos estão proibídos de dar contribuições financeiras para a campanha dos movimentos cívicos, que devem encontrar outras formas de financiamento.

DN, 13-1-2007, pág. 6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/13/nacional/movimentos_reunem_mil_assinaturas.html
 
Eu não sou parvo..."

João Pedro Henriques

José Sócrates manifestou-se anteontem à noite preocupado com a possibilidade de o resultado do referendo sobre a despenalização da IVG ser visto como uma espécie de sondagem à sua governação do País.

"Não sou parvo", disse o líder socialista, no contexto de uma reflexão sobre a importância do referendo "na avaliação desta legislatura". Sócrates falava numa reunião da Comissão Política Nacional do PS (alargada a dirigentes distritais e autarcas) realizada na sede do Largo do Rato, em Lisboa.

Segundo participantes na reunião, que falaram ao DN pedindo o anonimato, a afirmação foi entendida como uma forma de o secretário--geral do PS tentar mobilizar o partido para um empenhamento total na batalha pela vitória do "sim". Sócrates quis dizer que no dia 11 de Fevereiro estará algo mais em causa do que apenas a despenalização do aborto - é a própria saúde da governação. O PS e o seu Governo sobreviveram a duas derrotas consecutivas (autárquicas e presidenciais) mas uma terceira tornaria tudo bastante mais difícil. Embora tencione participar na campanha, Sócrates reforçará em simultâneo a sua agenda como primeiro-minaistro. A ideia é, precisamente, tentar fazer assentar a ideia de que a governação é uma coisa e o referendo outra, não havendo contágios políticos entre ambas. E, à cautela, evitar o desgaste da imagem.

Mais uma vez, o líder socialista aconselhou vivamente os dirigentes do PS a evitar ao máximo radicalizações face à campanha do "não". Advertiu, no entanto, que isso não pode significar menos empenhamento.

À saída da reunião, falando a jornalistas, o porta-voz do partido, Vitalino Canas, defendeu a "mobilização máxima" do partido em defesa do "sim". Os socialistas, disse, "aprenderam a lição da derrota" no referendo de 1998: "A máquina do PS não ficará indiferente ao resultado do referendo de 1998 porque compreendemos bem a lição de 1998. Havia então uma grande confiança na vitória do 'sim'."

Seguindo já a indicação de evitar confrontos com o "não", Vitalino Canas escusou-se a comentar as posições da Igreja Católica. O PS, afirmou, "não se pronunciará sobre a actuação de outras entidades".

Ao mesmo tempo, desvalorizou o facto de existirem mais movimentos pelo "não" do que movimentos pelo "sim" (o que, apesar de tudo, não se reflectirá nos tempos de antena, equilibrados entre uns e outros). No entender do porta-voz do PS, "um grande número de movimentos até poderá contribuir para a dispersão da mensagem. Penso que o número de cinco movimentos pelo 'sim' é o adequado", afirmou.

DN, 13-1-2007, pág.6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/13/nacional/eu_sou_parvo.html
 
Ex-ministro da Justiça de Cavaco vai votar pela despenalização do aborto

Pedro Correia

Laborinho Lúcio rompe o silêncio, em declarações ao DN, para revelar o seu sentido de voto no referendo à interrupção voluntária da gravidez do próximo dia 11: vai optar pelo "sim". Ex-ministro da Justiça no último dos governos liderados pelo actual Presidente da República, Cavaco Silva, Laborinho defende a despenalização do aborto por considerar que a actual moldura legal gera "situações injustas para as mulheres", uma vez que "na prática só estão impedidas de fazer o aborto aquelas que não têm condições económicas para interromperem a gravidez num país estrangeiro".

Outro motivo que leva este ex- -membro do Governo social-democrata a votar "sim" é a disparidade do quadro legal português em comparação com o que vigora na esmagadora maioria dos países que integram a União Europeia.

"Na generalidade dos Estados membros da União Europeia, a lei prevê a prática do aborto em situações substancialmente diferentes das portuguesas, o que me levou a reflectir bastante", acentua.

Álvaro Laborinho Lúcio, que tutelou a pasta da Justiça entre 1991 e 1995, continua a ser "frontalmente contra o aborto no plano ético". Mas, na sua opinião, a censura à interrupção voluntária da gravidez "deve colocar-se apenas nesse domínio e não também na sanção penal, que afinal introduz uma situação de profunda desigualdade ao punir apenas, em termos práticos, as mulheres economicamente mais desfavorecidas e sem condições de o praticar em condições aceitáveis".

Em defesa do referendo

Durante o seu mandato ministerial, recorda Laborinho ao DN, registou-se "uma profunda revisão do Código Penal". Mas a moldura penal do aborto manteve-se inalterada porque o então titular da Justiça integrava já nessa época a primeira linha dos defensores do referendo à interrupção voluntária da gravidez - tese que acabou por prevalecer em Junho de 1998, quando se realizou a primeira consulta popular sobre essa tema - ganha tangencialmente pelos defensores do "não", com apenas 30% de participação. A maior taxa de abstenção da democracia portuguesa.

Já nesse referendo Laborinho votou "sim". Mas evitou fazer declarações públicas sobre o tema. Agora, pelo contrário, decidiu não manter segredo sobre a sua opção de voto. Com uma ressalva: "Recuso ter uma atitude militante em defesa da despenalização do aborto." Isto leva-o a permanecer à margem dos cinco movimentos que defendem o voto "sim" no referendo.

Juiz-conselheiro (jubilado) do Supremo Tribunal de Justiça, Laborinho Lúcio integra - como vogal - o Conselho Superior da Magistratura.

Esta tomada de posição do ex-ministro de Cavaco ocorre numa altura em que já são 20 os deputados do PSD que assumem uma posição favorável à despenalização. Entre eles Montalvão Machado, Pedro Duarte (vice-presidentes da bancada), Jorge Neto, Ana Manso, Miguel Relvas, Agostinho Branquinho, Miguel Almeida, Ofélia Moleiro, Arménio Santos e José Eduardo Martins. Em 1998, só quatro deputados do PSD assumiram votar "sim".

DN, 13-1-2007, pág. 6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/13/nacional/exministro_justica_cavaco_votar_pela.html
 
Jovens querem combater abstenção

Pedro Correia

Combater os elevados índices de abstenção entre os eleitores com menos de 30 anos é um dos objectivos do movimento Jovens Pelo Sim, que ontem - último dia do prazo legal previsto - se registou oficialmente junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE). "O nosso objectivo é apelar à participação e dizer que vale a pena votar no referendo. Está também na mão da juventude portuguesa conseguir a vitória do 'sim'", declarou o secretário-geral da Juventude Socialista, Pedro Nuno Santos, também porta-voz do movimento, que ontem entregou 14 171 assinaturas à CNE.

Segundo Pedro Nuno Santos, o objectivo dos que votam "sim" é "impedir que mais alguma mulher em Portugal tenha que passar pela humilhação do julgamento e que mais nenhuma mulher seja sujeita ao drama do aborto clandestino".

Votar pela despenalização, segundo o escritor José Luís Peixoto, "é tomar uma decisão pela vida", mas "pela vida consciente, uma vida que valha verdadeiramente a pena ser vivida". Em declarações ao DN, este romancista considerou que "não é solução trazer ao mundo crianças que vão ter uma vida absolutamente sem condições".

José Luís Peixoto, um dos mais conhecidos autores da nova geração de ficcionistas portugueses, é uma das figuras mediáticas que integra o movimento Jovens Pelo Sim. O cantor Pacman, o actor e apresentador José Pedro Vasconcelos e a a actriz Joana Seixas são outros nomes que integram este movimento.

Vários intérpretes de telenovelas juvenis ou de longas-metragens há pouco exibidas nas salas de cinema adeririam igualmente ao Jovens Pelo Sim. Entre eles, Joana Solnado, Rodrigo Menezes, Diana Chaves, Inês Castel-Branco, Inês Simões, Filipe Duarte e Sandra Celas.

"O aborto já se pratica actualmente, embora em condições precárias, à margem da lei. As mulheres que se vêem forçadas a fazer abortos acabam por praticá-los em condições nada boas para elas", salienta José Luís Peixoto. O apoio ao voto "sim" a 11 de Fevereiro não é a primeira intervenção numa campanha do escritor, que em 2005 apoiou a candidatura do Bloco de Esquerda às legislativas e em 2006 foi um dos subscritores da candidatura presidencial de Francisco Louçã.

"A criminalização do aborto condena todos os anos milhares de mulheres a um caminho de clandestinidade, a que se associam perigos graves para a sua vida, saúde física e psíquica. É um flagelo que afecta em particular jovens e adolescentes", assinala o movimento Jovens Pelo Sim no seu manifesto.

DN, 13-1-2007, pág. 6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/13/nacional/jovens_querem_combater_abstencao.html
 
Se o 'sim' não ganhar o PS também será penalizado"

Paula Sá

O PS arrancou ontem oficialmente para a campanha do "sim" ao referendo sobre o aborto num local simbólico, o Barreiro. Terra do distrito de Setúbal, o que mais se rendeu à despenalização proposta na consulta popular de 1998 e que se repete ipsis verbis a 11 de Fevereiro . "Depois do envolvimento do PS, que tinha este compromisso eleitoral, se o 'sim' não ganhar também o PS será penalizado." Este apelo à mobilização do partido foi feito por Edite Estrela dois dias depois de o líder do partido ter expressado o mesmo pensamento.

José Sócrates não se encontrava naquela sala dos Bombeiros Voluntários do Barreiro a respaldar as suas palavras. Mas o maquinista da locomotiva para os grandes combates socialistas, de nome Jorge Coelho, membro da Comissão Nacional do partido, estava lá. O discurso emotivo, que arrebata sempre os "amigos" do PS, era indispensável nesta mobilização. "Hipó- critas" foi o primeiro adjectivo que usou para classificar alguns dos que se movem pela campanha do "não", apesar de reconhecer que o PS é um partido também ele dividido neste assunto. "Uma das minhas grandes candidaturas é viver. Eu adoro a vida. Não aceito que eu, que defendo o 'sim', possa ser atacado por estar a pôr em causa a vida de alguém."

Na sua opinião, hoje quem quer abortar aborta clandestinamente e em circunstâncias indignas. "Quem quer levar por diante esta discussão é conivente com a actual situação do aborto clandestino." E estes são os mesmos, sublinhou, "que eram contra a utilização das pílulas e dos preservativos..." Jorge Coelho insurgiu-se ainda contra os que na campanha pelo "não" brandem os argumentos de natureza monetária numa "demagogia rasca". O antigo ministro do Gover- no de Guterres fez ainda um apelo rasgado aos indecisos. Lembrou- -lhes que será injustificável se a resposta for "não" à despenalização, o Parlamento alterar por votação o que os portugueses decidiram. "Isto agora está nas nossas mãos!"

Edite Estrela explicou aos socialistas presentes o que depende deles e deu-lhes as ferramentas para convencerem familiares, amigos e conhecidos a pôr a cruzinha no "sim". Tanto mais que, disse, se os eleitores se voltarem a abster em massa e a consulta popular tiver menos de 50% de participação, "deita-se por terra o instituto do referendo e a democracia participativa fica mais pobre".

A eurodeputada argumentou que Portugal está na cauda da UE nesta matéria - só a Irlanda, Malta e Polónia ainda proíbem a IVG a pedido da mulher -; que os países mais desenvolvidos, com leis menos restritivas, têm taxas de aborto mais baixas. Sublinhou que o PS é contra o aborto e que não está em causa no referendo a liberalização nem a descriminalização do aborto. "Trata-se apenas de permitir mais uma alteração ao Código Penal para que outra excepção, a par das que já existem, seja introduzida na lei."

Edite Estrela rejeitou também o argumento dos defensores do "não" de que se vai referendar a vida. Essa questão, afirmou, já foi debatida em 1984. "Se há vida às 10 semanas, há mais vida às 12, às 16 e às 24." Os números redondos das excepções previstas na actual lei que permite interrupções voluntárias da gravidez por esta ser psicologicamente intolerável pela mãe, violação ou malformação do feto.

"Os que dizem que a lei actual é boa e que as mulheres que abortam clandestinamente não devem ir para a cadeia, são os que defendem a liberalização. Ou seja, que as mulheres possam interromper a sua gravidez em qualquer momento, sem controlo dos serviços de saúde. "A maternidade e a paternidade são um direito e não um dever." E os filhos um acto de amor, segundo Coelho.

DN, 14-1-2007, pág.6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/14/nacional/se_o_sim_ganhar_o_tambem_sera_penali.html
 
Bispo de Leiria celebra missa contra "chaga social"

Céu Neves

Crianças a correr pelo Santuário de Fátima. Casais jovens e algumas mulheres grávidas. Mais crentes que o habitual para um sábado de Janeiro, mesmo quando se trata de um dia 13. Mas, ontem, foi o dia escolhido pelo bispo de Leiria para "celebrar a vida", o que para a Igreja Católica quer dizer: "não" ao referendo do aborto, dia 11 de Fevereiro. D. António Marto acabaria por caracterizar o aborto de "chaga social".

Assistiram às celebrações nove mil pessoas, segundo dados do Santuário de Fátima. O dobro do normal para esta altura do ano, refere Alfredo Costa, um reformado que vive junto à basílica. Esta é a sua igreja.

A convocação de uma jornada especial em defesa da vida, como "um dom de Deus" foi feita pelo bispo da diocese de Leiria, D. António Marto. A Igreja nega a colaboração dos movimentos em defesa do "não", mas o reitor do Santuário de Fátima, Monsenhor Luciano Guerra, admite que a iniciativa foi sugerida por dirigentes dessas associações.

Enganou-se quem estava à espera de cartazes a assumir o "não" no referendo ou de distinguir os militantes dos movimentos dos restantes peregrinos, incluindo alguns turistas. E mesmo os poucos que se vestiram com T-shirts alusivas acabaram por as esconder no interior dos casacos devido ao frio que se fazia sentir. Também se enganou quem esperava uma grande enchente.

Os peregrinos ocuparam apenas o lado esquerdo do santuário, entre a capelinha e a basílica. E muitos não souberam antecipadamente que havia uma peregrinação especial. Perceberam, depois pela homilia de D. António Marto, que presidiu à cerimónia ao lado de 12 bispos que vieram do norte a sul do País, que se tratava de uma celebração em defesa do "não" no referendo.

"Não sabia o que se ia passar. Parece que é contra o aborto, não é? Venho sempre no primeiro sábado depois do Ano Novo. Esta é a primeira de muitas visitas", disse Maria de Jesus, 63 anos, desempregada, e que se deslocou do Algarve com a família.

Alguns dos que ali estiveram em defesa do "não" distinguiam-se pelo número de filhos. "Venho habitualmente a Fátima. Sou católico praticante. Estou aqui porque o bispo de Leiria nos convocou. Não estou a representar a Plataforma Não Obrigada, explicou Nuno Vieira, um dos militantes do movimento. Deslocou-se de Lisboa com a mulher e os três filhos. Ao lado, Sofia e Sebastião Beltrão, de 35 anos, responderam no mesmo tom: "Viemos de propósito para apoiar o 'não' ao aborto. Apoiamos todos os movimentos em defesa da vida." Têm quatro filhos: António, Sebastião, Pedro e Bernardo.

Independentemente das razões que levaram os crentes ao Santuário de Fátima, numa coisa estão em sintonia: votar "não" no referendo. Mas há algumas excepções. É o caso de Isabel Correia, 37 anos, empregada de balcão. "Ainda não sei", disse.

Celebrações

Uma vigília de oração de sexta- -feira para sábado, organizada no âmbito dos 90 anos das aparições, marcou o início das celebrações. Cerca de 900 pessoas ouviram o apelo de D. António Marto para que defendessem a vida, numa homilia intitulada "Toda a vida pede amor". O tom manteve-se na missa de sábado, num "convite à meditação", que começou com o relato do encontro entre Maria e a prima Isabel, ambas grávidas, segundo diz a Bíblia.

À tarde, os peregrinos reduziram-se significativamente. E não chegaram aos cem os que participaram numa via-sacra aos Valinhos (onde apareceu Maria aos pastorinhos), dividida em dois pequenos grupos presididos pelo reitor do santuário e o capelão César. As famílias com muitos filhos desapareceram e contavam-se pelos dedos de uma mão os casais de jovens. Participaram, sobretudo idosos e freiras. No final, fizeram um peditório para construir um lar e maternidade em Timor, que o santuário têm apoiado.

DN, 14-1-2007, pág. 6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/14/nacional/bispo_leiria_celebra_missa_contra_ch.html
 
PCP lembra que voto é contra prisão

Fernando Madaíl

A mensagem que o PCP vai procurar passar durante a sua campanha do referendo é que não se está a perguntar aos eleitores se aprovam ou não o aborto, mas se concordam que as mulheres sejam presas.

A actual lei, além de "injusta, desadequada e inumana", como a rotulava, ontem, Jerónimo de Sousa, no final da reunião do Comité Central, ainda por cima "não inibe nem reduz a prática do aborto, porque a vida mostra que as mulheres que decidem fazê-lo, fazem-no - independentemente das idades, classes sociais, concepções filosóficas e religiosas ou quadrante político-partidário".

O líder comunista lembra que esta é uma batalha em que o PCP tem estado envolvido nas duas últimas décadas, procurando "pôr fim à indigna criminalização e julgamento das mulheres que recorrem ao aborto" e defendendo "uma maternidade e paternidade livre, consciente, responsável e socialmente protegida".

Jerónimo de Sousa vai participar em sete iniciativas concretas da campanha, mas fará referência ao tema em todas as suas intervenções, até porque o lema é "esclarecer e mobilizar", uma vez que não está esquecido que os resultados das sondagens em 1998 eram favoráveis ao "sim" e, eventualmente pela fraca afluência às urnas, acabou por vencer o "não". O PCP quer um debate sereno e clarificador, mas combaterá "as deturpações deliberadas e a manipulação dos sentimentos religiosos".

O seu antecessor, Carlos Carvalhas, numa sessão de esclarecimento em Vila Franca de Xira, sexta-feira à noite, também frisava que importa não "desviar as atenções para aquilo que não está em debate". No fundo, os eleitores são chamados a pronunciar-se sobre se querem que continue "a devassa da vida privada das mulheres, os inquéritos, os julgamentos, a pena de prisão". Além disso, "com lei ou sem lei, os abortos vão continuar a existir", pelo que importa decidir se devem ser "clandestinos", com todas as sequelas para a saúde pública, "ou se devem passar para a esfera da segurança e da legalidade".

Definindo os defensores do "não" como hipócritas, Carvalhas referia um dos outdoors: "Abortar por opção sabendo que já bate um coração? Não, obrigada". O comunista contrapõe que, "se fossem verdadeiros, deviam antes usar o slogan: 'Abortar por opção sabendo que já bate um coração? Então, pena de prisão.' Mas isso seria dar o passo seguinte, "sempre evitado, que era chamar criminosas às mulheres" que abortaram.

DN, 14-1-2007, pág. 6 a 9

http://dn.sapo.pt/2007/01/14/nacional/pcp_lembra_voto_e_contra_prisao.html
 
Dizer não à irresponsabilidade

João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Muitas pessoas votarão "sim" no próximo referendo do aborto só pela esperança de arrumar a questão de vez. No labirinto de manipulações, falácias e enganos em que este debate se tornou, esta é uma das ilusões mais amargas.

Ninguém tem dúvidas de que tratamos de uma questão que o País não quer tratar. A esmagadora abstenção no primeiro referendo em 1998 (68%) mostrou-o à saciedade e a apatia recente confirma-o. Trata-se de um problema que uma elite caprichosamente impõe à população, mergulhada numa conjuntura complexa, difícil e exigente.

Um punhado de forças políticas convenceu-se de que liberalizar o aborto constitui um imperativo de civilização e afirmou estar disposto a levantar sucessivamente esta exigência até que o País esteja de acordo consigo (ou, em certos meios mais extremistas, a forçá-lo na lei, mesmo que o povo se atreva a não concordar). Assim, espera-se que existam referendos até o resultado ser "sim", e que depois não haja mais nenhum.

O comodismo é uma das forças mais poderosas em Portugal. Perante este desinteresse da maioria do País, uma das opiniões que mais contarão no próximo dia 11 é a que afirma que o melhor é votar "sim" para ver se se acaba com isto e nos deixam dedicar ao que importa. Esta visão, extremamente atraente, não passa de uma das maiores tolices que têm surgido numa discussão cheia delas. De facto, a realidade é precisamente a oposta.

Se o "não ao aborto livre" vencer no dia 11 de Fevereiro, existe uma forte possibilidade de que a questão política fique resolvida. Duas derrotas sucessivas fazem hesitar até o fanático mais ardente. Os militantes histéricos quererão repetir a proeza, mas as forças sérias terão muitas dúvidas em arriscar terceira derrota. Além de que o clima internacional sobre o aborto está a mudar lentamente, e essa vitória da vida e responsabilidade em Portugal seria mais um passo na evolução. Tem de dizer--se que uma terceira tentativa para liberalizar o aborto entre nós é bastante improvável.

Pelo contrário, se o "sim" vencer, o aborto promete nunca mais deixar a actualidade mediática.

A razão principal não viria do lado partidário, aliás por razões semelhantes às invocadas no caso inverso. Embora se deva dizer que, com um empate entre os dois referendos, ambos certamente não vinculativos, seria muito mais provável existir um terceiro. Mas seria sobretudo a partir da vida real que o problema viria assombrar a política. Sobretudo no sector da saúde.

A primeira coisa que se passaria, se o "sim" eventualmente ganhasse, seria a manifestação do embuste da pergunta. Embora se fale de "despenalização", nada no sector penal ou judicial se veria modificado. Toda a frenética actividade daquilo que seria a real liberalização do aborto situar-se-ia nos hospitais.

Mas a liberalização está longe de ser garantida pela simples despenalização legal. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para não falar do plurimilenar Juramento de Hipócrates, afirma que "constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia" (art. 47.º). Como poderão então médicos executar a imposição legal? Apareceria artificialmente uma nova luta intensa no meio hospitalar, que certamente não precisa de mais problemas.

Alguns dizem que esse documento vai ser revisto. Mas que devemos pensar de uma classe que muda as suas regras éticas ao sabor das votações e das modas culturais? Mais importante, como se pode entender que alguém que dedicou a vida à saúde dos outros, que estudou durante anos para ser agente da luta contra a dor e a doença, aceite uma carreira a fazer abortos? Como entender que os hospitais, centros de vida e saúde, passem a ser locais de morte higiénica?

O embate seria certamente muito doloroso. Haveria médicos suspensos por objecção de consciência, zangas entre serviços e direcções hospitalares, discussões entre colegas. Isto para não falar das manifestações e dos aproveitamentos políticos. Nunca se deve esquecer que nos EUA e em alguns países europeus, onde a liberalização não foi feita por referendos, nunca mais houve paz desde que ela foi imposta. Em Portugal, depois de debate tão acalorado, a sua eventual implantação criaria problemas muito depois de 2007.

Este é portanto um caso feliz em que, se Portugal seguir a sua consciência e valores tradicionais, também evita muitas zangas e dolorosas soluções. O único voto que arruma a questão é dizer não à tentação facilitista.

DN, 29-1-2007, pág 13
 
Perdoai-lhes, senhoras

Psicóloga
genecanhoto@gmail.com
Joana Amaral Dias

Paulatinamente, vários defensores do "não" afirmam-se a favor da despenalização das mulheres que abortam. Entendem que o aborto é crime, mas que a mulher não é criminosa. Tortuoso paradoxo! E é Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) quem mais protagoniza esta nova vaga. Pretende despenalizar o aborto, independentemente do tempo de gravidez (!), sem o legalizar. Longe da vista, longe do coração. Para MRS, os problemas da actual lei (aborto clandestino e criminalização das mulheres) resolvem-se (ou não se resolvem) assim: "Abortem à toa, desde que ninguém tope." Obrigada.

MRS acha que as mulheres não devem ser criminalizadas, mesmo que abortem aos oito meses. Mas vai votar "não", porque não pode aceitar que seja a mulher - até às dez semanas - a decidir. Tudo menos a escolha da mulher. Isso é que não. MRS acha mesmo que há mulheres que abortam por "simples estados de alma". É um desrespeito pelas mulheres, para a esmagadora maioria das quais interromper uma gravidez é muito ponderado e muito difícil.

Ou seja, para MRS a mulher nunca deve ser criminalizada e nunca deve poder escolher. Logo, considera que toda a mulher que não deseja levar uma gravidez por diante é inimputável. E é a isto que chama liberalização? Assim, todas as mulheres que queiram abortar não são lúcidas, responsáveis ou capazes de decidir sozinhas. Deverão ser "acompanhadas" por uma qualquer junta médico-jurídica. Ou para MRS uma gravidez desejada é, em si mesma, um atestado de sanidade mental e chancela da autodeterminação (como terá chegado a tão radiosa conclusão?); ou também anseia por que as mulheres que desejam engravidar (e, já agora, homens que pretendam ser pais) sejam, previamente, sujeitas a uma bateria de testes psicológicos, por exemplo. E achará admissível que um psiquiatra estabeleça que uma mulher grávida de seis meses está mentalmente desequilibrada e que deverá abortar? Se o aborto for conduzido aos oito meses de gravidez, desde que não seja por decisão da mulher, já não há problema? Já não há vida?

Pergunta o leitor: "Como é que MRS e outros defendem que as mulheres que abortam não sejam criminalizadas, mas votam 'não' neste referendo?" Muito simples: Acreditando que as mulheres não são responsáveis pelos seus actos. Se calhar, nem deveriam votar. Pelo menos sem aconselhamento.

DN, 29-1-2007, pág. 48
 
Tolerância

António Perez Metelo
Redactor principal

Com a vitória do "sim", no próximo dia 11, o aborto deixa de ser assunto que preocupa polícias, procuradores e juízes, para passar a exigir a intervenção de médicos e assistentes sociais. Os circuitos clandestinos do aborto perdem subitamente a procura, com grande ganho para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres deste país. O dilema da decisão de abortar, esse, permanece na consciência de cada um e de cada uma, como sempre aconteceu. A diferença está no facto de os serviços do Estado, além de organizações da sociedade civil, passarem a poder envolver-se mais no apoio à melhor decisão possível, em cada caso.

Com a vitória do "sim", no próximo dia 11, cumpre-se o desejo da imensa maioria dos portugueses, mesmo da maioria dos votantes do "não": acabará, neste país, o opróbrio e sanção públicos das mulheres que abortam.

Com a vitória do "sim", no próximo dia 11, ganha novo alento a actuação política em múltiplos campos com o fim de promover a natalidade, cuja actual taxa de 1,4% terá de crescer 50% para atingir os 2,1%, que garantem a reposição das gerações. Se ambos os campos em disputa reconhecem este objectivo, conjugado com a redução do número de abortos, como muito importante, nada impede que uns e outros unam esforços no sentido de pôr de pé uma agenda pró-natalista, que dê a mais mulheres a liberdade de poderem dar à luz mais filhos desejados.

Para que o "sim" vença, no próximo dia 11, os seus defensores têm de ganhar a batalha da tolerância. Quem pede o direito de escolha para as mulheres deste país só pode querer respeitar, com naturalidade, a escolha contrária à sua . As vozes iradas, que agitam excomunhões, e as acusações de assassínio ficam com quem pretende coagir as próprias hostes, não merecem resposta.

Angela Merkel, no seu recente discurso em Estrasburgo, afirmava que a alma da Europa era a tolerância. Salvaremos nós a nossa, na prova de fogo do referendo?

DNEconomia, 29-1-2007, pág. 8
 
Maioria de países da UE permite aborto a pedido

Paula Sá

Os defensores do "não" à interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às dez semanas têm tentado encostar à parede os partidários do "sim", sobretudo os socialistas, com a ideia de que, se a despenalização vingar, as mulheres vão poder decidir abortar por qualquer estado de alma. Oficialmente o PS tem mantido em segredo como pretende regular essa opção da mulher, mas alguns socialistas dizem publicamente que se vão bater pela concretização do modelo alemão em Portugal (ver página 9). Na Alemanha a mulher que deseje interromper a sua gravidez até às 12 semanas tem de passar por um conselho regulador do Estado que a aconselhará sobre as alternativas ao aborto, a que se segue um período de ponderação obrigatório de três dias.

Entre os 20 dos 27 países da União Europeia onde é permitida a interrupção da gravidez a pedido da mulher, Bélgica, Finlândia, França, Hungria, Itália, Luxemburgo e Holanda adoptaram requisitos semelhantes aos da Alemanha no que toca ao denominado "aborto a pedido".

Na Bélgica, onde a interrupção é permitida nos primeiros três meses de gestação, nos casos em que a gravidez provoca na mulher um "estado de angústia", é obrigatório tanto o aconselhamento sobre as alternativas à IVG bem como o período de reflexão de seis dias. Na Finlândia, um ou dois médicos têm de atestar as razões de saúde mental ou socioeconómicas para um aborto até às 12 semanas e a mulher tem de se sujeitar ao aconselhamento obrigatório sobre contracepção. Na Hungria , a IVG até às 12 semanas também é sujeita a aconselhamento e à consulta de planeamento familiar.

As italianas que desejam abortar até às 12 semanas também têm de passar por um período de ponderação obrigatório de pelo menos uma semana. O mesmo quadro legal é praticado no Luxemburgo. Na Holanda, a reflexão prolonga-se por cinco dias e um médico tem de atestar que a mulher decidiu interromper a gravidez por sua exclusiva vontade.

Nos restantes 12 Estados que legalizaram o aborto a pedido da mulher -Áustria, Bulgária, República Checa, Dinamarca, Estónia, Grécia, Letónia, Lituânia, Roménia (até 14 semanas), Eslováquia, Eslovénia (até dez semanas) e Suécia (pode ir até às 18) -, não existem condicionalismos para pôr termo a uma gravidez, a não ser o tempo estipulado nas respectivas leis: regra geral, 12 semanas.

Em todos estes casos, a IVG ou é praticada em estabelecimento público de saúde ou em clínicas privadas reconhecidas pelos respectivos Estados. As despesas resultantes do processo de interrupção da gravidez são nalguns casos totalmente suportadas pelos serviços nacionais de saúde e noutros por seguros de saúde particulares (ver texto ao lado).

Países restritivos

Segundo os mesmos dados da Federação Internacional de Planeamento Familiar, na Grã-Bretanha, Chipre, Espanha e Polónia (tal como em Portugal) a interrupção da gravidez é crime, sendo admitidas poucas excepções.

Na Grã Bretanha só pode ser praticada a IVG até às 24 semanas quando a continuação da gravidez envolve um risco maior do que a interrupção para a saúde física e psíquica da mulher ou de qualquer criança da sua família. Para determinar este risco são consideradas as condições do meio no qual a mulher vive. É necessário o parecer de dois médicos. O atestado de dois clínicos também é condição imposta em Chipre para que seja posto cobro a uma gravidez até às 28 semanas para preservar a saúde mental e física da mulher, ou no caso de violação ou malformação fetal.

Casos que na Polónia só são admitidos até às 12 semanas, que prevê uma única excepção quando a vida da mãe é posta em causa pela continuação da gravidez. No caso de se tratar de uma menor, a IVG tem de ser feita com o consentimento dos pais.

A Espanha, como já tantas vezes foi escrito, tem um quadro legal muito semelhante ao português, embora a lei seja interpretada de uma maneira muito diferente. No país vizinho apenas está consignada até às 12 semanas a IVG em casos de violação (obrigatoriedade de denúncia prévia) ou risco psicológico e físico para a mulher; acima das 22 semanas no caso de malformação do feto (necessário parecer de dois médicos, que não estejam envolvidos no caso) e sem limite se houver risco de vida para a mulher (necessário parecer de um médico desligado do processo em causa).

Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez é punida pela lei, excepto em caso de risco de vida ou grave risco para a saúde física e psíquica da mulher, quando realizada até às 12 semanas. O problema é obter parecer médico que ateste estas condições, o que não acontece em Espanha. A gravidez pode ainda ser interrompida em caso de violação até às 16 semanas e até às 24 no caso de risco de malformação do feto. Não tem limite a IVG quando o feto é inviável ou quando existe perigo de morte ou grave lesão para a saúde física ou psíquica da mulher. É necessário ainda consentimento dos pais no caso de menores de 18 anos, o parecer de dois médicos e um período de ponderação de três dias.

A Irlanda mantém-se firme na criminalização do aborto, excepto se a mãe correr risco de vida. As irlandesas saem frequentemente do país para realizar a IVG na Grã-Bretanha, segundo dados da Federação Internacional do Planeamento Familiar.

Mas entre os 27 da União Europeia só Malta é totalmente contra o aborto. Seja em que circunstância for. E a mulher que o praticar incorre numa pena de prisão entre 18 meses e três anos.

DN, 31-1-2007, pág. 6 e 7
 
As linhas divisórias da despenalização

Vicente Jorge Silva
Jornalista

O "não" tem vindo a crescer nas sondagens e, embora continue ainda a alguma distância do "sim", já se admite a possibilidade de uma reviravolta nas previsões iniciais que favoreciam, claramente, a despenalização do aborto até às dez semanas. Surpreendente? Nem por isso. Apesar de estar pessoalmente convencido que o "sim" acabará por ganhar e que a abstenção será muito inferior àquela que se registou no referendo de há oito anos, a progressão do "não" reflecte a delicadeza de um dilema que divide profundamente a sociedade portuguesa (como tem dividido, aliás, todas as sociedades onde a questão foi colocada) e para o qual, com excepção dos fundamentalismos doutrinários e das simplificações demagógicas, não há saídas pacíficas, tranquilizadoras - e sem dor.

Em todo o caso, é muito mais fácil, menos "culpabilizante", votar por um valor moral supostamente absoluto e indiscutível do que votar por um valor considerado mais relativo e que se costuma associar, sobretudo, ao exercício dos direitos sociais. Além disso, o facto de o "não" estar dividido em sensibilidades diversas - o que constitui uma das novidades desta campanha - não só não parece prejudicá-lo como até amplifica a visibilidade (e receptividade) da sua propaganda.

O velho radicalismo ultramontano surge agora temperado por manifestações de compaixão relativamente às mulheres que recorrerem ao aborto. É uma espécie de "não, mas…" que admite, na prática, a despenalização proposta no referendo, embora recuse subscrever, em nome de um princípio inviolável, a consagração legal e simbólica dessa despenalização.

A contradição intrínseca desta posição deveria torná-la insustentável, pelo menos à luz das regras do Estado de direito, mas é ela que, afinal, conforta e reforça a boa-consciência da maioria daqueles que se preparam para votar "não". Desse ponto de vista, o aborto continuará a ser ilegal mas as mulheres que o fizerem não deverão ser punidas. A lei permanecerá imutável mas fechará os olhos às violações cometidas contra ela. Só que ninguém sabe como é possível existir crime sem castigo, a menos que isso implique um desrespeito da Justiça por si própria e aos olhos dos cidadãos.

Tenho amigos entre aqueles que advogam uma tal conciliação de contrários e sei que esses amigos o fazem não por hipocrisia mas porque não conseguiram resolver dentro de si mesmos este dilema: entre a defesa da vida tal como eles a concebem e a não punição das mulheres acusadas de abortar. É uma atitude que respeito porque sei ser sincera e genuína, mas, no fundo, é a que pacifica mais facilmente as consciências divididas entre uma crença essencial e a compaixão por quem atentou contra os valores que inspiram essa crença. Percebe-se, enfim, que numa sociedade como a nossa, tão vocacionada para a suavidade dos consensos e a brandura dos costumes, esta tentativa de conciliar o inconciliável acabe por conquistar muitos hesitantes para o "não" - enquanto os discursos intolerantes e caricaturais obtêm o efeito precisamente contrário.

Defender o "sim" é infinitamente mais difícil, a não ser para os fundamentalistas de sinal oposto aos integristas do "não", ou seja, para quem pretende que o acto de abortar representa uma bandeira libertadora e identitária da mulher. A ligeireza mundana com que algumas figuras do jet set feminino se exibiram a favor do "sim" na campanha do anterior referendo terá sido, aliás, um dos motivos que favoreceram a vitória do "não" e a enorme abstenção que se verificou. De qualquer modo, o "não" continua sem fornecer respostas consequentes - quer do ponto de vista jurídico, quer ao nível do enquadramento social e humano - para duas realidades cruciais que teimam em persistir: as condições de gritante desigualdade no acesso à interrupção de uma gravidez indesejada - que punem duplamente as mulheres mais pobres e vulneráveis - e a proliferação do aborto clandestino, com a sórdida economia paralela que prospera à sua volta.

As certezas absolutas que os adeptos do "não" - mesmo aqueles que defendem as posições mais moderadas - têm sobre os mistérios da concepção e do desenvolvimento da vida humana acabam por desvalorizar o que, infelizmente, é mais terreno, mais relativo, mais quotidiano - mas que é aquilo que, no fundo, as mulheres expostas ao drama terrível do aborto têm de enfrentar na vida real. Além disso, há ainda um ponto decisivo que Vital Moreira e outros intervenientes pelo "sim" lembraram no excelente Prós e Contras de segunda-feira na RTP: os militantes do "não" pretendem impor a todos os demais as suas convicções doutrinárias e éticas, utilizando para isso a máquina repressiva do Estado. Não lhes basta ser coerentes com os valores que defendem: exigem que os outros se submetam ao império da sua suposta superioridade moral. Ora, essa é seguramente mais uma razão para votar "sim".

DN, 31-1-2007, pág. 13
 
Debate ético e leis do aborto

Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista

É positivo o actual debate público sobre o aborto. Decerto que, tendo-se realizado outro referendo, com a mesma pergunta, há menos de nove anos, a discussão é um tanto repetitiva - parece já ter sido tudo dito, a favor e contra.

E a abstenção no referendo de 1998 e a prevista para 11 de Fevereiro indiciam, é verdade, que boa parte da população se quer alhear do assunto, algo incomodativo. Também é óbvio que não se trata de um debate académico, sereno e racional.

Ainda assim, é bom que se discuta o aborto, bem como outros problemas que envolvem decisões de consciência e de que as pessoas não gostam geralmente de falar. O facto de estes casos implicarem uma decisão ética pessoal, até íntima, não é contraditório com a conveniência do seu debate público. Por três motivos.

Primeiro, porque a ética é importante. E sem debate aberto das questões acaba por se considerar "normal" e justo aquilo que a maioria das pessoas faz, independentemente de quaisquer justificações morais. Na prática tudo passa, então, a ser aceitável, desde que haja muitos a fazê-lo.

Ora, se a ética é afastada numa sociedade amoral, porque não, então, legalizar a poligamia (e também a poliandria, para ser politicamente correcto), onde ela ocorra com alguma frequência? Na Holanda foi recentemente tentada a criação de um partido pedófilo...

Depois, considero positivo este debate porque, se nem sempre da discussão nasce a luz, a argumentação e o confronto de ideias favorecem a tomada de decisões racionais.

Em terceiro lugar, o debate ético é indispensável para a formação democrática de consensos, nunca unânimes mas pelo menos maioritários, onde assente a legitimidade das leis - sobretudo das leis penais, como a que está em causa no aborto. Em democracia ninguém pode impor aos outros as suas convicções, mas todos têm o direito - e até o dever - de procurarem convencer os outros quanto ao que lhes parece ser a legislação correcta.

A nossa sociedade individualista não está muito virada para debates éticos no espaço público. A tendência dominante é ignorar dilemas morais, fazendo prevalecer os interesses sobre os valores. Ou decidir intuitivamente tais dilemas, por mera inclinação pessoal.

Na questão do aborto também se ouve dizer que é um mero problema privado, que não deve vir para a praça pública. E que a liberalização não obriga ninguém a abortar - logo, respeita em absoluto a liberdade da mulher. Cada uma fará como entender. Acontece que há outra vida em jogo, a do feto. Quem a defende?

Na democracia pluralista existe a permanente tentação de retirar do espaço público as questões susceptíveis de criarem, ou agravarem, divisões na sociedade.

Se temos de pacificamente coexistir com gente de muitas e variadas concepções da vida, então - diz-se - o melhor é não tocar nesses pontos delicados.

O debate em torno do aborto veio dar um abanão nesta inércia e ainda bem. Houve, mesmo, algum progresso em relação à discussão de 1998. Tivemos mais serenidade e menos gritaria, embora dos dois lados ainda se haja registado escusadas manifestações de intolerância (lamento sobretudo as ocorridas no campo do "não", por ser o meu).

Creio que o próprio debate tornou mais claro "que de ambos os lados há pessoas respeitáveis, sérias e bem intencionadas, sinceramente convencidas das suas razões" (J. César das Neves, Aborto - Uma Abordagem Serena, Ed. Principia, pág. 6). É nesse espírito de respeito pelas opiniões divergentes da minha que adianto duas ou três observações, não particularmente originais.

Considero desonesta a pergunta do referendo. Sob a capa de despenalizar a mulher que aborta até às dez semanas, abre-se a porta, no caso de o "sim" ganhar, ao aborto sem qualquer condicionante. E pago pelo Estado.

Por outro lado, quando tão frequentemente entre nós se invoca a Constituição, é curioso que se haja passado por cima do seu art.º 24.º n.º 1, que diz: "A vida humana é inviolável." Se o feto com menos de dez semanas não é vida humana, o que será então?

É verdade que a vida intra-uterina nunca foi muito valorizada na nossa sociedade e, portanto, no nosso direito. Mas as ecografias que hoje se multiplicam, bem como outros meios de conhecimento do que se passa no ventre materno, tornam cada vez mais difícil considerar o feto mera parte do corpo da mãe e não um ser com vida própria. Por isso, seja qual for o resultado deste referendo, a longo prazo o tempo joga a favor do "não".

DN, 3-2-2007, pág. 17
 
A moral do Estado

Pedro Lomba
pedro.lomba@clix.pt

Estava decidido a não escrever mais sobre o referendo do aborto porque a campanha adquiriu nos últimos dias, como era fatal, um tom extremo e de violência psicológica que me parece deplorável. E porque já expressei a minha posição sobre o assunto e corro risco de excomunhão. Excepto que há uma questão política em debate que ultrapassa este referendo e interessa discutir.

A descriminalização do aborto é, na substância, uma polémica sobre as relações entre a moral e as leis penais. Basta perceber o fundo de muitos argumentos do "não": o Estado, dizem, tem forçosamente, através do Código Penal, de sancionar uma conduta individual reprovável no plano moral. Afirmações como "a despenalização significa um retrocesso civilizacional", "o Estado não pode dar um sinal de desresponsabilização à sociedade", "o Estado vai promover o aborto", "os meus impostos não são para financiar clínicas de aborto", assumem indistintamente, sem crítica ou reserva, que o poder punitivo do Estado tem uma raiz moral e que a criminalização do aborto é a única forma legítima de o Estado reprimir ou evitar o recurso a uma prática imoral. Se é certo que não é a única, qualquer outra medida pública de combate ao aborto (o planeamento familiar ou o aconselhamento médico, por exemplo) precisa ou, se quiserem, acaba por ser puramente acessória dessa decisão criminalizadora. Mesmo com as excepções previstas na lei, o aborto só pode ser um crime porque não é comportável pelo desvalor moral inerente a uma "cultura da vida". E esta posição não muda porque uma parte da sociedade rejeita essa visão criminalizadora, pela proliferação do aborto clandestino, pela recusa quase universal em se aplicar a lei. Para o "não", há um princípio moral indiscutível que implica a existência de um crime. Os defensores do "não" nunca se afastam dessa instrumentalização do Código Penal.

Em 1967, a Inglaterra descriminalizou a homossexualidade, após o relatório da comissão Wolfenden ter sugerido que as leis penais não têm de punir condutas privadas moralmente controversas. O facto provocou um dos mais importantes debates intelectuais sobre o papel do direito penal, dividindo quem atribuía uma função moralizadora às leis penais e quem defendia a separação entre as duas ordens (o mais conhecido foi o filósofo H. L. A. Hart). Não quero fazer qualquer paralelismo entre questões distintas, não só porque nenhuma questão moral é rigorosamente idêntica, mas porque a orientação sexual já não levanta a discussão moral de outros tempos. Mas o que ficou do relatório Wolfenden, e do debate que lhe seguiu, provou que a decisão de criminalizar uma conduta pessoal não pode estar dependente de apreciações ou concepções morais, e que não compete ao Estado tomar partido, com as leis penais, em matérias que geram uma elevada controvérsia social . Quer queiramos quer não, a questão do aborto é um dos mais complexas dilemas morais, pelo choque de valores e, sobretudo, pela controvérsia social sobre o valor absoluto da vida nas primeiras semanas de gestação e noutras situações-limite.

Há sempre quem, compreendendo que o Estado não pode justificar em termos morais as suas opções criminalizadoras, conteste uma fuga das leis do Estado para a amoralidade. O "não" acusa o "sim" de querer uma lei que conduz a um Estado amoral. Estranho não lhes ocorrer que uma lei que permite o aborto por opção da mulher só até às dez semanas, num estabelecimento de saúde legalmente autorizado, mediante prévia consulta médica, está muito longe de ser uma lei amoral ou destituída de preocupações morais. Mas esta é uma moralidade pública que não tem de passar pela sanção e ameaça penal. A "civilização" de que tanto se fala também passa por aqui.

DN, 3-2-2007, pág. 18
 
A oportunidade do 'sim'

António Costa Pinto
Professor universitário

A campanha para o referendo da próxima semana, como seria de esperar, não tem grandes novidades. No campo do "não" a mais curiosa é o facto de muitos declararem que também se opõem à criminalização das mulheres que abortam, razão determinante para votar "sim". Esta é de facto uma estratégia eleitoral que pode ter algum impacto, confundindo, na medida em que baralha as opções. Os outros, mais próximos do integrismo religioso, apresentam o argumento vida, que tem pelo menos a vantagem de estar conforme os princípios. No campo do "sim" a moderação impera, com pouca retórica de "direitos", mais ou menos feministas.

Mas esta consulta também será um indicar da "qualidade" relativa da nossa democracia e das perspectivas da sua reforma, a começar pela questão da participação. Se, contrariando as previsões e mesmo com uma mobilização partidária, a abstenção continuar a ser muito grande, os sonhos de uma democracia mais participativa serão desfeitos. Para os que criticam a "partidocracia" dominante, talvez seja altura de rever o discurso anti-instituições. Neste caso, aliás, mesmo que a participação aumente, a conclusão será a mesma: sem partidos, escasso autogoverno democrático. E falta ainda a opção do voto obrigatório, que vejo pouco explorada para o caso português.

Os resultados serão também um teste à modernidade relativa da sociedade portuguesa, pois muitos sociólogos andaram nos últimos 20 anos a dizer-nos que se processaram algumas mudanças nos valores desta. Portugal tem, como sabemos, uma das mais altas taxas de feminização da força de trabalho, o que, se a vida fosse um relógio, deveria provocar algumas mudanças, nomeadamente na participação eleitoral feminina e em relações de género mais igualitárias. Deu-se por isso no referendo anterior? Pas grand chose, como diriam os franceses.

Um outro aspecto refere-se à religiosidade e ao cumprimento das normas da Igreja, cujas instruções neste caso são óbvias. Com a terciarização, o aumento de nível educacional e o fim da sociedade rural tradicional, valores mais individualistas e opções mais racionais deveriam ser dominantes e eles já são óbvios no controlo da natalidade e no uso de contraceptivos, por exemplo, à revelia da mensagem religiosa.

Vamos ver o que acontece no próximo fim-de-semana.

DN, 3-2-2007, pág. 56
 
O 'não' suavizou-se e o 'sim' perdeu radicalismo

Fernando Madaíl e Pedro Correia

A distinção dos votantes no próximo referendo não se pode fazer só entre os que defendem o "sim" e os que são pelo "não". No último vídeo que Marcelo Rebelo de Sousa pôs no blogue Assim Não e no YouTube, o ex-líder laranja explicava que o seu "não" é "suave", o que lhe tem custado críticas de defensores de outros "nãos", que rotula de "duros".

Nesta intervenção, o analista político alegava que, ao contrário do que sucede na campanha do "sim", em que têm tido pouca visibilidade as figuras da linha mais dura ("o 'sim' hard está lá (...), mas agora tem que moderar a voz, não pode falar muito, porque se radicaliza e perde votos"), deixando as intervenções para os defensores mais moderados da nova lei ("o 'sim' de campanha, o suave, o ligth, o bem comportado"; "o 'sim' tecnocrático, bem vestido, de gravata, de fato"), há vários "nãos".

De facto, atendendo apenas ao que tem sido dito sobre os efeitos da actual lei, as posições dos defensores do "não" são muito diferentes, variando entre os que consideram que a qualquer crime deve ser sempre aplicada a respectiva pena até aos que sustentam que aquela pena deve desaparecer.

A maior parte dos defensores do "não" tem, acerca desta questão, posições menos extremas. No fundo, a maioria considera que deve existir um claro sinal na legislação de que o aborto deve ser considerado um acto ilícito, mas que jamais deveria ser aplicada a sanção prevista em qualquer caso concreto.

Há ainda uma enorme disparidade nos discursos das várias facções do "não", desde as declarações quase apocalípticas (em que até se evoca a Virgem de Fátima ou se compara o aborto ao enforcamento de Saddam, passando pela tese de Bagão Félix, que sugere a substituição de penas de prisão por "trabalho comunitário" ) às afirmações dos que argumentam que todas as situações apresentadas pelos defensores do "sim" já estarão previstas na lei actual (que até funciona bem em Espanha).

Apenas entre as mulheres que têm dado a cara pelo "não", é muito diferente ouvir (quando não é no teor, é pelo menos no tom) Rosário Carneiro, Matilde Sousa Franco, Zita Seabra, Manuela Ferreira Leite, Maria José Nogueira Pinto, Isilda Pegado ou Alexandra Teté.

Por bandas do "sim", é também evidente um separar de águas. Ao longo da campanha têm sido claramente dominantes as vozes moderadas. "Tentámos evitar repetir os erros que foram cometidos no referendo de 1998", reconhece ao DN um dirigente nacional do Bloco de Esquerda. Desta vez não apareceram jovens pelo "sim" a gritar "Na minha barriga quem manda sou eu!"

O mote à esquerda foi dado por José Sócrates, logo em Novembro, no congresso do PS. Daí resultou a palavra de ordem "Sim responsável". Excluindo todo o radicalismo da campanha, Sócrates e outros dirigentes socialistas, como Edite Estrela e Jorge Lacão, foram acentuando que o aborto continuará a ser genericamente considerado um crime no Código Penal, destinando-se este referendo apenas a alargar o leque das excepções previstas desde 1984 no nosso ordenamento jurídico.

A moderação foi ao ponto de prever a criação de medidas de acompanhamento das mulheres que pretendam abortar, sugeridas por personalidades como Vital Moreira, Elisa Ferreira e a deputada socialista Ana Catarina Mendes.

Paralelamente, a mensagem dominante do "sim" circunscreveu-se a três ideias básicas: a despenalização impõe-se como forma de combater o aborto clandestino; é inaceitável a prisão de mulheres que decidam interromper a gravidez; urge respeitar as escolhas de consciência.

A moderação do "sim" - simétrica da posição agora assumida por muitos defensores do "não", também apostados na difusão de mensagens moderadas - foi essencial para atrair muitas personalidades da área do PSD, que há nove anos permaneceram indiferentes ou chegaram a militar pelo "não". Como os deputados Miguel Relvas (mandatário de um dos movimentos do "sim"), a líder do PSD/Lisboa, Paula Teixeira da Cruz, ou o autarca Fernando Seara.

Isto não evitou radicalismos também por estas bandas. A comunista Odete Santos, na SIC Notícias, afirmou não ter a certeza de haver vida humana às dez semanas de gestação. O bloquista João Teixeira Lopes contestou a presença do social-democrata Rui Rio (desde sempre defensor da despenalização) num movimento do "sim". Miguel Portas, também do BE, acenou com o regresso à lei pré-1984 em caso de vitória do "não" (tese que só raros defensores do "não", como João César das Neves, defendem). Excepções que só serviram para confirmar a regra.

DN, 4-2-2007, pág. 5
 
Marcelo pronto para o dia seguinte

Fernando Madaíl

Marcelo Rebelo de Sousa definiu muito bem a sua estratégia para este referendo. Percebendo que o "sim" iria evitar a discussão sobre o momento em que começa a vida, insistindo apenas no facto de as mulheres poderem ser condenadas à prisão, o ex-líder do PSD tentou recolocar a questão no terreno mais propício aos argumentos dos defensores do "não".

Neste contexto, entende-se melhor o seu aparente exagero, quando admitiu que seria contra a criminalização até aos nove meses. Em pleno debate, procurava secundarizar esse aspecto, que favorece o "sim" e deixa sempre incomodado o "não".

A sua experiência de analista permitiu-lhe ainda identificar dois outros pontos fracos do "não" e procurou neutralizá-los: à imagem de retrógrados que os adversários lhes tentam colar, respondia recorrendo aos vídeos no moderníssimo YouTube; à tendência para o radicalismo (que o "sim" está a evitar), explicava que há vários "nãos".

Mas foi ainda mais longe. Prevendo um cenário em que uma vitória do "sim" pudesse ter uma vantagem substancial - uma vez que parte da direita apoia publicamente este sentido de voto -, Marcelo sabe que toda a sua área política iria ficar associada, não apenas a essa derrota, mas às posições mais ortodoxas. Com a maquiavélica sabedoria com que criava, quando era director adjunto do Expresso, "factos políticos", agora está a lançar um "ambiente político".

Independentemente do resultado da sua actual estratégia, Marcelo já tem preparada a sua resposta para o dia seguinte. Se triunfar o "não", aparece como alguém que participou, de forma empenhada, na campanha. Se vencer o "sim", pode alegar que, apesar de ter alertado com tempo, os outros "nãos" deram a vitória ao "sim".

DN, 4-2-2007, pág. 5
 
Dia 11

Nuno Brederode Santos
Jurista
brederode@clix.pt

Como todos nós, sou desafiado a dizer, no dia 11 de Fevereiro, se quero punir ou despenalizar o aborto que for realizado na convergência de determinadas condições: por vontade da mulher e realizado durante as primeiras dez semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Eu lá estarei, a dizer nas urnas que prefiro despenalizar. E sabendo que, se a maioria nelas expressa optar como eu, o Estado estará, se não juridicamente obrigado, pelo menos politicamente legitimado para, através da Assembleia da República, verter para lei essa vontade - revogando em conformidade o regime sancionatório hoje constante do art. 140.º do Código Penal e acrescentando tudo o que a explicite e complete (e que não está, nem podia estar, na pergunta que é sujeita a referendo). O aconselhamento prévio e a dilação para reflexão cabem aqui, naturalmente.

Do "sim" a 11 de Fevereiro depende a drástica redução (para não presumir a erradicação) de um flagelo social que é o libérrimo mercado do aborto clandestino. Mesmo que isto não altere as perspectivas da mulher rica que vai abortar a Londres ou da remediada que o faz em Badajoz, permitirá às mulheres pobres ou dependentes passar do aborto rudimentar, voluntarista e mecânico (feito pelos seus meios ou às mãos brutais, impreparadas e gananciosas de uma "parteira do diabo") à segurança e dignidade do acto médico.

Só o "sim" caminha no sentido da liberdade e responsabilidade da mulher que enfrenta a gravidez ou a maternidade indesejadas. Só ele avança na materialização do princípio constitucional da igualdade (art. 13.º). Ou, em versão para yuppies, só ele nos repõe em sintonia com uma "média europeia".

Tem sido dito, até dos dois lados em confronto, que o que está em causa é um problema de consciência. Oxalá fosse, mas não é. A questão da interrupção voluntária da gravidez, hoje e em Portugal, é um problema com dimensão política, porque de saúde pública. E é um problema de pobreza, incultura, menorização preconceituosa da mulher e medo. Nada disto faz com que a mulher que não pode (ou responsavelmente não quer) ser mãe aceite o filho indesejado. Tudo isto apenas a empurra para o aborto clandestino. A consciência tem o seu espaço de respiração na liberdade e na responsabilidade. Se o "sim" ganhar, então, de facto, levar por diante uma gravidez indesejada ou aceitar, livre e responsavelmente, dar vida passará a ser um problema de consciência.

DN, 4-2-2007, pág. 48
 
O essencial do referendo

Luís Delgado
Jornalista

1. O problema fundamental dos resultados do próximo domingo vai ser apenas um: será vinculativo (mais de 50 por cento) ou não? Por muito que se tente escapar, ou fazer de conta que a questão não existe, será, na noite do escrutínio, independentemente dos resultados, o tema essencial do debate político.

O primeiro-ministro e o Governo já anunciaram que se o "sim" ganhar, mesmo sem essa vinculação constitucional, vão avançar com uma alteração legislativa em sede de Assembleia da República.

Esse é o drama deste referendo. Uma de duas: ou os portugueses se empenham e votam, e o problema estará por natureza ultrapassado, ou então qualquer extrapolação dos resultados para uma maioria substancial e definitiva que legitime uma alteração legislativa, sem que o referendo tenha força formal e vinculativa, é um abuso inaceitável que gerará, e com razão, uma trapalhada política sem precedente.

É bom que o PS e os partidos que apoiam o "sim", e os respectivos movimentos, apelem e reforcem a ideia de que é necessário obter os tais 50 por cento de votos expressos, porque só assim podem mexer na actual lei.

Tudo o resto será um truque inadmissível, que "matará" qualquer futuro referendo, porque se torna possível, sem cumprir os requisitos para o qual foi criado, ultrapassar "na secretaria" o que constitucionalmente está determinado.

E não há argumentos que valham: dizer que a hipotética vitória do "sim", mesmo sem essa maioria de votos expressos, é a representação da vontade nacional é excessivo, absurdo, inaceitável e "ilegal". O PS, o Governo e o primeiro-ministro têm de ser os primeiros a garantir o respeito pelo texto constitucional, em qualquer circunstância. O referendo não pode ser o veículo para uma "golpada".

2. Marcelo diz, e bem, que o "não" se suavizou e o "sim" perdeu radicalismo. É verdade. A discussão pública tem decorrido sem excessos de parte a parte, excepto nas franjas dos respectivos movimentos, e isso é uma aquisição importante desta década de amadurecimento dos portugueses.

Genericamente as posições mantêm-se, nos dois campos, mas agora com argumentos bastante mais moderados, aceitáveis, discutíveis e entendíveis. A berraria de outros tempos deu lugar a uma conversa com dois lados, com rostos credíveis e com argumentos razoáveis.

Ou seja, quem pensava que o "sim" já estava garantido repara agora que o "não" consolida as suas posições, e que a menos de uma semana do referendo ainda está tudo em aberto. Para qualquer dos lados, diga-se.

3. Assim sendo, a campanha tem decorrido num ambiente bastante morno, embora se adivinhe a sua intensificação para os últimos dias, como parece natural.

Isso também tem uma explicação: o assunto está há muito decidido na cabeça dos portugueses, para um dos três lados - "sim"-"não"-abstenção -, porque é uma matéria sobre a qual existe, na maioria dos casos, uma posição predefinida, sem que grandes debates ou excessos de última hora possam alterar o perfil da votação.

A verdade é há uma intenção de voto silenciosa, para ambos os lados, que nunca mudará. A ver vamos.

DN, 5-2-2007, pág. 13
 
O verdadeiro combate pela liberdade

João César das Neves
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Professor universitário

"Eu sou contra o aborto e até acho que está ali uma vida humana. Mas não devo impor esta minha opinião aos outros. Tem de haver liberdade para decidir." Muitas pessoas votarão "sim" no próximo referendo com esta posição. Acham que em tema tão decisivo para a vida da mulher deve dar-se liberdade.

O mais espantoso neste raciocínio é que este é o único campo em que é aplicado. Em todos os outros aspectos sociais ninguém raciocina deste modo. Nunca se ouviu dizer: "Eu até acho que se deve conduzir devagar, mas cada um é livre de andar como quiser"; ou "Eu até penso que não se deve despedir sem justa causa, mas a liberdade empresarial deve prevalecer"; ou ainda "Eu até sou contra a droga, mas cada um que decida". Em todos os sectores da vida o Estado impõe-nos uma conduta e atitude, limites apertados à vigência da liberdade. Só aqui, onde está em causa a protecção de uma vida humana embrionária, só aqui se quer impor a absoluta autonomia.

É evidente que cada um tem liberdade de pensar o que quiser sobre o início da vida humana. Mas quando se fala da destruição dessa vida então essa, como todas as liberdades, tem de ser regulada e protegida. Cada um também tem liberdade de escolher a casa que quiser desde que respeite o plano urbanístico, de escrever o que lhe apetece mas sujeito à lei de imprensa, às regras da privacidade, ao código da publicidade. Quanto mais importante a liberdade, mais regras a defendem. Porque não se protege a liberdade de nascer?

O drama do aborto vem do confronto de duas situações gravíssimas. Quem se propõe praticá-lo só o faz em caso-limite, em situações onde estão em jogo coisas decisivas. Mas o embrião que sofre o aborto tem toda a sua pessoa envolvida nele de forma ainda mais decisiva. Pode compreender-se que o Estado não se meta nas decisões íntimas dos cidadãos. Mas pode deixar à liberdade de cada um a decisão de eliminar a vida de outro? Para mais, inocente? Ter em atenção o primeiro elemento, ignorando o segundo, é uma irresponsabilidade incrível.

Em todos os assuntos o Estado tem uma política, uma regulamentação, um instituto. Fá-lo para garantir o bem-estar, promover a justiça, assegurar o futuro e o progresso. Claro que essas leis e limites criam muitos incómodos, mas sempre em nome de um valor superior. Que bem-estar é mais importante que o do bebé em gestação? Que justiça é mais sublime que a dos inocentes? Que futuro, que progresso para Portugal sem embriões, sem filhos, sem vida? Será que o direito à irresponsabilidade paternal se sobrepõe ao direito à vida?

Vivemos num tempo de causas, de campanhas, de ideais. Defendem-se as águias pesqueiras e as ruínas celtas, a cozinha tradicional e a camada de ozono, o sexo seguro e a higiene dentária. Só as crianças antes de nascer têm de ficar sem protecção... em nome da liberdade? Será que ninguém lhes dá a liberdade sequer de respirar e olhar para o Sol? Será que a liberdade de cada um determinar quando começa a vida humana é mais importante que a liberdade de nascer?

Claro que o Estado quer regulamentar também este tema. Mas só pretende fazê-lo a partir das dez semanas de vida. A lei protegeria o direito à vida, mas só após as dez semanas. Porquê? Por que razão o feto com 11 semanas teria protecção e o de nove não? Que estudo, conceito, ideologia, argumento suporta tal decisão? A resposta, simplesmente, é que dá jeito que assim seja. Há conveniência nesse limite. E o direito à vida ficaria sujeito aos interesses. Não é novidade, pois este tem sido sempre o princípio original da opressão.

O mais patético desta situação é que os filhos e netos daqueles que lutaram para conseguir as nossas liberdades julgam continuar essa tradição combatendo agora pela liberdade de abortar. Os seus pais militaram contra a ditadura e a guerra colonial, os seus avós resistiram à censura e demagogia, ao racismo e genocídio.

Mas na sociedade que sacrifica a liberdade à qualidade de vida, o tema que motiva a intervenção é a liberdade sexual. Mesmo sacrificando a vida do filho.

Pensam copiar velhas glórias, mas não notam que, ao fazê-lo, caem na posição dos antigos opressores. Não vêem que a luta que marcará este tempo, a generosidade heróica da nossa geração, é precisamente a defesa da vida contra a ditadura do hedonismo.

Continuamos a ter heróis no combate pela liberdade, mas esses estão do lado do "não", afirmando a liberdade de nascer, de ter um nome, de ser alguém.

DN, 5-2-2007, pág. 12
 
A pergunta

Joana Amaral Dias
Psicóloga
genecanhoto@gmail.com

A uns dias do referendo, volto a este assunto para recolocar a questão - sim, é esta a única questão! - que será dirigida a todos: "Concorda com a despenalização da IVG, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" Uma pergunta, três aspectos.

O cerne: "A despenalização." A maioria dos defensores do "não" entende que a mulher não deve ser presa. Nem sequer julgada. Mas quer manter uma lei sem a aplicar. Acontece que a lei impõe regras e pune quem as viola. A lei não serve para fazer figura. E nem se trata de uma lei que alguns (muitos) não cumprem. Trata-se de uma lei que a esmagadora maioria da sociedade (o "não", inclusive) não quer que seja cumprida. Quem não quer mulheres em tribunal por abortar só pode defender a alteração da lei! Outros "nãos" afirmam que despenalizar é liberalizar. Mercado liberalizado, mas clandestino, sem regulamentação, é o que temos agora. O "sim" não levará à liberalização. Levará a limites claros. "Até às dez semanas." "Em estabelecimento de saúde autorizado." Só aí as mulheres terão acompanhamento e planeamento familiar. Só assim se reduzirá o número de abortos. A alternativa é "um sítio qualquer". Não haver crime mas abortar na clandestinidade? Não! Despenalizar? Sim.

"A opção da mulher". Significa que o Estado deixa essa resolução à mulher - à pessoa que melhor pode decidir - sem deixar de regulamentar. Nenhuma mulher grávida pode ser obrigada a abortar. Nem a prosseguir a gravidez. O aborto tem de ser a pedido, evidentemente! Como poderia ser de outra maneira?

"Nas primeiras dez semanas" determina um prazo. Suficiente - o mínimo - para que a mulher possa saber que está grávida e mais umas semanas para reflectir. Porque não 12 semanas? Porque se trata de estabelecer, como na maioria dos países europeus, um marco razoável, tal como se baliza para a maioridade, por exemplo. Com a actual lei, tanto faz abortar aos seis dias como aos seis meses. A clandestinidade e a lei são as mesmas. Com a mudança, não apenas passa a existir um limite como também menos medo e mais condições. Logo, é provável que as mulheres que queiram interromper a gravidez o façam mais cedo. Até às dez semanas.

Dizer que "se a pergunta fosse outra a resposta seria outra" é um embuste. A pergunta é esta. E é tão simples quanto a resposta é urgente.

DN, 5-2-2007, pág. 48
 
Cristianismo é mais severo que outras religiões na condenação do aborto

Entrevista a Giulia Galeotti, académica italiana

Giulia Galeotti revela que ao longo da história o aborto teve reacções várias. E que, mesmo entre as religiões monoteístas, existem hoje perspectivas diversas. Entrevistada por e-mail, a jurista defende pessoalmente que "só uma sociedade que eduque para a contracepção, por um lado, e que, por outro, ajude as mães a criarem os seus próprios filhos será uma sociedade justa e civilizada".

Quando começou a actual tendência global para a legalização do aborto?

A base para a legalização do aborto surgiu após a Segunda Guerra Mundial. De facto, o verdadeiro motivo para a mudança da legislação em muitos países ocidentais teve que ver com uma atitude diferente da parte do Estado na contagem do número dos seus cidadãos. Se da Revolução Francesa em diante a força das leis era dada pela quantidade de cidadãos que combatiam, trabalhavam e pagavam impostos, após 1945 o número deixa de importar. Quando a bomba atómica cai sobre Hiroxima morre uma certa forma de fazer a guerra. O aspecto quantitativo, de resto, não é mais decisivo sequer em termos industriais: a nova tecnologia substitui o homem pela má- quina. Dito de forma brutal, o aborto pode ser legalizado porque o Estado não tem mais necessidade de vidas humanas para alicerçar a sua potência.

No seu livro escreve sobre o aborto como sendo um assunto feminino durante séculos. Qual foi a razão para a mudança depois do século XVIII?

Com a Revolução Francesa, os Estados "descobriram" que a sua força dependia dos cidadãos. Os nascidos tornam-se então património público, os não nascidos um drama nacional, os abortos um ataque à força do Estado. Diderot escrevia que "um Estado é tão mais potente quanto mais numerosos forem os braços empregues no trabalho e na defesa". De resto, já um século antes Colbert se lamentara de como padres e freiras privavam "o Estado de todos esses filhos que teriam podido produzir para serem usados em funções úteis". É evidente que o aborto não pode ser mais um assunto deixado para as mulheres, como acontece com a gravidez e o parto (cujo protagonista deixou de ser a parteira para ser o médico).

Hipócrates foi contra o aborto. Era a posição tradicional dos médicos?

Na Grécia Antiga o aborto era uma prática moralmente aceite e juridicamente lícita. Esta atitude era normal até entre os médicos (se bem que alguns homens se interessassem por obstetrícia, durante séculos a teoria e a prática mantiveram-se separadas; os médicos teorizavam, a parteira agia à luz do saber transmitido de mulher para mulher). A voz de Hipócrates é, pois, uma excepção no âmbito científico. Filosoficamente, o grande médico estava próximo do estoicismo, que não era favorável à prática abortiva.

O cristianismo é mais contrário ao aborto do que outras religiões?

A posição cristã difere na substância. Para o judaísmo a fecundidade é uma bênção do Senhor, e a proibição do aborto é ordenada por Deus ao homem no contexto do dever de transmitir a vida para preservar o povo de Deus. Mas, se o aborto é condenado, ele não é um homicídio: nem nas escrituras nem na tradição jurídica hebraica o feto é considerado um ser vivo. Por sua vez, no islão (a respeito do qual é difícil ter um discurso geral na falta de uma autoridade que tenha a custódia da ortodoxia), o aborto é uma intervenção que põe fim a uma vida. Mas a vida no feto não se apresenta imediatamente, mas sim depois de alguns meses no seguimento da animação (união entre a alma e o corpo). O que faz com que pela lei islâmica o aborto seja permitido antes do quarto mês na presença de razões válidas. Por sua vez, para o cristianismo, o aborto é homicídio desde o instante da concepção. A este propósito, no entanto, esquece-se que a Igreja teve no decurso da história uma evolução graças às descobertas científicas. Se, de facto, desde sempre o aborto foi classificado como homicídio, aquilo que mudou com o tempo foi o momento a partir do qual se reconhece a existência de uma pessoa humana. Durou séculos o debate sobre a animação imediata e a animação retardada: uma reconhecia que a alma estava imediatamente presente, a outra que se "juntava" ao corpo num segundo momento. Só em 1854, com a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, é que prevalece a teoria da animação imediata: na medida em que se declarava que Maria estava preservada do pecado original desde o instante da sua concepção, era evidente que a alma estava presente desde o início.

Porque eram gregos e romanos tão tolerantes em relação ao aborto?

No contexto greco-romano o aborto era praticado e aceite. A convicção era de que o feto era simplesmente uma parte das vísceras da mulher. O único limite ao aborto estava ligado ao interesse masculino: se o acto contrariasse a expectativa do homem (pai ou marido), a mulher não podia abortar.

Em algumas sociedades o aborto foi visto como mais um contraceptivo?

Muitas sociedades viam o aborto como um meio de controlo de natalidade. Isto explica-se facilmente: só era de facto possível diagnosticar uma gravidez com o primeiro movimento do feto, numa fase, portanto, bastante avançada. Estamos a falar de épocas nas quais o ciclo menstrual era muito irregular e em que a suspensão da menstruação não era necessariamente a prova de uma concepção. A diferença entre aborto e contracepção não era portanto muito clara: se, de facto, aos olhos de hoje, contracepção, aborto e infanticídio são bem diferentes, durante séculos estas práticas constituíam de facto um todo indistinto devido às escassas informações sobre a fisiologia feminina. Ao dizer que o aborto era visto como método de controlo de natalidade (ao lado do prolongamento do aleitamento, do coito interrompido, do infanticídio e também do abandono dos recém-nascidos) é necessário recordar sempre que a precariedade da vida e a altíssima mortalidade neonatal e infantil faziam com que à excepção de casos particulares (como no caso de adultério) não houvesse tanta necessidade de regulamentar o nascimento. No entanto o problema é que, não obstante as indicações da ciência, existem ainda hoje pessoas que vêem o aborto nos primeiros meses da gravidez como um mero meio de controlo de natalidade.

Qual era o meio de aborto tradicional?

A história oferece uma vastíssima panóplia de modalidades com fins abortivos. Mezinhas, ervas, exercícios físicos violentos, instrumentos vários (garfos, ferros, tubos de borracha no útero e muitas outras coisas). As modalidades concretas usadas na prática do aborto revelam grandes semelhanças no mesmo contexto que por sua vez é diferente conforme o período histórico, ambiente geográfico e tradição cultural: a verdade é que a crueza do aborto e a sua extrema perigosidade constituem um doloroso factor comum na história. Os instrumentos ou as substâncias tóxicas, por exemplo, danificavam os órgãos internos. Infelizmente, encontramos hoje este aspecto da perigosidade do aborto em contextos nos quais não os esperávamos já: às vezes, de facto, podem ser os próprios promotores da liberdade de escolha a piorarem a segurança das mulheres que vivem em países onde o aborto é um crime. Pensemos na actuação (que não tenho dificuldade em definir como criminosa) da associação não lucrativa holandesa Women on Waves, cujo fim é levar (por via marítima ou postal) o aborto aos países onde a sua prática é ilegal. Particularmente perigoso é o serviço Women on Web que, através da rede, instrui as mulheres sobre o aborto químico "faz-a-ti- -mesma". Não se percebe como é que esta associação "ignora" que o seu comportamento corresponde exactamente ao daqueles que praticam abortos ilegais de forma bárbara: a vítima é sempre uma mulher desesperada e só, que se contorce com dores e hemorragias frequentemente mortais.

Portugal vai fazer um referendo sobre a legalização do aborto. Noutros países, a legalização foi acompanhada por um maior número de abortos?

Em todos os países é impossível obter dados correctos sobre a matéria antes da legalização. Aquilo que posso afirmar é que com a legalização diminuíram os abortos mortais e também o número das consequências graves causadas pela sua prática (hemorragias, infecções, esterilidade). A verdadeira aposta é a de fazer de forma a que as mulheres não sejam mais constrangidas a encontrarem-se na situação dramática de terem de decidir interromper uma gravidez. Só uma sociedade que eduque para a contracepção, por um lado, e que, por outro, ajude as mães a criarem os seus próprios filhos será uma sociedade justa e civilizada.

DN, 5-2-2007, pág. 8
 
'Sim', para a Assembleia legislar

José Medeiros Ferreira
jmedeirosf@clix.pt
Professor universitário

Os portugueses podem terminar no próximo domingo com uma questão política que envenena a sociedade há décadas. Uma persistente estratégia da aranha tem manietado o legislador português no que à IVG diz respeito. O Estado português é conjuntamente com a Polónia, a Irlanda e Malta um dos mais cruéis, a nível europeu, para com as mulheres que abortam.

Um mau entendimento do que deve ser o papel da Igreja Católica no campo legislativo tem estado na base do comportamento de muitos protagonistas políticos que se reclamam daquela obediência, embaraçando a inteligência da situação temporal.

Tudo começou em 1983, quando Maria Belo causou furor no congresso do PS ao apresentar uma moção para se legislar na regulamentação da IVG, já o PCP tinha apresentado um projecto no mesmo sentido, vigorava o Governo de coligação PS-PSD.

Logo houve quem jurasse pelo fim da coligação, caso o PS levasse para a frente o projecto legislativo. Os adversários de Mário Soares e de Mota Pinto mobilizaram-se. O estado da opinião reaccionária em Portugal era um pouco mais primário do que agora se manifesta. Promoveram-se manifestações de rua, Marcelo Rebelo de Sousa não resistiu a fazer parte de uma que desceu do Rato até ao Palácio de São Bento. Simplesmente...

Simplesmente, Mário Soares deu um dos seus golpes de rins. Perante a vaga fundamentalista interna, o primeiro-ministro foi a Roma tratar directamente com o Vaticano de uma saída para a questão que respondesse a alguns anseios da população e acalmasse uma Igreja mal aconselhada pelos seus prosélitos. Surgiu assim a Lei n.º 6 de 1984, aprovada na AR a 14 de Fevereiro, que ainda vigora. Em todo esse processo distinguiu-se no Parlamento Zita Seabra, que assim se afeiçoou a uma lei de compromisso, e que ainda por cima iria ter uma interpretação restritiva na parte respeitante à lesão psíquica da mulher grávida. Mário Soares podia dar-se por satisfeito, pois tinha dotado o País de uma lei sobre a IVG que, mesmo muito cautelosa, evitara a cisão na coligação, que só se produziria um ano mais tarde, e mantivera as boas relações com a Igreja, em Portugal e em Roma. Melhor era difícil.

Porém, a interpretação da lei volta a fechar o circuito dos estabelecimentos de saúde pública às mulheres que por motivos psíquicos não querem levar por diante gravidezes indesejadas. Revelam-se residuais os casos de interrupção por violação e por malformação dos fetos. O recurso ao aborto clandestino não estagna. A interpretação do que pode ser a saúde psicológica da mulher em Espanha revela-se mais abrangente e flexível. Badajoz não espera pelo ministro Correia de Campos. Em Portugal há mulheres nos tribunais de Aveiro, Maia e Setúbal.

Findo o ciclo do cavaquismo governamental, volta o PS ao poder em 1995. Duas tentativas são feitas para alargar a despenalização da IVG na AR. O projecto do PS em 1997 perde a maioria por um voto. Em 1998, Marcelo Rebelo de Sousa convence António Guterres da bondade do referendo para adiar a questão e retirá-la da AR. A manobra é clara, e tem tanto de política como de obediência à formação apostólica dos dois protagonistas que chefiam PSD e PS naquela conjuntura. Estes leigos empurram assim a hierarquia clerical para um combate político minado pela irreversibilidade dos tempos. Mas o gosto pelo excesso de zelo e pela manobra política suplantou um sereno exame de consciência da situação contemporânea. Posta a questão a referendo, acorrem às urnas apenas 31% dos eleitores que se dividem a meio, com 51% a dar a vitória ao não.

Novo adiamento, nada se resolve. Marcelo Rebelo de Sousa ganha politicamente, mas a sociedade portuguesa fica com um problema por resolver. Os mais esclarecidos membros da Igreja Católica sabem-no bem. Pretende-se então suspender a instrução de processos judiciais sem alterar a lei do aborto. Eminentes juristas como Freitas do Amaral emprestam o seu nome a esta operação pouco transparente, mas reveladora do mal-estar que a actual legislação sobre o aborto desperta em toda a sociedade portuguesa...

Os portugueses têm de novo a possibilidade de contribuir para a resolução de um problema legislativo que se arrasta há duas décadas. O "sim" permite à Assembleia da República voltar a legislar na matéria no sentido de despenalizar a IVG nas primeiras dez semanas de gravidez. O "não" bloqueará essa possibilidade sem nenhuma perspectiva de futuro. O "sim" ajuda a resolver. O "não" paralisa o legislador.

DN, 6-2-2007, pág. 9
 
Porque votarei em branco

Vasco Graça Moura
Escritor

Não votarei "não" no referendo, porque entendo que a mulher deve ter a liberdade de, em sua consciência, decidir se interrompe ou não a gravidez, nas primeiras doze semanas. Este é um princípio que subscrevo, muito embora, quanto a ele, subsistam problemas para os quais não se antevê uma solução fácil. Desde logo o n.º 1 do art.º 24 da Constituição. Mas há outros.

Por exemplo, no caso da gravidez das jovens de menor idade (e para só falar nas menores de 16 anos), não faz sentido que o consentimento tenha de ser prestado, conforme os casos, pelo marido capaz não separado, pelo representante legal, por um ascendente, por qualquer parente na linha colateral, ou seja até, em situações de urgência e verificados determinados pressupostos, suprido pelo médico, que decide em consciência em face da situação.

Em qualquer desses casos, não se vê que seja plenamente garantido à mulher o exercício da sua liberdade de opção. Pode ocorrer um conflito de vontades e ela ser impedida de abortar, querendo fazê-lo, ou induzida a abortar, não o desejando, de modo a que a sua situação de dependência, porque menor, seja explorada e se volte contra ela.

Também é problemático que, ainda no caso da menoridade, o marido, se marido houver, deva prestar o consentimento por ela, mas já não tenha de ser ouvido nos outros casos. E que o pai biológico, seja a mulher menor ou maior, não seja tido nem achado para nenhum efeito…

Duvido de que a lei venha a resolver estes e outros aspectos satisfatoriamente. Em todo o caso, mesmo que o "não" vença, do que também duvido, já parece absolutamente claro que o legislador terá de consagrar a despenalização, o que faz do referendo um absurdo que tem muito mais a ver com a demagogia política do que com uma contemplação serena, abrangente, justa e tecnicamente capaz dos dados da questão.

Mas, tudo ponderado, também não votarei "sim".

A razão de fundo de toda a polémica em redor do aborto está estritamente ligada à questão da vida humana e aos direitos dos nascituros. Quer se seja a favor da despenalização do aborto quer se seja contra ela, o cerne da questão é esse e não outro.

A Constituição abre a porta a uma distinção entre a vida humana e a pessoa humana. Enquanto o n.º 1 do art.º 24 diz que a vida humana é inviolável, o que não pode deixar de contemplar o embrião, o n.º 1 do art.º 25 diz que a integridade moral e física das pessoas é inviolável, o que parece supor a referência a um estádio ulterior de desenvolvimento do feto, a partir das doze semanas e do surgimento do sistema nervoso central.

E assim poderá sustentar-se que, nas primeiras semanas da gestação, ainda não se está em face de uma pessoa, mas não pode contestar-se que já se está perante uma vida humana.

Se o sistema actual for mudado, deixa de haver lugar a causas de exclusão de ilicitude em casos concretos e passará a haver uma geral licitude que redunda, ipso facto, numa inconstitucionalidade, porque então a lei violará o citado n.º 1 do art.º 24.

Assim, se se pretende seja à mulher que cumpre decidir em consciência e liberdade, será necessária uma alteração da Constituição, para que a lei depois consagre o direito de ser ela a resolver o conflito de valores e de deveres emergente da situação em que se encontra.

Todavia, admitido esse direito, não faz qualquer sentido que se despenalize o aborto, quando pela mulher livremente decidido nas primeiras semanas e clinicamente assistido em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, e se continue a penalizar o aborto, quando por ela livremente decidido, mas realizado fora desse quadro de intervenção clínica.

Nos dois casos, a questão suscitada pelo exercício da vontade quanto à interrupção da vida do feto é rigorosamente a mesma, o conjunto de questões éticas e jurídicas que a tal respeito se levantam é absolutamente idêntico, e não podem ser confundidas com estes aspectos duas outras questões adicionais: a de a mulher resolver prescindir dos cuidados de saúde agora previstos, inclusivamente agindo sozinha, e a de um hipotético exercício ilegal da medicina por parte de quem a ajude a interromper a gravidez. A questão do exercício ilegal da medicina não se resolve pela resposta positiva à questão de fundo.

Os termos em que a pergunta apresentada a referendo se encontra formulada prenunciam a consagração de uma patente violação constitucional e de uma clamorosa desigualdade jurídica.

Por tudo isto, votarei em branco.

DN, 7-2-2007, pág. 12
 
'Sim' e 'não', o direito e o avesso

Vicente Jorge Silva
Jornalista

As deputadas Rosário Carneiro e Teresa Venda tentaram, ainda na legislatura anterior, propor a suspensão dos julgamentos e a correspondente despenalização das mulheres acusadas de ter abortado, embora sem alteração do Código Penal. Reagi com simpatia a essa iniciativa, que me pareceu então a única forma imediata de pôr termo à intolerável humilhação a que se expunham as mulheres levadas à barra do tribunal.

Na altura, eu era também deputado e colega de bancada de Rosário Carneiro e Teresa Venda. Apesar das nossas diferenças de opinião, criáramos uma sólida relação de amizade que permanece para além do episódico convívio parlamentar. Sei, por isso, que Rosário e Teresa eram genuínas na proposta que, sem sucesso, insistiram em levar por diante e que traduzia uma solução de compromisso entre as suas convicções doutrinárias contra o aborto e a sua compaixão pela sorte das mulheres perseguidas pela lei.

Separava-nos, porém, um ponto fundamental: enquanto para as minhas colegas de bancada essa solução de compromisso deveria ser definitiva - dispensando uma revisão da lei e a realização de um segundo referendo -, para mim ela só poderia ser provisória até que se reunissem as condições para os portugueses se pronunciarem de novo sobre a despenalização do aborto e, no caso de uma vitória do "sim", legitimar uma mudança do quadro legal.

O primeiro referendo resultara, é certo, de um pacto entre as vontades pusilânimes de António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Mas, a partir do momento em que se realizou, só uma segunda consulta ao eleitorado poderia fornecer as bases de legitimidade para alterar eventualmente o efeito político do resultado anterior (por muito pouco vinculativo que este tivesse sido). É por isso que, tal como a legislação punitiva se manteve apesar de uma votação não vinculativa, parece-me óbvio que, se porventura esse cenário se repetir mas o "sim" ganhar, a maioria parlamentar terá o direito absolutamente legítimo de mudar a lei em função do resultado do novo referendo.

Não conheço nenhum Estado de direito democrático em que um crime inscrito na lei possa ser - a não ser transitoriamente, como admiti em relação à iniciativa parlamentar de Rosário Carneiro e Teresa Venda - isento de castigo. Se há razões humanitárias e sociais suficientemente ponderosas para despenalizar o que se convencionou ser um crime, então esse crime deve ser excluído da lei (neste caso, segundo a pergunta do referendo, até às dez semanas de gravidez).

Mas como pretender que tal crime continue a sê-lo e, ao mesmo tempo, advogar a sua despenalização indefinida e sem quaisquer prazos, segundo o que preconizam Marcelo Rebelo de Sousa e uma parte significativa dos tenores do "não"? Para além de constituir uma aberração jurídica que descredibiliza o Estado de direito, isso acaba por conduzir, no fundo, à transgressão radical do dogma que se quer preservar a todo o custo - ou seja, à descriminalização sem limites do aborto, à sua liberalização selvagem e, enfim, à institucionalização prática da sua clandestinidade. É o direito virado do avesso apenas para que pareça dogmaticamente direito.

Por troca com a conservação formal de um dogma intocável, aceita-se sem prazos e sem regras o que a despenalização proposta no referendo restringe a um limite de dez semanas e em estabelecimentos de saúde legalmente autorizados. Para não ofender um princípio absoluto e indiscutível, camuflam-se os factos quotidianos em que essa ofensa se mostra mais agressiva, atroz e degradante (sendo que o é também para a dignidade da mulher). A lógica do absolutismo doutrinário do "não" conduz ao mais absoluto relativismo. Ou, em alternativa, aos delírios inquisitoriais e à nostalgia do fogo purificador dos Césares das Neves.

Tal como algumas das melhores consciências do "não", eu também gostaria que o Estado, a sociedade, a família, as empresas, garantissem a todas as mulheres as condições de acesso a uma maternidade responsável (e acrescento: desejada), sem discriminações de qualquer espécie. Mas por maior que seja o nosso inconformismo perante as desigualdades sociais e a inoperância do Estado, que resposta vamos dar às mulheres mais dependentes e vulneráveis, enquanto as coisas forem o que são e o recurso ao aborto se mantiver escondido numa clandestinidade tão conveniente para a boa consciência das almas sensíveis?

O problema é precisamente que o "não" tem dogmas mas não tem respostas ou soluções, nem sequer perguntas que possam substituir aquela que é feita no referendo. Aliás, não falta quem tenha aceitado essa pergunta e que agora a rejeite sem propor nenhuma em troca. É infinitamente mais confortável negar do que perguntar e procurar uma resposta às verdades inconvenientes. Pois é também por isso que, no próximo domingo, apesar de todas as minhas dúvidas e perplexidades, irei votar "sim".

DN, 7-2-2007, pág. 13
 
Os défices de uma campanha

Mário Bettencourt Resendes
Jornalista

Não sou o primeiro a afirmá-lo: a campanha eleitoral que tem decorrido ao longo das últimas semanas foi, em termos gerais, esclarecedora e escapou, por regra, aos fundamentalismos de sinal contrário.

As excepções em que prevaleceram as tiradas demagógicas ou as iniciativas que visavam explorar emoções imediatas e superficiais, em detrimento dos apelos à razão e às convicções profundas, foram apenas isso: excepções. Se compararmos, por exemplo, o que agora se passou com os níveis de agressividade verbal e de "golpes baixos" das campanhas partidárias dos últimos anos (e também com a demagogia dominante nos dias que precederam, há oito anos, o referendo sobre o mesmo tema), concluir-se-á que são escassos os motivos para responsabilizar os promotores das ideias em confronto por um eventual alheamento dos eleitores na votação do próximo domingo.

Estou, por sinal, convencido de que, desta vez, a afluência às urnas deverá ultrapassar os 50 por cento dos inscritos, número indispensável à credibilização do instituto do referendo. Um desfecho contrário levantaria compreensíveis e legítimas dúvidas sobre o interesse dos portugueses por este instrumento de consulta popular, abrindo o debate público à volta de uma alteração da Lei Fundamental.

De regresso à campanha, e apesar da enunciada avaliação positiva, sublinho dois aspectos que me parece terem ficado à margem da maioria dos debates - ou que terão escapado ao cronista, apesar da atenção que, por dever de ofício e interesse, consagrou a quase todos os eventos divulgados nos mais variados meios de comunicação.

Do lado dos apologistas do "sim", foi escasso o desenvolvimento das acções a desencadear no período posterior à votação em caso de vitória das suas teses. Falou-se, aqui e ali, da necessidade de uma regulamentação, mas prevaleceu a ideia de que ninguém, a começar pela maioria parlamentar, tem ideias assentes sobre o modelo a seguir. E assim se deixou alastrar a ideia - falsa - de que se passará de um extremo para outro. Recordo apenas uma peça jornalística - julgo que aqui, no DN - em que "fontes socialistas" não identificadas faziam uma alusão genérica à possível adopção do "modelo alemão", onde tem um papel fundamental o aconselhamento hospitalar prévio e obrigatório.

Os portugueses que, no domingo, votam "sim", fazem-no, é certo, porque lhes indigna a criminalização de um acto a que nenhuma mulher, em consciência, recorre por livre-arbítrio. E ainda, para citar as palavras oportunas de José Sócrates, porque preferem o mal que é o aborto assistido por médicos e não por polícias - e muito menos nas condições degradantes e de alto risco em que se pratica um pouco por todo o País. O voto afirmativo teria, mesmo assim, maior conforto se estivesse já ancorado numa perspectiva clara da legislação regulamentadora.

Um número significativo de defensores do "não" falou, por seu lado, com frequência, da "razoabilidade" e do "equilíbrio" do enquadramento legal em vigor. E acrescentou-se que é adequada aos casos mais dramáticos a que um Estado social moderno e atento deve dar resposta. Tudo isto é certo, mas não é toda a verdade. Faltou saber, nomeadamente, quantos abortos legais se fizeram nos últimos anos em Portugal e, ainda, quantos terão ficado por fazer por recusa (com os mais diversos fundamentos...) das estruturas do Serviço Nacional de Saúde. E teria também sido útil conhecer as promessas, das mais variadas acções de apoio à maternidade, feitas na campanha de 1998, que foram cumpridas ao longo dos últimos oito anos.

Para finalizar, não se diga que o cronista flutua. Assume o voto no "sim", na plena convicção de que, nem por isso, na sua condição de crente, está condenado às profundezas do Inferno...

DN, 8-2-2007, pág. 12
 
Por imperativo de consciência

Ruben de Carvalho
Jornalista
rubencarvalho@mail.telepac.pt

Este texto é uma convicta, firme e determinada afirmação de que voto "sim" no referendo do próximo domingo.

Por assumida responsabilidade de formação cívica, por pura honestidade intelectual e também pela exigência da profissão que abracei, confronto-me porém com o dever de sustentar esta opção.

E, por estranho que possa parecer, defronto reais dificuldades.

O problema é que o dizer "sim" no referendo sobre a IGV parece-me uma transparente exigência de bom senso, de solidariedade humana, de compreensão activamente interventora nos problemas criados pela nossa vida em sociedade. Parece-me uma expressão de simples inteligência, de elementar humanidade, de puro respeito pelo ser humano, em especial, naturalmente, pela mulher.

Sinto-me a travar uma discussão medieval se entrar no debate com os argumentos pseudocientíficos do "não" e sinto-me cúmplice de infâmias ao sequer comentar as manipulações propagandísticas a que recorre.

Como subscrevo a fecunda recusa de admitir que existe em Portugal um conflito religioso, partilhando bem pelo contrário a ideia de que aí não reside o que nos separa ou divide, não alinho na manipulação religiosa do problema. Participar sequer na contestação do inaceitável abuso da homilia, do abuso da absolutamente respeitável religiosidade de cada um seria dar ilegítimos foros de dignidade cívica à obscenidade de tais abusos.

Poderia, coerentemente com compromissos de toda a vida, invocar que, uma vez mais, nos encontramos perante um problema de classe. Que a despenalização da IGV em opção no referendo se coloca de uma forma para ricos e de outra para pobres, que é um problema de todos mas não é igual para todos - e a diferença é de classe. Mas não preciso de o fazer: Clara Ferreira Alves, talvez exactamente porque não partilha todas as ideias que assumo, escreveu já tudo o que eu tinha a dizer. Na forma, seguramente melhor. Talvez também no fundo.

Depois, não quero voltar a ver mulheres com caras tapadas por blusões e xailes a entrar e sair de tribunais. Não quero ver polícias (a propósito, pagos pelos nossos impostos) a prender mulheres. Não quero juízes (pagos pelos nossos impostos) a condená-las. Não quero prisões (pagas pelos nossos impostos) a encarcerá-las.

Tão-só: por absoluto imperativo de consciência, voto "sim".

DN, 7-2-2007, pág. 48
 
É preciso votar

António José Teixeira

Termina hoje a campanha eleitoral do referendo da interrupção voluntária da gravidez. Oito anos depois da primeira auscultação do eleitorado volta a perguntar-se se há, ou não, razões para alterar o Código Penal. O debate público que mobilizou muitas forças políticas e sociais teve o mérito de nos questionar sobre princípios civilizacionais relevantes. Houve quem não se sentisse muito à vontade para os discutir com o alarido próprio das campanhas eleitorais. Houve quem radicalizasse o discurso e a atitude com pouca tolerância com os seus oponentes. Houve e há ainda quem não perceba que votar "sim" é tão legítimo como votar "não". E vice-versa.

Muitas vozes se ouviram, dentro e fora dos partidos, demonstrando que as fronteiras ideológicas nem sempre diferenciam questões de civilização, como é o caso da interrupção voluntária da gravidez. Na batalha política e dos argumentos ganhou nitidez uma clivagem fundamental: a religião. A campanha dividiu-se sobretudo entre os que se reconhecem no enraizamento católico e os que se reclamam laicistas. A fractura não é perfeita, porque há quem vote "sim" entre os católicos e quem vote "não" entre os laicos, mas as tendências dominantes derivam deste posicionamento cultural.

A legitimidade do "sim" e do "não" perante a pergunta que nos é colocada aconselha, ou melhor, exige, uma distinção clara de argumentos. O pior que pode resultar de uma campanha, que deve ser esclarecida, é baralhar os argumentos. Nos últimos dias, pretendeu-se confundir posições. De repente, pretende-se fazer passar a ideia de que votar "não" é a melhor maneira de garantir os resultados do "sim"... Pare- ce indiferente votar "sim" ou votar "não". E não é. Pode pensar-se que este reparo é apenas uma preocupação de quem tem uma resposta afirmativa para dar no domingo. Não é. Antes de mais, é uma questão de clareza e de responsabilidade. Há argumentos de peso para votar "não", tantos como para votar "sim". A escolha deve resultar de uma convicção que não precisa de habilidades nem de geometrias engenhosas.

Domingo, recorde-se, a pergunta é a seguinte: "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" Não há outra pergunta. É só esta. O que virá a seguir depende do sentido da nossa resposta. Seja "sim" ou seja "não", importa votar. Em consciência. Sem subterfúgios.

DN, 9-2-2007, pág. 11
 
Escolher responsavelmente

António Vitorino
Jurista

Comecemos por reconhecer que a campanha eleitoral para o referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez do próximo domingo foi substancialmente diferente da que ocorreu há oito anos.

Claro que aqui e além houve excessos e, tratando-se de um tema delicado e que suscita tantas emoções, algumas vezes não se terá resistido a brandir fantasmas ou a incorrer na tentação de lançar anátemas ao campo adversário. Mas tais atitudes foram quase sempre marginais.

O que releva é que houve de facto um debate de fundo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas e, sobretudo, que dos dois lados houve a preocupação de construir uma argumentação que sustentasse a sua própria posição e se contrapusesse aos argumentos do outro campo.

O debate foi esclarecedor? A crer nas sondagens dir-se-ia que sim. Na realidade ao longo da campanha o número de eleitores indecisos veio a diminuir. Como sucede entre nós, nos referendos, o dado menos fiável das sondagens reporta-se à taxa de participação no referendo. Com efeito, nos referendos anteriores, as sondagens indicavam índices de participação elevados, que, depois, não se confirmaram no dia do referendo, fosse o da interrupção voluntária da gravidez fosse o da regionalização.

Neste contexto, o referendo do próximo domingo também representa um teste à própria instituição referendária. Independentemente do que se pense sobre a exigência constitucional de uma taxa de participação efectiva de mais de 50 por cento dos eleitores inscritos para conferir força vinculativa ao resultado do referendo, a verdade é que desta feita não se pode dizer que a campanha eleitoral tenha sido um factor de desmobilização dos eleitores. Pelo contrário, a demarcação dos campos com base em linhas de argumentação distintas mas, no essencial, não extremadas permite clarificar os termos da escolha e, nessa medida, representa um incentivo adicional à participação dos eleitores. Espero que o referendo passe este teste de maturidade com nota positiva no próximo domingo.

Reconheço, contudo, que a clareza das opções que se colocam aos eleitores foi de algum modo afectada por algumas propostas de última hora vindas do campo do "não", tentando encontrar uma saída dita "a meio caminho". Estas propostas do tipo "crime sem pena", ou "incriminação com suspensão automática do processo penal" representam, em meu entender, uma tentativa de responder à força de um dos argumentos centrais da campanha do "sim", o da iniquidade da pena de prisão postulada pela lei actual e que se pretende alterar.

Houve quem, no campo do "sim", criticasse estas propostas considerando-as meramente tacticistas ou eivadas de uma certa hipocrisia normativa, argumentos estes que, em meu entender, até podem ter algum fundamento. Mas são de outra ordem as objecções essenciais que se podem (e devem) deduzir a estas propostas do campo do "não".

Desde logo este tipo de soluções não cria nenhum horizonte de esperança para resolver o flagelo do aborto clandestino, na medida em que a manutenção de uma moldura penal, mesmo que "neutralizada" em termos de aplicação da pena, sempre teria um efeito discriminatório, humilhante e hostilizador das mulheres que se encontram confrontadas com a decisão de interromper a gravidez até às dez semanas, inviabilizando que elas possam procurar, sem qualquer estigmatização, o apoio e a orientação possível e necessária junto do sistema de saúde público. Nesta dimensão, a despenalização até às dez semanas, que só a vitória do "sim" garante plenamente, é que pode representar um contributo para a redução radical da clandestinidade do aborto e consequentemente uma garantia segura para a saúde física e psíquica das mulheres.

A segunda razão tem a ver com o próprio resultado do referendo. Com efeito, nada legitima que, em caso de uma vitória do "não", se pretenda fazer passar a tese de que o referendo permite neutralizar o efeito penalizador da lei cuja alteração os eleitores rejeitaram no referendo. Seja ou não juridicamente vinculativo o resultado do referendo, não se me afigura possível fazer depender o seu resultado de uma interpretação do "não" que, além de não ser consensual (longe disso!) entre todos os que assim votam manifestamente contraria o sentido literal da pergunta colocada aos eleitores!

Só uma resposta "sim" pode garantir a abolição da pena de prisão nos casos de interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, criar uma janela de oportunidade de efectivo combate ao aborto clandestino para a sua redução drástica e responsabilizar o poder política para a adopção de um quadro legal de acompanhamento, aconselhamento e apoio a uma maternidade responsável.

Em suma, uma solução equilibrada e responsável!

DN, 9-2-2007, pág. 11
 
A (ir)responsabilidade do 'sim'

Maria José Nogueira Pinto
Jurista

Responsabilidade é uma das palavras de ordem da campanha do "sim". Votar "sim" - dizem - é ser responsável. Apresentam este "sim" como única solução para a despenalização da prática de aborto, como única forma de pôr um ponto final no aborto clandestino. E repetem - vezes sem conta - que é isto e apenas isto que está em causa no referendo de dia 11.

Mas aquilo que este "sim", que se diz responsável, não esperava era que muitos portugueses percebessem que, afinal, não é só isso que estará em causa no dia 11. Aquilo que este "sim" não esperava é que esta pergunta suscitasse - quando confrontada com as evidências - tantas outras perguntas. Perguntas para as quais este "sim" e a lei que oferece não encontram respostas.

Hoje o "sim" já não utiliza as palavras de ordem de 98. Este conceito de responsabilidade vem substituir a famosa frase "na minha barriga mando eu"; nem vemos mulheres, como vimos em 98, declararem orgulhosamente ter feito um aborto. O "sim" - o mesmo "sim" de 98 - percebeu que não poderia fazer esse tipo de campanha, ou utilizar esse tipo de argumentos. Se o aborto clandestino, sobretudo pelos riscos que lhe são associados, nos choca, o aborto legal - violência irreversível sobre outro - também nos choca. Porque temos hoje ainda mais certezas e estamos mais próximos desse outro. Então este "sim", que se diz responsável, arrancou do seu argumentário a sequer consideração desse outro. Porque não pode negar a sua existência, ele acaba por ser - numa lógica de debate e ponderação de valores - extremamente incómodo.

Será então responsável uma lei que - naquilo que é um conflito de interesses e ponderação de valores - ignora de forma absoluta uma das partes, a mais vulnerável, negando-lhe qualquer condição ou benefício de dúvida?

É uma lei que assenta numa negligência, não podendo pois ser responsável.

Sabemos também que este "sim" oferece como única resposta a liberalização e financiamento do aborto a pedido até às dez semanas. A mãe que quer abortar corre contra o tempo. Contra o prazo estabelecido pela lei. Por isso esta lei não oferece - e muito dificilmente poderia oferecer - aconselhamento, tempo para reflexão e ponderação de outras soluções. É por conseguinte uma lei cega. Uma lei que ignora condições sociais e financeiras. Uma lei que não dá tempo ou espaço para momentos de fragilidade, vulnerabilidade, dúvida ou angústia.

Será então responsável uma lei que - para casos tão distintos, protagonizados por mulheres tão diferentes - a todos responde com o aborto? Resposta rápida, única, legal e higiénica. E será esta a resposta que as mulheres portuguesas querem ouvir? Não esperarão elas mais que isso?

Este "sim" - dizem - acabará com o drama do aborto clandestino, e afirmam, mesmo contra a evidência dos números, que não irá contribuir necessariamente para o aumento do número total de abortos. Sabemos bem que, tal como no Reino Unido, em Espanha, em França ou nos EUA, os números vão aumentar. Porque ao número de abortos que se realizariam na clandestinidade - e agora se realizarão em estabelecimento de saúde autorizado - somar-se-ão os milhares de abortos que serão feitos porque esta prática passou a ser legal, livre e financiada. E para além do aborto legal continuaremos a ter o aborto ilegal: das mulheres que perderam a corrida contra o tempo e abortam depois das dez semanas, das mulheres que - pressionadas por um sentimento de culpa ou embaraço - não se dirigem ao SNS, onde terão de ser identificadas. Das jovens e adolescentes que, sendo menores, continuarão a optar pela clandestinidade a ter de enfrentar os seus pais.

Será responsável uma resposta que - prometendo a diminuição do número de abortos - acabará por contribuir para o seu aumento exponencial?

Este "sim" responsável apresenta-se também - por oposição ao "não" - como aquele que respeita a dignidade das mulheres portuguesas. Este "sim" acusa o "não" de má-fé. O "não", dizem - ao alertar para a evidência comprovada de que o número de abortos, após a liberalização, aumenta - parte do pressuposto de que as mulheres abortarão de "ânimo leve". O aborto não será utilizado como método anticonceptivo, dizem. E neste ponto o "sim" não negligencia, não é cego nem omite. O aborto não será utilizado como método anticonceptivo, exactamente porque se apresenta como solução pós-concepção. É que o "sim" - que se diz responsável - pretende consagrar a maternidade - após ser um facto - como uma opção. E a mulher que - against all odds - decidir ser mãe em condições emocionais, sociais ou financeiras difíceis sê-lo-á por opção. Opção pela qual poderá ser inteiramente responsabilizada. A maternidade - direito e opção - é cada vez mais entendida na segunda perspectiva.

O "não" - o "não" responsável - acredita que a aposta deve ser feita antes. O "não" entende que não se pode baixar os braços: são precisas mais e melhores respostas. Educação sexual, planeamento familiar, verdadeiras políticas de apoio à família. Políticas que existem e funcionam nos países - tantas vezes citados por este "sim" que se diz responsável - e que têm legislações menos restritivas em relação à prática de aborto. Se este "sim", que é responsável, nos aponta outros países como exemplo, que não esconda nem omita os outros exemplos que talvez prefiramos seguir.

O "sim" - que se diz responsável - de que vos falo é o "sim" efectivamente responsável por criar e reforçar, neste momento, outras soluções que não o aborto. De certa forma, ao oferecer- -nos esta solução, este é o "sim" responsável que se desresponsabiliza.

DN, 9-2-2007, pág. 12
 
O referendo vai a referendo

Ana Sá Lopes
ana.s.lopes@dn..pt

Se, na noite de domingo se concluir que a maioria dos portugueses, repetindo 1998, decidiu alhear-se do referendo sobre o aborto, há uma consequência evidente: ganhe o "sim" ou ganhe o "não", os referendos acabam em Portugal. A regionalização será feita por portas travessas (de maneira a contornar a obrigação constitucional de a referendar) e sobre o Tratado Constitucional europeu nem é bom falar. É o referendo que vai a referendo. Tanto como a despenalização do aborto, está em causa o direito à decisão popular fora das eleições. Se o povo não quer decidir, ninguém mais se vai lembrar de lhe perguntar nada nos próximos anos.

Para domingo, está tudo absolutamente em aberto. A abstenção é uma incógnita e o "não" está em condições de ganhar - as sondagens também se enganaram em 1998. Longe das cidades e dos grandes meios de comunicação social há um país profundamente católico que trabalhou arduamente para propagar a mensagem do "dever perante Deus". O país que imprimiu os folhetos, distribuídos nas caixas de correio, onde se lê que "é um facto inquestionável que a protecção especial de Deus se reflectiu na transformação miraculosa - religiosa, moral e até económica - de Portugal que se seguiu à consagração do nosso País ao Imaculado Coração de Maria, feito pelos bispos portugueses em 1931 e 1938", está vivo e recomenda-se mais que a intelligentsia dos centros urbanos poderá, se calhar, supor.

Talvez por isso o "nim" do PSD deu lugar a um objectivo "não", com um de início titubeante Marques Mendes transformado num emérito opositor à despenalização (enquanto defendia a suspensão dos julgamentos, mas não dos exames ginecológicos às mulheres que abortaram, a reboque da estratégia do "não" soft desenhado pelo prof. Marcelo). Mas quando Laurinda Alves acusa Sócrates de querer "perseguir as mulheres" sabemos que já entrámos no delírio. O "não" verdadeiramente "não" é coerente: crime é crime e mantenha-se tudo como dantes. Este "não" meio "sim" atamancado faz parte de uma manobra de quem quer ruído e confusão, convencido que está que ganha com a desmobilização popular. E pode ganhar.

DN, 9-2-2007, pág. 13
 
O referendo também vai hoje a votos

Paula Sá e Susete Francisco

Se o referendo ficar hoje marcado por uma fraca participação há que "tirar as consequências" dessa situação - considerando os "aprofundamentos que possam ser feitos a este instituto".

A posição é expressa por Alberto Martins, líder parlamentar do PS: "Se mais uma vez [a consulta popular] não tiver uma participação elevada deve discutir-se se a sociedade portuguesa incorporou como seu este mecanismo." Os resultados anteriores apontam para uma conclusão negativa: em 1998, o referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez teve uma abstenção de 68%. Meses depois, a regionalização contou 51,8%. Alberto Martins diz, no entanto, que no primeiro caso "não houve uma clareza de alternativas", enquanto no segundo o não empenhamento partidário (nomeadamente do PS) terá contribuído para uma menor mobilização.

Independentemente dos resultados de hoje, é certo que a história do referendo não acabará aqui. "A médio prazo, há decisões políticas importantes" associadas a referendos, lembra Alberto Martins, evocando a Constituição Europeia e a regionalização (neste caso, uma imposição constitucional). O líder parlamentar do PS diz que é ainda prematuro discutir soluções que possam potenciar a participação dos portugueses. Mas avança uma hipótese - as consultas coincidirem com eleições legislativas, "tradicionalmente mais participadas".

O ex-líder do grupo parlamentar do PSD Guilherme Silva entende que se se verificar hoje uma fraca afluência às urnas é um sinal de que o instituto do referendo em Portugal não correspondeu ao desejo dos constituintes que introduziram esta figura na Lei Fundamental, ou seja, a de uma maior participação cívica dos cidadãos. "Se assim for, temos que pensar o que fazer para que as consultas populares sejam verdadeiros exercícios de democracia."

O deputado social-democrata enquadra, no entanto, a eventual alta abstenção na "crise participativa" que também se verifica nos restantes actos eleitorais, como as legislativas, presidenciais e autárquicas. Este, diz, é um problema transversal a todas as democracias representativas.

Na sua opinião, a "partidarização" dos referendos não é desejável, porque prejudica o despertar para a participação dos cidadãos e para o esclarecimento dos temas referendados. Mas mesmo que a participação neste referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez se mantenha ao nível da consulta de 1998, Guilherme Silva não vê razão para ditar a morte deste instituto.

Miguel Portas, eurodeputado do BE, considera que se a participação no referendo que hoje se realiza for "substantivamente" maior do que a verificada em 1998, mesmo que não atinja os 50% necessários à vinculação do resultado, "não coloca em causa" a figura das consultas populares no País. "Haverá seguramente maior participação. De outro modo seria muito complicado."

Gama de soluções

António Costa Pinto partilha desta opinião de que uma hipotética forte abstenção não deverá conduzir ao esvaziamento do instituto do referendo, mas admite que perde "alguma legitimidade".

O analista político sublinha que os referendos na Europa não têm grande participação, sobretudo porque se realizam sobre matérias no limiar do campo político. Os partidos, diz, são essenciais à mobilização eleitoral e quanto mais fraco o seu envolvimento nos referendos menor é a participação dos cidadãos. "Os partidos são criticados, mas têm a importante função de simplificar as opções para os cidadãos", diz Costa Pinto.

O investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa lembra que as democracias encontraram várias soluções para tentar obviar a fraca participação nos referendos. E dá duas das hipóteses: voto obrigatório e o aumento do número de consultas à população, através de referendos locais que permita criar o hábito da participação.

O caso brasileiro, no qual o voto é obrigatório, serve de exemplo. "Verifica-se que mesmo quando a penalização não é alta, a participação é muito maior, mesmo em democracias com graves problemas económicos e sociais, como é o caso do Brasil." Segundo o investigador, a abstenção naquele país é da ordem dos 15%, estimando-se que, se não houvesse voto obrigatório, cresceria acima dos 50%.

Para o analista político, "o importante é salientar que há uma variedade de opções nos sistemas democráticos para revitalizarem os referendo e Portugal, jovem democracia, está longe de as esgotar".

DN, 11-2-2007, pág. 2
 
Quatro resultados possíveis que podem ou não alterar o Código Penal

Ana Sá Lopes

Só há quatro resultados possíveis para o referendo de hoje: o "sim" vence com uma participação de mais de 50% dos eleitores; o "sim" vence, mas não aparecem nas mesas de voto o mínimo de votantes necessário para que o referendo se torne vinculativo; o "não" ganha com uma legitimidade superior à que teve em 1998, obrigando a Assembleia a não legislar no sentido da despenalização do aborto até às dez semanas, por opção da mulher, num serviço de saúde legalmente autorizado; o "não" ganha com uma legitimidade idêntica à de 1998, a do referendo que não obriga a Assembleia da República a não legislar no sentido da despenalização.

Consequências? No caso de um "sim" vencedor com mais de 50% dos votos, está dado o claro sinal para o início do processo de revogação do Código Penal, de onde será retirada a pena de prisão para as mulheres que abortem até às dez semanas de gravidez. Será também iniciado o processo de adaptação do Serviço Nacional de Saúde à possibilidade de as mulheres abortarem até às dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, tal como prevê a pergunta.

O "sim" vinculativo torna-se, necessariamente, uma vitória política para José Sócrates, que empenhou o PS e o seu prestígio de primeiro-ministro nesta batalha, relativamente à qual se tinha comprometido durante a campanha eleitoral para as legislativas - ao contrário do que tinha acontecido com António Guterres, adversário da despenalização do aborto.

Se o "sim" vencer num cenário de menos de 50% de votantes, José Sócrates já anunciou que irá, na mesma, despenalizar o aborto. Apesar da legitimidade jurídica e política (agir do mesmo modo que em 98), é óbvio que este cenário é passível de vir a criar contestação em alguns sectores mais conservadores. Tendo a questão ido a referendo, o facto de metade do país não ter desejado pronunciar-se diminui o à-vontade na alteração da lei.

Se o "não" vencer com legitimidade idêntica à de 1998 - abstenção superior a 50% -, José Sócrates já se comprometeu a respeitar o resultado desse referendo, apesar de não ser vinculativo. Mesmo com a maioria esmagadora da Assembleia da República a favor da despenalização do aborto e da possibilidade da legalização da sua prática até às dez semanas, nada acontecerá, porque o PS pensa que deve, apesar de a Constituição não obrigar, respeitar o voto daqueles que foram às urnas.

Se o "não" vencer com uma legitimidade superior à que teve em 1998, não haverá possibilidade de abortar até às dez semanas sem sanção penal, apesar de PSD e CDS terem afirmado propor soluções intermédias como a suspensão dos julgamentos para o aborto clandestino.

DN, 11-2-2007, pág. 3
 
Legislem, senhores deputados

António José Teixeira

Os cidadãos eleitores que quiseram ter uma palavra a dizer sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) disseram maioritariamente que "sim". Quem se sentiu interpelado a assumir uma posição assumiu-a. Tal como aconteceu em 1998, o eleitorado interessado na decisão política disse de sua justiça. Há pouco mais de oito anos um "não" inibiu os legisladores de alterarem a lei. Agora, os interessados disseram "sim" e nada deve condicionar os deputados na concretização do sentido referendado no voto.

Não deve ignorar-se que, tal como em 1998, o referendo não foi vinculativo. Isto é, mais de 50% dos eleitores optaram por não se pronunciar. Estiveram e estão no seu legítimo direito. O mesmo legítimo direito que confere aos deputados liberdade para legislar. O carácter não vinculativo do referendo apenas retira a obrigação legislativa ao Parlamento. Não a proíbe nem sequer a condiciona. Logo, se há algum sinal válido a respeitar é aquele que se tornou maioritário entre os cidadãos que têm uma opinião validamente expressa. E esse sinal é o "sim".

O valor da abstenção foi mais uma vez elevado. Não tanto como da primeira vez, mas ainda muito elevado. E, mesmo que descontemos a margem dos eleitores-fantasmas que continuam a viciar os cadernos eleitorais, a taxa de abstenção é preocupante. Há muitas leituras possíveis para o desinteresse dos cidadãos. Além do desgaste do sistema político, há outras tentativas de explicação:

> muitos eleitores não terão considerado esta questão essencial;

> não terão sentido a IVG como problema seu;

> não afirmam uma cultura de conquista de direitos (tal como no passado, herdaram e não conquistaram o direito ao divórcio);

> não sentiram o referendo na órbita de um conflito partidário, o que poderia estimular a participação (o PSD dividiu-se, não se assumiu);

> revelam algum conservadorismo paralisante quando são colocados perante mudanças sociais;

> desconfiam de que a sua decisão não contribua para coisa nenhuma. Há demasiados exemplos de inconsequência legislativa ou, pior, de falta de concretização. Ainda hoje as actuais possibilidades legais de IVG não têm aplicação acessível;

> finalmente, nos últimos dias de campanha, houve tentativas de confundir os eleitores. A certa altura já não se sabia quem defendia afinal a despenalização da IVG.

O "sim" de ontem demonstra em qualquer caso que a Igreja Católica, que se mobilizou fortemente através da sua hierarquia e dos seus leigos mais influentes, não tem a influência social que já teve. Não se deve desvalorizar, mas já terá sido mais decisiva para a definição dos valores e dos costumes.

A vitória do "sim" não deve ser lida co- mo uma vitória partidária, mesmo se a esquerda tem razões de contentamento. A IVG não é um troféu. É um drama que deve exigir acompanhamento e regras claras para atitudes responsáveis. Cabe agora aos deputados legislar e ao Governo aplicar decididamente a vontade dos cidadãos interessados.

DN, 12-2-2007, pág. 3
 
E agora como vai ser?

Luís Delgado
Jornalista

A Constituição da República Portuguesa é clara: "O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento." Assim sendo, e perante os resultados da participação neste segundo referendo sobre o aborto, a maioria de esquerda no Parlamento, capitaneada pelo PS e pelo PM, vai fazer de conta que esta consulta pública e directa aos eleitores não é para respeitar, na sua fórmula de vinculação?

Vamos por partes: quando o PS e o PM partiram para este referendo sabiam as regras do jogo, que não podiam ser mais claras. Só era possível vincular a maioria se mais de metade do eleitorado votasse. E os eleitores, na sua soberana decisão, que tem de ser integralmente respeitada, decidiram não aparecer nas urnas, por todos os motivos, incluindo os que acham que a abstenção é uma forma de expressão legítima de não aceitação do referendo.

Por outras palavras, e como ninguém pode explicar o novo fracasso referendário com ideias simplistas, como a questão do mau tempo, é bom fazer o que parece básico e legal: cumprir a Constituição e não aceitar uma mudança da lei com um referendo que não vincula ninguém.

O PM e a esquerda vão agora comprar uma guerra dura, que vai desgastar e envolver os partidos, o Governo, o Presidente da República e, em última instância, todos os portugueses. Quem é que vai explicar que se altera a lei, apesar dos resultados da abstenção, impondo a todos o que a própria Constituição não permite e nega com toda a clareza.

É verdade, mas isso é outra conversa, que o grande erro dos referendos em Portugal não é, nem nunca foi, a ideia de que os eleitores não estão dispostos a assumir as suas responsabilidades de uma forma directa, mas o simples facto de a barreira dos 50 por cento ser absurda. Se todos soubessem, previamente, que qualquer que fosse a participação num referendo ele seria para cumprir, e por isso vinculativo, deixaria de existir esta presunção de fracasso permanente.

Um referendo deve ter um valor igual ao de uma eleição tradicional, onde ninguém está preocupado com as maiorias vinculativas. Se assim não fosse, os EUA não teriam um presidente eleito e muitos outros países ficariam ingovernáveis. Mas isso é um problema que os legisladores devem resolver no futuro.

Agora, e com as actuais regras em vigor, os portugueses não apareceram para votar em maioria, mantiveram mais ou menos os mesmos índices de desinteresse pelo assunto, e isso até pode ter acontecido porque presumiam que a primeira e mais importante barreira - a da participação - não seria alcançada em nenhuma circunstância, e que por isso não existiria nenhuma alteração legislativa.

Seja como for, o PM, o Governo e a maioria deverão ser os primeiros a respeitar a nossa lei fundamental, e mal estaremos, em todos os casos, se assim não acontecer. É certo que eles prometeram mexer na lei, mesmo sem a maioria vinculativa, mas é um princípio de pensamento totalitário e de extraordinária falta de respeito pelos portugueses. Felizmente ainda existe um Presidente da República e um Tribunal Constitucional, que terão uma palavra final, e decisiva, sobre essa matéria.

DN, 12-2-2007, pág. 28
 
Ainda o referendo

Eduardo Dâmaso

O resultado do referendo que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas coloca vários desafios ao Estado e ao Governo que são já conhecidos e foram debatidos na campanha. Como vai o Serviço Nacional de Saúde organizar-se para receber esta prestação de cuidados médicos à mulher; como vão organizar-se os serviços para superar eventuais bloqueios que derivem da respeitável mas não insuperável invocação de objecção de consciência por parte dos médicos; em que moldes vai o Estado convencionar com as clínicas privadas a prestação destes cuidados e a fiscalização do que vier a ser acordado; quanto tempo vai demorar a alteração ao Código Penal, enfim, o rosário de trabalhos é grande e dá a dimensão da gigantesca tarefa que ainda está pela frente.

Uma coisa é certa: apesar da vontade colocada pelo Governo e pessoalmente pelo primeiro-ministro na rápida concretização da vontade manifestada pela maioria de portugueses que votou a favor do sim no referendo, é provável que o processo demore alguns longos meses e só em 2008 esteja integralmente concluído.

Neste contexto ganham alguma relevância as questões que têm sido colocadas sobre o que vai acontecer aos processos judiciais que possam estar em curso contra mulheres que abortaram, seja na fase de inquérito ou de julgamento, enquanto não entrar em vigor a nova lei. Sabendo-se que em Portugal vigora o princípio da legalidade, ou seja, todos os indícios criminais conhecidos ou participados têm de ser investigados, poderá ocorrer a suprema ironia (e injustiça!) de serem abertos inquéritos ou realizados julgamentos que ignorem a realidade política e jurídica criada com o resultado do referendo. É difícil mas, em teoria, é possível.

Há soluções jurídicas que podem ser aplicadas, desde expedientes dilatórios para evitar julgamentos ou o arquivamento dos processos ainda em fase de inquérito, mas no essencial tudo está dependente do equilíbrio e bom senso dos magistrados.

Se as delongas forem muitas na entrada em vigor desta nova clásula de exclusão da ilicitude em relação ao crime de aborto, sempre haverá, presume-se, a possibilidade de o Governo não indicar este crime nas prioridades de investigação criminal que em Abril vai apresentar na Assembleia da Re- pública. O ideal, porém, seria que tal não fosse necessário. E que, ao menos desta vez, fizéssemos tudo bem e rápido.

DN, 13-2-2007, pág. 9
 
A libertação do referendo

José Medeiros Ferreira
jmedeirosf@clix.pt
Professor universitário

O instituto do referendo libertou-se, este domingo, da sua utilização táctica para adiar a irreversível despenalização do aborto se feito nas primeiras semanas de gravidez. Com a vitória do "sim" tudo acaba como devia ter começado: com a Assembleia da República (AR) a legislar.

No meu último artigo tracei a história dessa estratégia da aranha. Há muita gente que se habituou a atrasar uma década o que o Estado português tem de fazer. Foi assim com a descolonização, repetiu-se com a despenalização do aborto. Como representam o atavismo de muitos, o que faz parecer modernos outros, continuarão a gozar de prestígio no País.

A vitória do "sim" no referendo de domingo 11 não é fundamentalmente uma vitória da esquerda, embora sejam de partidos à esquerda os projectos mais consequentes apresentados na AR, e possivelmente assim continuará a ser quando se iniciar o novo processo legislativo. Depois da campanha referendária, o que o resultado da votação revela é uma consolidação da laicidade do comportamento cidadão dos portugueses, sejam eles católicos ou não.

É verdade que a Igreja Católica foi bem mais diversa neste referendo do que fora no anterior, para já não recordar a mobilização ultramontana de 1983-1984 quando a Assembleia elaborou a Lei 6/84.

Desta vez não só a mais alta hierarquia da Igreja foi mais discreta, distinguindo-se aí o tom pastoral mas apaziguador do próprio cardeal D. José Policarpo, como os leigos católicos favoráveis ao "sim" testemunharam com mais assertividade nessa condição. Desde Maria de Belém a José Manuel Pureza foram muitos e importantes os leigos que se manifestaram antiortodoxamente num tema delicado, é certo, mas que não constitui dogma. Muitos votantes crentes libertaram-se assim de constrangimentos exteriores à sua condição de cidadãos e optaram pelo "sim" à despenalização. A sociedade portuguesa laicizou-se mais sem que isso represente necessariamente uma derrota para a Igreja. Tudo dependerá do comportamento dos sectores mais radicais desta, quer no processo legislativo que se avizinha, quer no proselitismo sobre a objecção de consciência dos médicos que obviamente deve ser contemplada e regulamentada.

Agora que o resultado do referendo está adquirido, quero chamar a atenção para a omissão que a figura do progenitor mereceu em todo o debate. Pelo menos nos casais que optaram pelo casamento como forma de constituir família, deve haver um ponto na lei em que a sua vontade se possa manifestar, que mais não seja na fase de aconselhamento. Não por não confiar no discernimento da mulher mas para que a vontade seja repartida e a responsabilidade mútua. Porém a vontade da mulher deve ser absoluta no caso de ela não querer proceder à IVG. Este ponto é mais importante para o futuro do que actualmente possa parecer.

Tenho por óbvio que a indicação dada no referendo sobre "a despenalização da IVG, se realizado, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado" vai ser seguida pela maioria dos deputados na AR.

A salvaguarda que o reconstituinte introduziu sobre o carácter vinculativo do referendo abaixo ou acima dos 50% do universo do corpo eleitoral acaba por ser ultrapassada pela enorme força e vigor que uma votação popular directa implica. Na história política do referendo em Portugal, se é verdade que nos dois anteriores não houve essa maioria a participar, também é verdade que o Parlamento se inibiu de votar qualquer lei nas matérias em apreço, dada a vitória do "não" no aborto e na regionalização. Pois, agora que o "sim" ganhou com mais votos e maior percentagem, tem a AR luz verde para legislar no sentido do voto expresso.

Não creio que o instituto do referendo sofra mais com a abstenção do que outras figuras eleitorais. O referendo não sofre mais politicamente com as altas taxas de abstenção do que as outras votações pois, como vimos, a AR acaba por seguir a vontade dos eleitores como ela se expressou, e as condições de salvaguarda para ele ser vinculativo são formais e nenhum legislador se arriscaria a introduzir a mesma condição para as outras eleições, mesmo para o cargo de Presidente da República! Pior solução seria tornar o voto obrigatório.

O referendo acaba de sair da dura prova imposta pela sua utilização táctica há cerca de oito anos. Deixem-no agora descansar um pouco. Ele voltará mais cedo ou mais tarde para a questão europeia.

DN, 13-2-2007, pág. 9
 
O dever do voto

Pedro Rolo Duarte
Jornalista
pedro.roloduarte@gmail.com

Os portugueses adoram dar palpites. Os portugueses têm opinião sobre tudo, mesmo sobre o que não conhecem. Os portugueses falam pelos cotovelos - e quando falam não se importam nada de revelar a sua ignorância. Os portugueses até têm uma frase que previamente os desculpa pelo que não se inibem de dizer a seguir: "Eu disso não sei nada, mas acho que...."

Ouvi muitos portugueses, em Lisboa, dizer que não percebiam porque se fazia um referendo se já tinha sido feito um outro referendo - mas ainda assim tinham opinião e iam votar. Também ouvi dizer que os homens não de-viam votar porque o tema não era com eles.

Os portugueses são solícitos e participativos, costumam dizer os políticos. Se um português perdesse uma ou duas horas, na semana passada, a navegar pela blogosfera, encontrava um universo empenhado a debater forte e feio sobre o referendo e o que estava em causa. A RTP organizou dois debates que ocuparam mais de cinco horas de emissão. Há milhares de páginas de jornal ocupadas com o assunto. Em rigor, ninguém pode dizer que lhe faltava elementos para formar uma opinião.

Na verdade, no entanto, mais de metade dos portugueses eleitores preferiu não se dar ao trabalho de votar. Os políticos profissionais desvalorizaram o dado - pudera... -, mas não é possível ignorar cinco milhões de inscritos que passaram ao lado do referendo. Cinco milhões... Entre eles estão muitos dos que adoram dar palpites e têm opinião sobre tudo, muitos dos que gritam nas ruas que "os políticos são todos iguais", muitos dos que protestam, elogiam, opinam e acham que têm direitos. Até mesmo o direito a contestar a democracia.

Perante esta grosseira forma de cidadania, apetece defender a dúbia ideia de "democracia musculada" e legislar o "voto obrigatório". Ou a penalização de quem não vota. Confesso que começa a incomodar-me esta nossa pose liberal muito simpática e "querida" do voto como "dever cívico". A realização de eleições e referendos custa dinheiro e esforço ao país e responde a uma ideia de regime que presume a participação dos cidadãos. Se insistimos no "porreirismo" do voto livre, sujeitamo-nos ao pior do regime: ninguém cumpre os seus deveres de cidadania, mas todos têm exigências a fazer. Parece-me que está na altura de abrir este outro debate: não deveremos instituir aqui, como em países civilizados (a Bél-gica), ou que sofrem do mesmo défice de cidadania (o Brasil), o voto obrigatório?

DN, 14-2-2007, pág. 48
 
Aborto

“Leiam a mensagem”

O Presidente da República remete para a mensagem
enviada à Assembleia da República quaisquer explicações
sobre a promulgação da lei sobre o aborto.
Confrontado, hoje, em Riga, na Letónia, com a questão,
Cavaco Silva disse esperar que os deputados leiam a sua nota
com atenção.
“Na mensagem eu digo qual é a posição do Presidente da
República e quem a ler com atenção, e espero que os deputados
e outros legisladores a leiam com atenção, ficará a
saber aquilo que eu quero dizer”, referiu.
“Enviei hoje à Assembleia da República uma mensagem em
que de forma detalhada explico a minha posição em relação
ao diploma da interrupção voluntária da gravidez e, sobre
essa matéria, não digo agora nem voltarei a dizer absolutamente
mais nada”, sublinhou Cavaco Silva, em declarações
em Riga, na Letónia, onde participa numa reunião dos presidentes
não-executivos da União Europeia, o chamado “Grupo
de Arraiolos”.

A mensagem do Presidente à Assembleia da República

Na nota na página oficial da Presidência, Cavaco Silva alude
a todo o processo legislativo e identifica um conjunto de
matérias que devem merecer especial atenção por parte dos
titulares do poder legislativo e regulamentar.
Na mensagem à Assembleia, o Presidente da República
defende que - ao contrário do que se lê no diploma - a
mulher deveria ser informada sobre a adopção, que a publicidade
ao aborto deveria ser restringida e que os médicos
objectores de consciência não deveriam estar excluídos de
dar as consultas prévias à interrupção da gravidez.
Cavaco Silva propõe que o Estado crie “uma rede pública de
acompanhamento psicológico e social, para as mulheres que
o pretendam” ou apoie “a acção realizada neste domínio por
entidades privadas sem fins lucrativos”.
Lê-se também nesta nota que “a existência de um período de
reflexão só faz sentido se, antes ou durante esse período, a
mulher grávida tiver acesso ao máximo de informação sobre
um acto cujas consequências serão sempre irreversíveis”.

Reacções diferentes

Do lado do Governo, em declarações à Lusa, o ministro dos
Assuntos Parlamentares, Augusto Santos Silva, congratulouse
hoje com a decisão do Presidente da República de promulgar
a lei do aborto, prometendo que o Governo tomará
em consideração as recomendações contidas na mensagem
do Chefe de Estado.
Quanto ao PCP, também se congratulou com a promulgação
da lei do aborto, mas criticou o conteúdo da mensagem
enviada pelo Presidente da República ao Parlamento, considerando
que assenta num “pressuposto de desconfiança em
relação à decisão livre da mulher”. O líder parlamentar,
Bernardino Soares, considera a mensagem de Cavaco Silva
“uma espécie de guia para a regulamentação” e reitera que
“não se pode agora incluir aquilo que a Assembleia da
República quis excluir”.
Quanto ao Bloco de Esquerda, acusa Cavaco Silva de querer
condicionar a decisão livre da mulher. O líder parlamentar
do BE, Luís Fazenda, diz que “a mensagem visa condicionar
a decisão livre da mulher, mas a lei é a lei” e afirma que
“não faz sentido os médicos que contrariam a prática
(objectores de consciência) irem aconselhar as mulheres. O
Presidente da República entende que assim deve ser mas
entende mal”.
Já o CDS-PP, pela voz do líder José Ribeiro e Castro, manifestou
o seu desapontamento com a promulgação da lei por
parte do Presidente da República.
Apesar de considerar positivas as recomendações incluídas
na mensagem de Cavaco Silva, Ribeiro e Castro defendeu
que o chefe de Estado deveria ter tido um papel mais activo
neste processo. E termina mesmo dizendo que “a promulgação
desta lei marca um momento de profunda divergência
e profundo desapontamento com parte do eleitorado
que elegeu o professor Cavaco Silva”.

RRP1, 10-4-2007
 
Abortos muito abaixo do previsto

FERNANDA CÂNCIO

"Estou convicto de que não vamos ultrapassar os dez mil abortos por ano. Se assim for, teremos uma taxa de 10% em função do número de nascimentos, o que tornaria Portugal um caso excepcional, com uma das mais baixas taxas de aborto no mundo, em termos de países que legalizaram a interrupção da gravidez por vontade da mulher." Para Jorge Branco, o coordenador do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, estes cinco meses de vigência da lei serão suficientes para avançar com uma extrapolação. "Pelos dados que temos, a situação está mais ou menos estabilizada. E como português e como médico só posso ficar muito feliz por termos uma taxa de aborto inferior à da generalidade dos países da Europa."

A concretizar-se esta previsão, Portugal ficaria, de acordo com os dados existentes sobre a interrupção da gravidez no mundo, ao nível de um país com a Irlanda, em que o aborto é rigorosamente proibido (a lei é mais severa que a anterior lei portuguesa) mas onde as mulheres têm a possibilidade de ir ao Reino Unido interromper a gravidez. Com uma taxa de 9,2% (valor de 2004), a muito católica Irlanda é um dos países da Europa ocidental com a taxa mais baixa. Com menos só a Áustria (3%, segundo dados de 2000), Malta (1,7%) e a Polónia (0,06% em 2004). Destes, só a Áustria tem uma legislação permissiva. Todos os outros países europeus que legalizaram a interrupção da gravidez nas primeiras semanas por vontade da mulher têm taxas acima dos 10%. A Holanda, um dos primeiros países a fazer passar uma legislação permissiva, e considerada a nível mundial um caso de sucesso por ter reduzido paulatinamente a taxa de aborto no novo quadro legal, apresenta 13% (dados de 2004), assim como a Suíça. No mesmo ano, a Espanha tinha 15,8%. E em 2005 a Dinamarca apresentava números correspondentes a 15%, mesmo assim abaixo da Noruega (19,7%), França (21,5%) e do Reino Unido (21,8%).

Foi com base nestas realidades, que se estabeleceu a estimativa, para Portugal, de 20 mil abortos por ano. "Era um número encontrado a partir daquilo que é considerado, internacionalmente, a referência: 20% do número de nascimentos", explica Jorge Branco, que confessa a sua agradável surpresa com a situação nacional. "Não nos pode passar pela cabeça acabar com as interrupções de gravidez, é algo que vai existir sempre, mas o programa nacional de saúde reprodutiva tem como objectivo reduzi-las. E se este número se confirmar, significa que se fez até agora um bom trabalho nesta área."

A alegria de Jorge Branco não é porém partilhada por dois activistas que no referendo do aborto estiveram em campos opostos, Alexandra Teté, da associação Mulheres em Acção (que lutou pelo Não) e Duarte Vilar, da associação para o Planeamento da Família (que defendeu o Sim). Tanto um como outro têm reservas em crer numa taxa tão baixa - e, por motivos muito semelhantes.

"É cedo para tirar sérias conclusões", diz Teté. "Há a possibilidade de ainda se estar a viver um pouco a realidade da lei anterior - tanto no sentido de não se fazer aborto como no de ainda haver aborto clandestino. Aliás, não acreditamos que vá chegar ao fim o aborto clandestino - até por motivos de privacidade." Vilar vai no mesmo sentido: "Não podemos esperar que em cinco meses o aborto ilegal desapareça. Como, de resto, a ida às clínicas espanholas. É preciso esperar para ver. Devemos ser prudentes." Relembrando o estudo que a APF fez, revelado antes do referendo, em que a partir de uma série de entrevistas a uma amostra representativa de portuguesas se chegava a uma estimativa de "16 a 17 mil abortos por ano", Vilar reforça a ideia da prudência. "Mas, obviamente, se for menos que isso só nos temos de congratular."

Quantos aos motivos que poderiam levar a um tão baixo número de abortos, este especialista em planeamento familiar aponta uma hipótese. "Segundo os últimos dados disponíveis, 87% das mulheres em idade fértil usam contraceptivos e uma altíssima percentagem destas, cerca de 70%, usa a pílula que é um método muitíssimo seguro." Teté aponta ainda a possibilidade de "o consumo da pílula do dia seguinte, de venda livre, contribuir para diminuir muito o número de abortos." E conclui: "A minha posição é quem me dera que não fosse feito nenhum. São sempre abortos de mais mesmo quando sejam menos que aqueles do que se previa."

DN, 28-11-2007
 
Duas chávenas de café agravam risco de aborto

RODRIGO CABRITA

O consumo de duas chávenas de café forte por dia durante a gravidez aumentam substancialmente o risco de abortos espontâneos. A conclusão é de um estudo publicado na última edição do American Journal of Obstetrics and Gynecology, que vem confirmar resultados de pesquisas anteriores.

Os autores do estudo aconselham, por isso, as grávidas a reduzirem o consumo de bebidas cafeínadas. As náuseas matinais e os vómitos, característicos dos primeiros meses da gravidez, acabam por levar naturalmente muitas mulheres a eviraem tomar café, revela o investigador De-Kun Li, do centro Kaiser Permanente, uma importante rede hospitalar de pesquisa com objectivos não lucrativos, o principal autor do estudo.

O caracter inovador deste estudo consiste no facto de, pela primeira vez, ter isolado os sintomas específicos da gravidez, como a náusea e o vómito, de modo a melhor destacar a ligação entre a absorção da cafeína e o risco de abortos espontâenos. Foram analisadas 1063 mulheres grávidas entre 1996 e 1998 que continuaram a tomar bebidas com cafeína. Constatou-se que as mulheres que consumiam, pelo menos, duas chávenas de café por dia, o equivalente a 200 miligramas de cafeína, tinham um risco duas vezes maior de sofrer um aborto do que aquelas que não a tinham consumido.

Mesmo para as mulheres que consumiam uma dose inferior, o risco de perderem o seus bebés continuava a ser 40% maior face às que não ingeriam nenhuma cafeína.

O risco está concretamente associado à cafeína e não a outro componentes químicos do café, uma vez que o consumo de outras bebidas cafeínadas, como o chá ou o chocolate quente, também evidenciam um aumento do risco.

DN, 22-1-2008
 
Falta de informação mantém aborto ilegal

CÉU NEVES e RITA CARVALHO

Aborto. Faz hoje um ano que os portugueses votaram 'sim' ao aborto. A lei está em vigor há mais de seis meses, mas há quem continue a recorrer às clínicas clandestinas ou ao citotec. E, até agora, só duas estão a ser investigadas
Um ano depois do referendo e pouco mais de seis meses após a entrada em vigor da lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) há mulheres que continuam a abortar em clínicas clandestinas ou em casa, recorrendo ao citotec. Muitas por falta de informação. Há quem não saiba que o aborto até às dez semanas é uma opção consagrada na lei. As autoridades reconhecem que persistem as clínicas clandestinas, duas das quais estão a ser investigadas. Mas nenhuma foi encerrada. Os dados oficiais referentes aos primeiros seis meses da aplicação da lei da IVG apontam para uma média de 33 abortos por dia, 30% dos quais realizados em clínicas privadas.

"Achamos que as pessoas sabem tudo, que houve um referendo e as mulheres estão informadas. Mas não estão. Muitas desconhecem completamente que podem fazer uma interrupção voluntária da gravidez num estabelecimento de saúde", afirma ao DN Maria José Alves, médica da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) e da associação Médicos pela Escolha.

A médica, que foi um dos rostos do movimento em defesa do "sim", acredita que a lei abriu a porta para acabar com o aborto clandestino, mas reconhece que o problema está longe de ser resolvido. E, diz, "continua a haver um grande estigma. É preciso acabar com o preconceito".

Do lado dos defensores do "não" ao aborto a indignação faz-se ouvir contra o que dizem ser a inacção do Estado. "Se o cenário era assim tão dramático e se falava em cerca de dez mil abortos clandestinos, porque não se fechou nenhuma clínica?", questiona Isilda Pegado, da Federação Portuguesa pela Vida, que acredita que persiste o recurso à clandestinidade. Os números dos abortos legais - que ficam bastante aquém do estimado - ajudam a explicar esta opção pela clandestinidade, considera Isilda Pegado, porta-voz da Plataforma Não Obrigada.

O desconhecimento da lei é, também, reconhecido pelos responsáveis da Associação de Planeamento Familiar (APF). "A conclusão que tiramos pelos atendimentos da Linha Opções ( 707 299 249) é que há muitas pessoas que não sabem como é que as coisas funcionam", diz Duarte Vilar, director-geral da APF. O problema não se coloca apenas em relação à interrupção da gravidez nas primeiras dez semanas, mas também nos casos em que há malformações do feto, riscos de saúde para a mãe ou em que a gravidez resulta de uma violação ou de um crime contra a determinação sexual.

Estas são as questões que a APF pretende clarificar numa campanha na primeira semana de Março. Por desconhecimento, dificuldade no acesso aos centros hospitalares, por vergonha ou por se terem ultrapassado as dez semanas, "há mulheres que continuam a abortar clandestinamente ou a tomar citotec [medicamento para a expulsão do feto]", sublinha Duarte Vilar.

Francisco George, director-geral da Saúde, faz um balanço positivo da aplicação da lei e contesta que as pessoas estejam mal informadas. "Há um factor no plano sociológico que tem a maior importância e que é a forma tranquila como a população portuguesa, em especial as mulheres, adquiriram este novo direito", argumenta.

A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a investigar duas clínicas privadas que alegadamente realizam abortos ilegais. Francisco George confirmou ao DN esta investigação: "Levantaram-se suspeitas em relação a dois centros e, no contexto da fiscalização conduzida pela IGAS, os resultados serão publicados a seu tempo", sublinhou.

Balanço de seis meses

Até dia 15 de Janeiro, seis meses após a entrada em vigor da lei, 6099 mulheres abortaram legalmente a seu pedido, 70% das quais em locais públicos. Os dados são da Comissão Nacional de Saúde Materna e Neonatal e ficam das previsões que apontavam para 20 a 25 mil. Os abortos realizados por menores de 15 anos ficaram-se apenas pelos 0,5 % (30 IGV), enquanto, por idades, a maior concentração, 65,8 %, ocorre no grupo de mulheres entre os 20 e os 34 anos (4124 IVG).

DN, 11-2-2008
 
Um ano depois, muitos activistas do 'sim' e 'não' continuam a trabalhar

A mobilização não terminará aqui. Há um ano, perante as câmaras televisivas, foi esta a promessa feita pelos movimentos do "sim" e do "não". Até porque, reconheceram ambos os lados, o aborto legal não iria resolver todos os problemas e muito trabalho continuaria por fazer. Um ano depois do acto eleitoral, os movimentos cívicos extinguiram-se mas muitos lançaram mãos à obra e continuam a lutar pela causa.

Foram criados mais sete ou oito movimentos de defesa da vida, afirmou ao DN Isilda Pegado, presidente da Federação Portuguesa pela Vida, acrescentando que muitos activistas já estavam envolvidos em acções concretas e ligados a instituições de defesa da vida quando se juntaram à Plataforma Não Obrigada.

Actualmente, a rede de apoio à vida conta com 900 profissionais, entre psicólogos, assistentes sociais e outros técnicos. A rede de apoio à vida tem hoje 60 instituições. "Estamos a falar de profissionais e não de caridade, como alguns nos acusaram na altura", reforça Isilda Pegado.

Após a mobilização para o referendo, muitas pessoas começaram a colaborar também nas acções de promoção da vida, dispersas por três campos de actuação e em regimes diferentes. Alguns trabalham na promoção da educação para a sexualidade e no planeamento familiar, através de aconselhamento e esclarecimento de jovens ou casais, nos movimentos e escolas. Outras instituições fazem atendimento de mulheres e auxílio a grávidas, ajudando-as a manter a gravidez mesmo quando são pressionadas pelos companheiros ou entidades patronais, situações que a Federação diz estarem a aumentar. Há ainda instituições para dar alojamento a mães e bebés, sector no qual a oferta aumentou bastante neste último ano.

Movimentos pelo 'sim'

Do lado dos defensores do aborto, muitos continuaram também em actividade, sobretudo os profissionais de saúde que já vinham alertando para a necessidade de alterar a lei. Maria José Alves, da associação Médicos pela Escolha, diz que o movimento cívico a que se associou foi extinto mas o trabalho prossegue. "Continuamos activos e cada vez mais. Temos projectos na área da saúde reprodutora, seja na educação sexual, nas técnicas de procriação medicamente assistida e na transexualidade", afirmou ao DN.

Porque consideram que há ainda muita falta de informação, em breve, os Médicos pela Escolha vão lançar um folheto para informar as mulheres sobre a interrupção da gravidez.

Pedro Nuno Santos, líder da Juventude Socialista e protagonista dos Jovens pelo Sim, afirma que muitos jovens continuaram o trabalho nas associações juvenis em que já estavam integrados quando se juntaram ao movimento.|

RITA CARVALHO

DN, 11-2-2008
 
O ABORTO DA TORREDEITA NO ANIVERSÁRIO DO 'SIM'

Fernanda Câncio
jornalista
fernanda.m.cancio@dn.pt

Nem de propósito. Um ano após o referendo de 11 de Fevereiro de 2007, em que venceu o "sim" à descriminalização do aborto até às dez semanas de gravidez, uma jovem de 19 anos, residente em Viseu, aborta, com estrépito mediático, fora da lei. Cinco meses de gestação, uso de Cytotec e assistência e/ou cumplicidade das amigas, que acabam a dar "esclarecimentos" a jornalistas numa conferência de imprensa (!) convocada para o efeito pelo director da escola profissional de Torredeita, onde as raparigas - protagonista e entourage - estudam.

Tudo neste caso é de lamentar. O recurso ao aborto numa gravidez tão avançada, desde logo. O uso de um medicamento para o estômago que só pode vender-se com receita médica mas que há muito entrou no mercado negro e é responsável por pelo menos uma morte em Portugal, a de uma adolescente de 14 anos, também grávida de cinco meses, em 2005. A manifesta irresponsabilidade e ignorância das implicadas (uma delas afirmou aos repórteres ter sido ela a fornecer os comprimidos, sabendo para que efeito a colega o queria) e a atitude inteiramente desadequada do director da escola.

Aliás toda a história, incluindo as pormenorizadas descrições do acto fornecidas aos media pelas raparigas, surge tão surreal que parece inevitável concluir que os implicados não se apercebem da gravidade do que se passou. Alguma daquelas jovens sabia que abortar em casa é crime, continua a ser crime? Que abortar depois das dez semanas é crime? Que fornecer/vender comprimidos para abortar é crime? Em nenhum lugar li a resposta a estas perguntas. Talvez não tenha ocorrido a ninguém que é preciso fazê-las e agir de acordo com as respostas - porque é preciso evitar que mais situações como estas ocorram.

Sabia-se, claro, que o aborto clandestino não tinha acabado com a entrada em vigor da nova lei, a 15 de Julho. Note-se, aliás, que em países onde o aborto por vontade da mulher está legalizado há muitos anos - e com prazos superiores de gestação, até às 12 semanas - como é o caso da Itália, ainda se crê existirem anualmente vários milhares de abortos clandestinos apesar de o número de abortos legais ter vindo a baixar (44% entre 1982 e 2006). A nova lei tem oito meses de prática, é cedo para tirar conclusões sobre os seus efeitos ou fazer contas, quaisquer que sejam. Tudo o resto - o aproveitamento de casos como o da Torredeita para "provar" que a lei não "soluciona ao problema do aborto clandestino", as "guerras de números", as "acusações de desonestidade intelectual dos partidários do "sim" - é apenas deplorável. Só há uma coisa que se pode dizer: é que hoje é possível escolher entre um aborto legal e um ilegal. E isso faz toda a diferença - do ponto de vista da saúde e da dignidade humana, em primeiro lugar. Mas também do ponto de vista da aplicação da lei criminal.

DN, 15-2-2008
 
A DIFERENÇA ENTRE UM DIREITO E UM BEBÉ

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Há uma semana, no dia 11, passou o aniversário do referendo ao aborto. Como se esperava retomou-se um pouco o debate acalorado de há um ano, com opiniões, números, críticas. Mas em geral passou despercebida a grande diferença actual entre os dois campos.

Após apenas 12 meses as organizações pelo "sim" desapareceram quase por completo. Aliás nunca foram muitas, pois o campo era liderados por partidos. Essa ausência parece natural. Ganharam, mudaram a lei, descansam.

E não estão ociosas. Vamos vê-las em futuras lutas, da eutanásia e procriação assistida ao casamento de homossexuais. Mas aborto é tema passado.

Do lado do "não", pelo contrário, um ano após a derrota de 2007 e dez após a vitória de 1998, a actividade é mais intensa que nunca, com novos dinamismos e instituições. Os jornais não ligam muito e o Estado, que financia largamente o aborto, pouco ajuda estas organizações de apoio. Mas os movimentos pela vida mostram tal exuberância e dinamismo que até parece terem ganho.

Esta diferença entre os grupos tem uma razão profunda, que vem da própria disparidade original das duas linhas sociais. A aparente simetria, motivada pela dicotomia da resposta a sufragar, sempre escondeu uma enorme incongruência de lógica e finalidade. A distinção agora visível podia ser intuída até antes do referendo.

As forças a favor da liberalização do aborto tinham uma atitude eminentemente legal e regulamentar. O propósito era garantir o que consideravam um direito e lutar pela mudança da lei. Uma vez obtida a alteração legislativa, não havia mais assunto e partiam para outras causas.

Pelo contrário, as forças pela vida tiveram sempre como propósito declarado as pessoas reais e concretas. O combate político foi importante mas, para lá das lutas sobre diplomas e estatutos, dedicaram-se desde o princípio a organizar casas de acolhimento, serviços de orientação, instituições de apoio a grávidas, mães e crianças.

A defesa da vida não se faz, antes de mais, no papel mas na vida.

Isto não é um insulto ao lado do "sim", mas constatação factual. Esses movimentos limitam--se a seguir a orientação tradicional da sua linha ideológica, com antiga e elaborada justificação teórica.

A abordagem de fundo da esquerda em geral, e da variante marxista em particular, sempre foi melhorar a vida das pessoas através da revolução das instituições. O propósito meritório é o mesmo dos movimentos virtuosos de todos os tempos, mas com meios radicalmente novos. Usando análise científica, acredita-se na construção da estrutura ideal da sociedade, que resolverá todos os problemas.

As versões mais extremas e ingénuas da escola de Marx estão abandonadas.

No original bastava o proletariado tomar o poder nas instituições sem classes da sociedade socialista para vir o paraíso terreal. Hoje esse sonho está esquecido no limbo dos mitos românticos da História.

Mas a lógica básica do raciocínio mantém-se viva nas novas encarnações da ideologia. Os movimentos do aborto, como os ecologistas, sindicatos e partidos, têm a sua fé posta em leis, contratos, regras e regulamentos. Sempre nos mecanismos, nunca nas pessoas.

As forças de esquerda sempre acharam que não se deve dar esmola porque isso só atrasa a revolução. Esta é a diferença entre a preocupação marxista com os proletários e a caridade cristã com os pobres.

O instrumento progressista sempre foi organizativo, não pessoal. Confia-se em leis e mecanismos sociais, não em amor, honra, heroísmo, génio. As pessoas são meras peças no grande maquinismo comunitário.

O comunista ama a humanidade, o cristão ama o próximo.

Para as forças do "sim" o sofrimento das mulheres era argumento para mudar a lei, o que eliminaria o dito sofrimento. Para as forças do "não" é algo que tem nome, morada e pede ajuda.

Aliás, a diferença na formulação corrente dos propósitos indica isso mesmo. O "sim" é a favor da escolha, um conceito moral, filosófico, enquanto o "não" é pela vida, um assunto biológico, animal. É a mesma diferença que existe entre um direito e um bebé.

DN, 18-2-2008
 
UM ANO E 6099 ABORTOS DEPOIS

João Miguel Tavares
Jornalista
jmtavares@dn.pt

O referendo ao aborto fez um ano. Aproveitando a data redonda a comunicação social virou as antenas para o tema e foi ver como anda a aplicação da lei. Como seria de esperar, não anda grande coisa. No espaço de seis meses algumas dezenas de mulheres já recorreram aos hospitais públicos para realizar mais do que um aborto, o que levou um alto quadro da DGS a suspirar: "Alguma coisa está errada com as senhoras." Metade das mulheres que abortam não põe os pés nas consultas (supostamente obrigatórias) de planeamento familiar. E o aborto clandestino, esse, continua a ser praticado, já para não falar nas adolescentes que engolem Cytotec aos cinco meses de gravidez.

Não é de todo minha intenção voltar à vaca fria. Eu acredito, e deixei escrito, que se perdeu uma boa oportunidade para se ser realmente liberal e pôr o Estado de fora deste assunto: mantinham-se as regras da antiga lei em vigor nos hospitais públicos e permitia-se o aborto a pedido até às 10 semanas, mas só em clínicas privadas. Ninguém quis ir por aí, simplesmente porque ninguém se deu ao trabalho de ouvir o que a outra parte tinha para dizer, preferindo cavar trincheiras morais. Assim, se antes tínhamos uma posição insustentável, com mulheres arrastadas pelos tribunais, agora ficámos com esta coisa bizarra de o Estado não oferecer a uma adolescente pobre a possibilidade de ela tratar uma cárie dentária, mas oferecer a uma adolescente rica a possibilidade de ela realizar um aborto. E isto, vão-me desculpar, não é demagogia - é a realidade dos factos. A realidade dos factos neste país é que é tão absurda e vergonhosa que se confunde com demagogia quando nos limitamos a descrevê-la.

Agora, o que parece claro é que o aborto não pode ser um assunto que o PS despachou com um referendo, lavou as mãos com desinfectante e mandou para trás das costas, e ao qual só gosta de regressar quando lhe dá jeito fingir que está a governar "à esquerda". É preciso ter a lei em constante reavaliação; e é preciso ter a coragem para prestar contas e mudar o que está mal - como a permissão de uma mulher praticar abortos em série com o patrocínio do Estado. De outra forma, perante a inércia nacional, com esta nova lei tem-se aquilo em que se votou - a possibilidade de abortar sem se ser condenado por isso - e aquilo em que não se votou - a permissividade total em relação ao aborto, mesmo nos casos em que ele é ilegal. Há um trabalho imenso pela frente e convinha fazê-lo com seriedade, porque a estupidez e a ignorância são mais difíceis de extirpar do que um feto de 10 semanas. E, infelizmente, não desaparecem com referendos e linda legislação.

DN, 19-2-2008
 
570 médicos declaram-se objectores só para nova lei

FERNANDA CÂNCIO

Maioria dos objectores já o era com a lei anterior: recusa o aborto sempre

Dos 1370 clínicos que se afirmaram objectores de consciência em relação ao aborto na resposta a um inquérito enviado pela Ordem dos Médicos a obstetras e médicos de família, 800 disseram sê-lo em todas as circunstâncias - ou seja, recusam praticar a interrupção da gravidez até em caso de malformação do feto, gravidez resultante de violação e risco para a saúde e vida da mulher (previstos na lei desde 1984). Só 570 se declararam objectores apenas no quadro da nova lei, quando o aborto ocorra até às 10 semanas e por vontade da mulher.

Tal significa que estes 570 clínicos não objectam a fazer ou a participar no processo de decisão de abortos mais tardios (em caso de violação o prazo vai até às 16 semanas e se houver malformação até às 24), cuja prática só pode ocorrer, nos termos da lei, quando a decisão da mulher no sentido de abortar for avalizada/autorizada por um médico ou uma comissão de médicos.

O inquérito, efectuado por decisão do bastonário Pedro Nunes, ainda no seu anterior mandato mas já após a alteração legislativa resultante do referendo de 11 de Fevereiro de 2007, perguntava sobre o estatuto de objecção de consciência e, caso se respondesse afirmativamente, tinha duas opções: "Em todas as circunstâncias" e "No caso de ser unicamente por decisão da mulher". Foi enviado a 6440 clínicos, o total do universo então existente de médicos de família e obstetras (hoje são, respec- tivamente, 5004 e 1453). Foram recepcionadas na Ordem apenas "duas mil e picos respostas", diz Pedro Nunes. "Houve médicos que responderam só para dizer que não são objectores".

Sendo a maioria de respostas de objectores, fica por saber como se dividem em termos das duas especialidades. Uma pergunta a que o bastonário recusa responder, para perplexidade de Luís Graça, o presidente do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos e membro da comissão que regulamentou a nova lei do aborto (que prevê que cada serviço de obstetrícia "cadastre" os objectores de acordo com o tipo de objecção).

"O que seria lógico era dividir o inquérito entre médicos de família e obstetras", diz Graça. "Até porque na esmagadora maioria dos serviços do país os clínicos gerais não procedem à interrupção da gravidez. Assim o inquérito não tem análise possível, é absurdo."

Luís Graça, que respondeu ao inquérito como não objector, está no entanto convencido de que "haverá uns 90% de objectores" entre os médicos da sua especialidade. O que, a verificar-se, poderá implicar que grande maioria das respostas afirmativas sejam de obstetras. Certo é porém que muitos médicos não responderam. É até o caso de Maria José Alves, a obstetra que deu a cara pelo "Sim" no referendo, e que diz "ter tido dúvidas sobre o objectivo do inquérito".

DN, 27-2-2008
 
Legalização do aborto fez baixar recurso à pílula do dia seguinte

As mulheres estão a recorrer menos à pílula do dia seguinte desde Julho, quando foi legalizada a interrupção voluntária da gravidez, segundo dados de uma consultora, que apontam para menos 7000 caixas vendidas no último semestre de 2007. Pela primeira vez, o consumo anual da pílula de emergência diminuiu em Portugal, invertendo uma tendência que se vinha a verificar nos últimos quatro anos. De acordo com dados da consultora IMS Health, em 2007 foram compradas 206 648 caixas, menos 6646 do que no ano anterior.

Entre Janeiro e Julho de 2007, as portuguesas compraram 106 802 caixas, ao passo que entre Julho e Dezembro o número desceu para 99 846. Ou seja, no último semestre do ano venderam-se menos sete mil embalagens, uma diferença equivalente à registada entre 2006 e 2007. "É um bom sinal, que pode significar um menor recurso a métodos de emergência quando as mulheres estão na dúvida de poderem estar grávidas. Pode significar também que as mulheres estão mais tranquilas porque agora têm acesso a meios de saúde pública", sublinhou Daniel Pereira da Silva, da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, referindo-se à entrada em vigor da lei que tornou possível a interrupção voluntária da gravidez, no passado dia 15 de Julho.

Dos vários ginecologistas contactados pela Lusa, todos destacaram a importância de não ser necessária receita médica para adquirir a pílula, uma vez que a taxa de eficácia só é conhecida até 72 horas após a relação sexual.

No entanto, Daniel Pereira da Silva salienta que este medicamento "é um método muito positivo, mas tem de ser usado numa emergência e não como método de continuidade, uma vez que desta forma pode ser perigoso para a mulher".

Numa ronda por várias farmácias de Lisboa, a agência Lusa constatou que a maioria dos profissionais leva a sério a "Norma de Intervenção Farmacêutica na Concepção de Emergência", recusando-se a vender mais de uma embalagem. Mas há quem a ignore. Ou seja, há quem venda três embalagens à mesma pessoa, sem recomendações e sem fazer a avaliação da situação do utente, contrariando a norma emitida pela Ordem dos Farmacêuticos. "São excepções pontuais de má prática que infelizmente acontecem em todas as profissões", reagiu o presidente da secção regional de Lisboa da Ordem dos Farmacêuticos, João Mendonça.

DN, 4-3-2008
 
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