25 abril, 2007

 

25 de Abril


33 anos depois




http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=240002&idselect=9&idCanal=9&p=200

http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_dos_Cravos

http://www.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=HomePage

http://www.25abril.org/

http://www.rr.pt/PopUpMedia.Aspx?&FileTypeId=3&FileId=314432&contentid=204816


Comments:
Livro

Um novo olhar
sobre o 25 de Abril

Na véspera de mais um aniversário do 25 de Abril, é
lançado um livro que propõe um novo olhar sobre as motivações
e as consequências do golpe que derrubou o Estado
Novo.
"25 de Abril: Mitos de uma revolução" é uma obra da historiadora
Maria Inácia Rezzola que analisa alguns aspectos ligados
à data que ainda hoje permanecem controversos.
Passados mais de 30 anos sobre estes episódios, só agora se
começam a revelar as verdades que permitem desmascarar
os mitos que fazem parte da História do 25 de Abril.
Neste livro, Rezzola apresenta uma visão geral da Revolução,
analisando os seus episódios mais polémicos, sem medo de
desconstruir mitos e ideias formadas sobre este acontecimento
do século XX português. Desde logo, diz a autora,
“desmistificar a ideia de que a revolução foi uma luta em
que de um lado estariam os militares e do outro a sociedade
civil; e de que ao contrário ao que muitos continuam a divulgar,
a construção da democracia se deveu em grande medida
aos militares e não única e exclusivamente, nem sobretudo,
aos partidos políticos”.
A 25 de Abril de 1974 um grupo de jovens capitães leva a
cabo um golpe de Estado que, em menos de 24 horas, derruba
uma ditadura que dominava Portugal há mais de quatro
décadas. Tratou-se de uma revolução em nome da liberdade?
Existia um grau de politização entre os revoltosos? Até que
ponto não foram as questões corporativas centrais na mobilização
e primeiros passos do movimento dos Capitães? São
algumas das questões levantadas na obra que procura, ainda
outras respostas: porque é que o primeiro Presidente da
República da transição foi António de Spínola e não Francisco
da Costa Gomes como planeado pelos Capitães? Foram os
partidos coagidos a assinar a Plataforma de Acordo Constitucional
com o MFA?
Mais à frente no tempo, a autora chega ao 25 de Novembro
de 75, lembrando a ocupação, pelos pára-quedistas, da Base
Aérea de Tancos: houve ou não uma tentativa de golpe de
Estado? Quais os seus autores? Quem deu ordem de saída aos
páras?
Na página da Renascença na Internet, em www.rr.pt, está
disponível uma reportagem vídeo sobre esta obra, uma edição
"Esfera dos Livros", lançada mais logo no Quartel do Carmo,
em Lisboa, com apresentação de Ramalho Eanes, Mário
Mesquita e Medeiros Ferreira.

RRP1, 24-4-2007
 
Portugal 'Portugalizado'

Baptista-Bastos
escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt

Na cartografia das nossas revoluções comemora-se, hoje, uma vitória imprescindível: a da liberdade; e uma derrota vital: a da esperança. A ambivalência deste círculo revela muito das históricas frustrações que nos perseguem. Tropeçamos, desde 1383, no paradoxo de iniciar processos excepcionais de alteração social, criamos um pouco de desassossego e, depois, estatelamo-nos nos escombros dos desaires.

Há trinta e três anos fomos movidos pela fé. Tudo estava ao nosso alcance e íamos subir, esfuziantes, a escada de Jacob porque o céu era ali mesmo. As religiões criam uma espécie de promessa eloquente de bem--aventurança. Como se pedaços do paraíso tombassem brandamente na terra. O espectáculo, iluminado pelo fervor da candura, alvoroçou-nos e sacudiu a mansuetude dos nossos hábitos. Vivemos, então, a miopia de dominar os destinos colectivos, qualquer que seja o turvo significado da entusiasmada expressão. As coisas iam pertencer-nos, a pátria seria feliz e confiada; haviam sido removidos o abandono, a indecisão, a dúvida; as ruas e os seus clamores líricos constituíam autobiografias transpostas.

O festim durou pouco. A singularidade da "via portuguesa para o socialismo" representava-se na modesta circunstância de ninguém saber, verdadeiramente, o que era o "socialismo" - em especial os "socialistas". Todos os partidos inscreveram nos seus textos sacrossantos a extraordinária palavra. A qual, inesperadamente também, desapareceu dos teores, das doutrinas, dos projectos e das convicções de quase todos os partidos.

A pátria voltou a ser o revés de si própria. Refém de um passado engravatado, cabisbaixo e deprimido, Portugal "portugalizou-se", e os portugueses deixaram de significar para tornarem a ser insignificantes. Roger Vailland, grande escritor francês, carimbou a expressão num romance, La Loi, no qual a personagem principal, um patriarca italiano, Don Cesare, viajado e culto, discreteia acerca de um país cujo povo se "desinteressara". Um país onde os escritores não escreviam, os jornalistas não faziam jornalismo, os homens de negócios viviam dos lucros, os políticos governavam para o estrangeiro. Lia-se: "Ele pensara que a pior das desgraças era a de nascer português." A frase será exagerada; mas contém muito daquilo que muitos de nós pensamos.

"Portugalizar" é uma metáfora feroz e irónica. Todavia, caracteriza a nossa taciturna aceitação ao que consideramos fatalidade. Há trinta e três anos alimentámos um sonho buliçoso, sentimental, ocasional e frágil. O despertar desfez a fábula de que as coisas devem pertencer a quem as ama. Talvez sejamos culpados, porque não soubemos defender com paixão o que, apaixonadamente, desejávamos nos pertencesse.

DN, 25-4-2007, 7
 
A Geração da pouca memória

ISABEL LUCAS

Seis crianças a 25 de Abril de 74 falam de um dia diferente
Pertencem à primeira "geração de Abril". Lembram-se dela, apesar de não terem sido nela protagonistas. "Uma geração sem traumas nem nostalgias", como afirma Nuno Melo. De certeza uma geração com memória difusa. Tinham entre os seis e os dez anos, todos andavam na escola primária, e dessa data retêm os sons, o medo, a alegria, as lágrimas, a falta de regras, a confusão, o espanto e, sobretudo, uma estranheza que só mais tarde viria a desfazer-se.

Ouviram palavras novas: revolução, golpe, juntas de salvação nacional, liberdade, bombas, intervenção, um vocabulário que foram apreendendo à medida que a realidade lhes mostrava os exemplos daquela passagem entre dois tempos. Um velho e um novo. Desconhecido. Incerto. "É uma geração que não tem nenhuma ligação ao Estado Novo, nem uma percepção adulta dos tempos do PREC. Somos protagonistas da consolidação do Estado democrático." A análise é uma vez mais de Nuno Melo, o deputado que diz que nasceu para a política a partir dessa memória e com essa memória, ainda que nublada, ele e os que como ele tinham seis, sete, oito, nove, dez anos, conseguiram "um distanciamento e um conhecimento que as gerações imediatamente acima e imediatamente abaixo não têm."

João Paulo tinha dez anos e atribui ao 25 de Abril o início do "interesse pela coisa pública" e lamenta não ser mais velho, sobretudo para experimentar a liberdade sexual. Camané, o fadista, sente-se poupado pela idade. "Eu não me calaria e provavelmente teria sofrido retaliações do Estado Novo." Susana lembra a tensão, Rui nunca se meteu em política. Rodrigo prefere o distanciamento, porque, diz, foi o que aprendeu com o excesso.

DN, 25-4-2007, pág. 32
 
O 25 de Abril como ele é: um facto da história

A revolução do 25 de Abril faz hoje 33 anos. Idade e tempo para permitir o devido distanciamento nas análises. Está na altura de olhar para o acontecimento sem paixões geracionais ou histerismos políticos, mas sim da forma que merece, que melhor honra e que mais justiça faz ao que se passou naquela madrugada. Tratando o 25 de Abril como um facto histórico.

A data já só é isso mesmo, um marco da história contemporânea do País. E deve ser ensinado nas escolas e passar nas televisões exactamente com esse enquadramento. Da mesma forma que é preciso ter conhecimento sobre a I e a II guerras mundiais, as origens e as consequências, para compreender o que se passa actualmente no mundo, é preciso saber o que fez nascer o movimento das Forças Armadas Portuguesas que destronou a ditadura e repôs a democracia, para entender o que Portugal é hoje.

Três décadas são mais que suficientes para um país ganhar independência relativamente ao passado. Essa é, aliás, a única forma de poder antecipar o futuro. Dispensando ondas de revivalismo e, igualmente, manifestações de indignação.

Para honrar a memória basta acabar com a maldição do último capítulo. E isso não se consegue considerando um escândalo fascista a moda de evocar Salazar, nem vendo como essencial à democracia o tradicional desfile pela Avenida da Liberdade. Basta acabar com a desorganização na educação e fazer com que os professores concluam os programas curriculares e ensinem aos alunos a história recente do País. Essa devia ser a maior herança do 25 de Abril.

DN, 25-4-2007, pág. 6
 
Sr. Presidente: Não me resigno

Pedro Lomba
jurista
pedro_lomba@netcabo.pt

O Sr. Presidente da República convocou-me. Sim, ontem, no seu discurso comemorativo do 25 de Abril o Presidente falou comigo. Ardentemente, o Presidente convidou os jovens portugueses "a não se resignarem". Eu sou esse jovem. À luz dos critérios nacionais, a idade da juventude termina aos 42 anos, momento que, para mim, vem longe. Até aos 42 anos há direito ao subsídio se formos jovens empresários, jovens agricultores ou jovens cineastas. Por isso, este assunto tem a ver com a minha pessoa e com os meus interesses. Sinto-me convocado. O Presidente apelou ao meu "inconformismo" e eu quero dizer que estou disponível, que não me resigno.

Mas devo, para começar, expor algum remorso. Na minha existência não tenho feito outra coisa do que resignar-me. Eu e outros. Sempre frequentei a escola do eduquês e do experimentalismo e, apesar da instabilidade, resignei-me. No liceu fui obrigado a fazer disciplinas tão essenciais para a formação de uma pessoa como "estenografia" ou "relações públicas" e resignei-me. Na universidade, salvo excepções, encontrei um ensino arcaico à base de programas desajustados da realidade e resignei-me. Na chamada vida activa, que mais equivale a uma vida passiva, o destino lógico de uma pessoa acaba por ser, por comodidade, não discutir, não pensar e não perguntar, isto é, o processo de uma longa e triste resignação. Para pagar os preços de escândalo de uma casa em Lisboa ou no Porto, uma pessoa endivida-se por décadas e resigna-se. Do mercado de trabalho à Segurança Social, o futuro para quem tem 25 ou 30 anos é uma incógnita e um convite à resignação. Quanto à política, o caso é mais grave. Muito do que de errado existe em Portugal e com que nos resignamos depende de decisões políticas e da cultura do poder. Acontece que a nossa classe política está ela própria resignada. Não muda o que tem de mudar, evita o mais difícil e continua impavidamente a contemplar o mundo sem uma ideia sobre o seu impacto no País. De resto, a vida política, sempre opaca, não anima. A quantidade de políticos, de ministros a secretários de Estado, de deputados a presidentes de câmara, que nos últimos 30 anos tomaram decisões irresponsáveis, ocuparam cargos para que não se tinham previamente preparado, usaram o poder só para favorecer interesses particulares, é assombrosa. A resignação é um destino. Até com as mentirinhas públicas do primeiro-ministro sobre a sua licenciatura uma pessoa se resigna.

É o que tenho feito. Reconheço, como advertiu o Presidente, que já chega. O Presidente tem toda a razão em recomendar que "não nos resignemos". O inconformismo é tão mais interessante do que a resignação. Mas talvez o Presidente ou outra pessoa com poder em Portugal nos possa dizer se aceita e compreende as mudanças que terão de vir forçosamente com esse inconformismo. Em teoria, estamos de acordo.

DN, 26-4-2007, pág. 7
 
Lições de História no Marquês de Pombal

Ontem o Presidente da República apelou a que a memória do 25 de Abril não se ficasse apenas por um feriado no calendário. "Não se resignem", disse Cavaco Silva, dirigindo-se especialmente aos jovens.

Mas lições de democracia não se dão só com palavras e também não se aprendem nos livros de História. É mais fácil aprender pelo exemplo. Ontem, nas comemorações da data na Baixa de Lisboa, houve exemplos que chegassem para um manual inteiro sobre a matéria.

Houve exemplos do que não se aprendeu com o 25 de Abril. As assobiadelas e falta de respeito com que os apoiantes de uma esquerda receberam os discursos de outra esquerda: nomeadamente os do PS e os renovadores do PC. Os tomates atirados ao cartaz de um partido extremista de direita. E a intolerância impressa a letras garrafais no cartaz desse mesmo partido, no Marquês de Pombal, contra os imigrantes. Tudo maus exemplos.

E houve um exemplo do que é democracia na sua lição maior do respeito pelo outro, mesmo que diferente e estranho: o cartaz do PNR foi protegido por polícias das agressões de quem não gostava dele. Autoridades de um país democrático a defender quem não respeita a democracia. Uma lição irónica. Mas a provar que o 25 de Abril não se ficou pelos cravos ao peito.

DN, 26-4-2007, pág. 6
 
Claustrofobia

Trinta e três anos depois, houve muita gente na rua para
comemorar o 25 de Abril e o sentido das comemorações da
Revolução, embora questionado pelo Presidente da República,
mostrou estar de boa saúde. Mas Cavaco Silva fez
bem em espicaçar a atenção dos jovens para uma realidade
que lhes é distante.
Os que nasceram depois de 74 não vibram com a efeméride
e o alerta do Presidente é oportuno - a melhor maneira
de comemorar Abril é pôr o país a exigir mais. É reforçar a
exigência ética. É ser inconformista. É não estar satisfeito.
No essencial, o Presidente da República mostrou não estar
satisfeito com o estado da nossa democracia. E o seu partido,
o PSD, disse mesmo que vivemos numa espécie de
liberdade condicionada.
Passe o exagero, o ar que se respira não é brilhante. O
Governo está fragilizado pela recente polémica em torno
da credibilidade do Primeiro-ministro; o maior partido da
oposição não assumiu ainda um projecto alternativo para
o país; à direita, Paulo Portas está de volta, hesitante e
imperceptível; na capital do país há cartazes com slogans
xenófobos; o desemprego não pára; a violência cresce nas
escolas; e Portugal não sai da cauda da Europa.
Trinta e três anos depois, o Presidente da República diz
ter dúvidas sobre as comemorações de Abril e faz um discurso
em que opta claramente por não falar da conjuntura.
Há, de facto, sinais de claustrofobia na política portuguesa.

Ângela Silva

PPR1, 26-4-2007
 
Memória da liberdade

António Vitorino
jurista

No seu discurso comemorativo do 25 de Abril, o Presidente da República estabeleceu o contraponto sobre o significado da liberdade para aqueles que têm ainda uma memória pessoal dos tempos da ditadura e para os jovens que consideram impensável viver sob um regime autoritário.

Com efeito, os jovens de hoje consideram inconcebível viver numa sociedade onde não há liberdade de imprensa, numa sociedade vigiada pela polícia política e sem liberdade de associação, num país envolvido num conflito colonial por onde passaram sucessivas gerações de jovens de então! E ainda bem que consideram inconcebível esse país que já fomos até há 33 anos atrás.

O Presidente Cavaco Silva referiu-se a este estado de espírito como assumir a liberdade tão naturalmente como o ar que respiramos e acho que a imagem é certeira. Essa é, aliás, a melhor homenagem que podemos prestar aos capitães de Abril: viver habitualmente em liberdade e em democracia era o principal objectivo da "revolução dos cravos"!

O que mais me impressiona no diálogo com os jovens é a noção de tempo. Quando descrevemos o que era o Portugal da ditadura, a reacção desses jovens interlocutores é como se ouvissem falar de acontecimentos que só poderiam ter ocorrido há vários séculos! E, contudo, foi há apenas três décadas.

Neste quadro, preservar a memória é importante, porque só assim podemos compreender as imperfeições da nossa própria democracia e procurar aperfeiçoá-la como é obrigação de todos nós. Trinta anos correspondem a parte substancial da vida activa de uma geração, mas são um curto espaço de tempo na vida de um povo ou de um país.

A aceleração da História permite que hoje identifiquemos na nossa democracia os defeitos e as imperfeições que caracterizam muitos dos regimes democráticos ocidentais bem mais antigos e consolidados do que o nosso. Mas permite também identificar algumas características de identidade nacional que perduraram ao longo dos tempos e que ganharam de novo um estatuto próprio mesmo em democracia.

Nesse sentido, a qualidade da democracia é tanto um problema do funcionamento das instituições como da cultura política em geral.

As ameaças à democracia não resultam da probabilidade de um retrocesso autoritário ou da visibilidade do saudosismo serôdio do salazarismo. A vulnerabilidade do nosso sistema democrático resulta de aspectos fundamentais da sua própria sedimentação, o crescimento da intolerância sectária e dos fundamentalismos destruidores, das desigualdades sociais e da discriminação racista e xenófoba.

Uma sociedade política democrática que queira prevalecer no mundo conturbado em que vivemos tem que saber construir os consensos necessários sobre os objectivos políticos prioritários cuja prossecução exige continuidade das políticas e persistência na sua concretização. Os casos de sucesso irlandês e finlandês antes de serem "soluções mágicas" no plano económico e social são exemplos no plano da construção dos consensos políticos e da maturidade da luta política democrática.

Nenhuma democracia com preocupações sociais pode ignorar o efeito demolidor da sua legitimidade provocado pelo crescimento das desigualdades sociais. Nesse plano, o legado destes 33 anos está longe de poder ser considerado como minimamente aceitável. Só que no mundo globalizado em que vivemos, o combate às desigualdades já não pode ser eficazmente levado a cabo com base numa visão meramente assistencialista que sustenta uma rede de protecção geral face aos riscos sociais. A selectividade das prestações sociais aliada à prossecução de políticas activas de reinserção social é o caminho a seguir, mas entre nós ainda não encontramos o justo ponto de equilíbrio entre uma e outras.

A condenação da discriminação racista e xenófoba constitui, por seu turno, um pressuposto de convivência social incontornável em sociedades abertas e democráticas, cada vez mais plurais e heterogéneas na sua composição social. Perante algumas manifestações recentes deste tipo de intolerância, confesso que teria gostado de ouvir uma palavra do Presidente da República sobre a matéria. Também assim se melhoraria a qualidade da nossa democracia.

DN, 27-4-2007, pág. 8
 
CAVACO NO PARLAMENTO

Nuno Brederode Santos
jurista
brederode@clix.pt

Aprimeira notícia que me chegou era alarmante: Cavaco teria pronto um livro sobre os poderes presidenciais. Como muitos outros, evoquei sabedoria antiga: "Somos escravos das palavras que dissemos, mas donos daquelas que calámos." Agrilhoar-se a um exercício académico de tal monta, após um magro ano de mandato, não parecia nem prudente nem sensato. Mas a segunda versão já veio mais tranquilizante: o livro era, afinal, o Roteiros, uma compilação das intervenções do primeiro ano em funções; e os poderes presidenciais eram apenas objecto do prefácio. De uma aventura quase suicidária passávamos assim a um risco político, já pequeno mas ainda assim desnecessário. Enfim, publicado o texto, nem isso. São cinco páginas sobre o primeiro ano em Belém, com considerações sobre os poderes presidenciais, tal como linearmente decorrem do texto constitucional. Nada nele é controverso ou subjectivo. Claro que também nada é criativo, mas esse é o preço mínimo a pagar para que tudo seja, afinal, sensato e prudente. Excepção apenas para esta teimosia venial: "Ao longo do primeiro ano da minha magistratura, a expressão "cooperação estratégica" - que na campanha eleitoral suscitou alguma controvérsia - foi ganhando um conteúdo cada vez mais claro e preciso (…)". Transformada a questão em obstinação semântica, mais vale esquecer.

Claro que, mesmo perante alguma indiferença, houve comentadores mais atreitos a entusiasmos matinais que só viram prodígios nas entrelinhas. Por exemplo, a afirmação do princípio (óbvio) segundo o qual o Presidente não é co-responsável pela governação foi saudada por um como sendo uma "frase assassina". Outro exemplo: a ideia de que a promulgação não implica uma adesão ao conteúdo político do diploma promulgado foi vista por outro como uma "clara" demarcação em relação a um diploma anunciado. Mas isso, já se sabe, releva da legítima defesa contra o tédio.

A verdade é mais prosaica. Cavaco tem um ano de mandato. É cedo para tudo. E a culpa que lhe assiste por ter querido impor, ao fim desse ano, a conclusão prematura de que tudo fizera como prometido na campanha não justifica as fantasias, quer de aduladores quer de desencantados.

Ora foi este Cavaco - humanissimamente perdido na indecisão, pequenino num horizonte que deseja de dez anos, ansioso pela presidência portuguesa que aí vem e hesitante num labirinto em que cada porta que se abre fecha outra - que no dia 25 de Abril falou ao país e ao Parlamento. Não para fazer história ou ensaiar epopeias, mas para cumprir calendário obrigatório e passar, enxuto, por entre as gotas da chuva.

Do seu lugar na mesa, disse sobre liberdade e democracia o bastante para se mostrar ciente de não ser a altura de tentar a grande prosa ou a especulação metafísica.

Sugeriu alterações ao modelo institucional do 25 de Abril, por ver riscos de se cair numa celebração ritual. Mas ele não ignora que também a República tem as suas liturgias e que, na sede parlamentar, não se vê como fazer muito diferente. Nem pretenderia criticar o Parlamento, pois um convidado não diz mal do chá que lhe é servido em casa alheia. Enfim, ele sabe que o dia é pontuado por comemorações populares de raiz local, que não pretenderia perturbar. Portanto, é de admitir que ele se referia a celebrações adicionais, plausivelmente a organizar pela presidência. Não há razões para as recusar a priori. Aguarde-se concretização da iniciativa.

Enfim, quis galvanizar a juventude mais afortunada, para que, no escalamento da sua vida, traga mais fortuna a todos nós. Esqueceu a menos afortunada? Paciência: fica para a próxima.

Importante é que um segundo 25 de Abril já passou, sem grandes molhas. E numa inanidade bem gerida, a fazer alguns consensos importantes. O mais vistoso, aliás, foi o de Marques Mendes consigo mesmo, já que ele tão alegremente se reviu no Portugal apocalíptico de Paulo Rangel, como no Portugal de Cavaco, promissor de radiosas madrugadas.

DN, 29-4-2007, pág. 10
 
REINVENTAR ABRIL

António Perez Metelo
Redactor principal

É precisa uma dose maciça de demagogia ou má-fé para não valorizar a distância percorrida pelo nosso país no plano político, económico, social e cultural desde a alvorada de Abril de 1974. Observadores estrangeiros, em especial os que conheciam o País do "antigamente", classificam-na de "salto quântico". E, no entanto, passados 34 anos, há a sensação de que quase tudo está por fazer... bem. O mundo mudou tanto nestas três décadas que hoje, literalmente, o futuro já não é o que era dantes, é outro o horizonte das possibilidades que se abriam à nossa frente naquela altura.

Os desafios de uma economia que abarca mais e mais sectores num todo global; de um conjunto de actividades humanas, que ameaçam o futuro equilibrado do planeta; de um choque de modos de vida e de culturas com recurso ao terrorismo, como método de reconquista de um poder perdido há séculos; de um tempo real acelerado na rotação dos produtos, na superação dos saberes, na transferência continental de recursos, na mobilidade do factor trabalho. Porque tudo à nossa volta está a mexer e nós partimos há 34 anos de um ponto muito afastado daqueles que conduzem as mudanças a nível planetário, o que os portugueses conseguiram fazer é notável, mas não chega.

O período de estagnação iniciado em 2002 fez vir ao de cima todas as fragilidades de uma organização económica e social, que não tinha as defesas necessárias para conseguir resistir a sucessivos choques externos: 12 anos de escolaridade são hoje a base de conhecimentos de 75% dos trabalhadores em países com os quais temos de competir, mas há 1 800 000 activos portugueses a menos com esse grau de ensino completado; enquanto há fábricas no País, filiais de grupos multinacionais, que atingem padrões de competitividade de primeira linha à escala global, a produtividade média do trabalho teima em não furar o tecto dos 70% do nível europeu; mesmo com uma dimensão incomparável do Estado Social de hoje, com o incipiente de 1993, as desigualdades de rendimento são as mais amplas da Europa.

No mercado de trabalho as disfunções são gritantes: segundo o INE, em média os desempregados são-no durante 22 meses (!), mas são conhecidas realidades locais segmentadas em termos profissionais e geográficos, nas quais há hoje falta de mão-de-obra! Segundo o IEFP, o número de desempregados registados desceu 11% num ano (para os 391 mil), enquanto a última estimativa do Eurostat situa-os em cerca de 423 mil; e os encargos do Ministério do Trabalho com o subsídio de desemprego caíram 17% num ano graças a um controlo mais apertado dos abusos.

34 anos depois, reconheçamos que ainda não estamos à altura de atingir com a rapidez e o saber necessários as metas que assumimos em abstracto, mas que tão difíceis se revelam de alcançar na prática.

DN, 25-4-2008
 
Um 25 de Abril virado para problemas actuais

EVA CABRAL

Oposição aproveita sessão solene para atacar Governo PS

Trinta e quatro anos depois do 25 de Abril, o deputado socialista Osvaldo de Castro vai lembrar, no Parlamento, o que era o Portugal dos tempos da ditadura e a evolução depois da revolução dos cravos.

Antecipando o seu discurso de hoje, Osvaldo de Castro frisa ser importante realçar a melhoria da qualidade de vida conseguida com a democracia em Portugal e o facto de esta ter sido aprofundada ao longo dos últimos anos.

Já politicamente activo à data do 25 de Abril de 1974, Osvaldo de Castro - que antes do PS militou no PCP - garante ir fazer uma "saudação especial à juventude" e lembrar factores decisivos para o presente como o processo de integração do País na União Europeia.

Mas, na sessão parlamentar de hoje, os discursos feitos com base numa memória própria vivida nos dias e emoções do 25 de Abril de 1974 acabam no deputado socialista.

Todas as outras bancadas optaram por escolher parlamentares muito jovens que apenas têm da data hoje evocada solenemente uma mera memória histórica. São todos jovens que estão hoje mais virados para os muitos problemas do quotidiano e que atacam as actuais políticas do Executivo.

Miguel Tiago, da bancada do PCP, vai denunciar a "provocação feita pelo Executivo PS ao fazer coincidir a aprovação do Tratado de Lisboa e a revisão do Código Laboral com as comemorações do 25 de Abril".

O jovem deputado comunista frisa que o actual Governo socialista tem seguido uma política de "destruição dos ideais e conquistas de Abril", designadamente nas áreas de serviços públicos de educação e saúde.

Já José Moura Soeiro, do Bloco de Esquerda, vai centrar toda a sua intervenção na questão da educação, "considerada como o factor essencial para o Portugal do futuro".

Numa altura em que os jovens são muito afectados com problemas como os da precariedade laboral, José Soeiro diz ser necessário "uma escola que esbata as diferenças sociais dos alunos". O deputado bloquista adianta ser preciso alterar a ideia de que a escola "deve preparar pessoas para responder ao mercado de trabalho", garantindo que esta deve assegurar muito mais do que isso.

Pedro Mota Soares, vice-presidente da bancada do CDS/PP, vai centrar a sua intervenção nas questões da demografia. O deputado popular - que nasceria só em Maio, cerca de um mês depois do 25 de Abril - defende que a evocação da data histórica deve evoluir.

Para Mota Soares, a sessão solene no Parlamento, até por contar com a presença do Presidente da Repúbli-ca, deve ser o momento certo para se fazer "discursos de maior alcance em matéria de futuro". Se reconhece que a evocação histórica é importante, considera ser ainda mais relevan-te dar resposta a problemas concretos dos dias de hoje. Assumindo que a sua bancada tem tido uma agenda centrada em questões como a protecção da maternidade e paternidade e a criação de um sistema fiscal mais amigável para quem quer ter filhos, Pedro Mota Soares garante ir ainda abordar as questões relacio- nadas com a criação de emprego, o que passa por alterações a nível da taxa social única (TSU) e da tributação sobre os trabalhadores e empresas.

Luís Montenegro, da bancada do PSD, tinha um ano quando se deu o 25 de Abril, cabendo-lhe a tarefa difícil de nestes dias de turbilhão no mundo social-democrata abordar as questões da qualidade da democracia portuguesa .

O deputado do maior partido da oposição refere "ser necessário valorizar a actividade política, e dar um sinal de esperança para a juventude portuguesa".

DN, 25-4-2008
 
Para os portugueses com menos de 40anos, o 25 de Abril é apenas mais um feriado, bem colocado no calendário, já que a sua proximidade do 1.º de Maio pode permitir uma boa ponte com um gasto modesto de dias de férias.

Grândola Vila Morena, a canção-hino de Zeca Afonso que se tornou no ícone musical da Revolução dos Cravos, a entrada em Lisboa da coluna de Salgueiro Maia, o apelo do posto de comando do MFA, instalado na Pontinha, não são, para uma larga fatia dos portugueses, recordações vividas, mas sim os acontecimentos vistos no último capítulo dos manuais de História de Portugal do ensino secundário.

As horas dramáticas vividas no Largo do Carmo até à rendição de Marcelo Caetano, o tiroteio junto à sede da PIDE na António Maria Cardoso e a formidável explosão de alegria popular que sublinhou a queda da ditadura, não são, para uma boa parte dos portugueses, acontecimentos recordados com emoção, mas antes imagens a preto e branco vistas nos jornais ou em documentários televisivos.

A musealização do 25 de Abril não deve ser olhada como uma coisa má, na justa medida em que prova que a revolução dos capitães cumpriu o objectivo de colocar o País na senda da democracia e do progresso e sepultar os 48 anos de ditadura e atraso nos livros de História - no capítulo anterior àquele que regista o acto fundador da II República.

DN, 25-4-2008
 
LEMBREM-SE COMO FOI

Fernanda Câncio
jornalista
fernanda.m.cancio@dn.pt

À s vezes apetece-me agarrar em certas pessoas e levá-las numa viagem no tempo. Há filmes para isso, e até séries de TV - do Conta-me como Foi aos domingos na RTP1 à Guerra, o espantoso documento de Joaquim Furtado sobre a guerra colonial que está de novo a ser transmitido pela RTP2. Mas sei que não funcionam. Nem funcionaria, sequer, uma viagem aos anos pré-1974. Se nem a memória funciona para quem os experimentou, como esperar que alguma coisa funcione?

Quando oiço ou leio elogios a Salazar e ao "outro tempo" a gente que tem idade para se lembrar, fico estupefacta. Nunca deixa de me espantar que se considere que "se vivia melhor" ou "havia mais segurança". É que não é uma questão subjectiva: não me venham com questões subjectivas. Nada há mais objectivo que os indicadores do Instituto Nacional de Estatística, e a forma como nos últimos 34 anos as provas do bem-estar dos portugueses aumentaram de modo quase milagroso. A mortalidade infantil e materna, por exemplo: passámos de um índice de país do Terceiro Mundo para um dos mais honrosos da UE. A esperança de vida. A electricidade, a água canalizada, as casas de banho dentro das casas. A quantidade de jovens que conseguem aceder ao ensino superior. Quem acha que isso não tem nada a ver com a democracia e que era inevitável deve questionar- -se, por exemplo, sobre o motivo pelo qual em quase todos os países totalitários, independentemente da sua riqueza, a maioria das pessoas vive tão mal.

Porque antes da democracia a esmagadora maioria dos portugueses vivia mal. Havia miséria como não há, nem por sombras, hoje. Havia pobreza como não há, nem por sombras, hoje. Há gente a viver mal hoje, idosos com reformas miseráveis. Mas antes da democracia não havia sequer reforma garantida para todos - lembram-se? E podia não haver carjacking - não havia sequer carros que chegassem para isso - mas havia tropa obrigatória, lembram-se? E minas nas picadas, e emboscadas na selva. Quantos portugueses morreram, obrigados, na guerra? Quantos voltaram deficientes? Quantos tiveram de fugir para não serem enviados para África? Quantos fugiam, "a salto", para tentar uma vida melhor no estrangeiro? Quantos morriam de medo de dizer alguma coisa errada que os levasse a serem considerados anti-regime, a perder o emprego, a serem presos? Era seguro, ser português? Era seguro, viver numa ditadura?

Há, claro, sonhos que se perderam e traíram. Não somos todos felizes - mas só nos cartazes das ditaduras toda a gente sorri. Os amanhãs cantaram, mas desafinados para muitos ouvidos. Desafinam ainda, e ainda bem - porque agora depende tudo de nós, e cada voz canta diferente. Sobretudo, não me digam que "há medo de falar" nem usem a palavra "fascismo" a torto e a direito. Porque é ridículo, demasiado ridículo, mas porque, sobretudo, é um insulto a todos os que realmente souberam o que era ter medo e viver num regime totalitário, todos os que no "dia inicial, inteiro e limpo" de Sophia se sentiram, enfim, inteiramente inteiros.

DN, 25-4-2008
 
LARANJAS E CAPITÃES

Nuno Brederode Santos
jurista
brederode@clix.pt

Sentado no muro, no seu equilíbrio instável, disse Humpty Dumpty, o ovo inglês: "A questão está em saber quem manda." Isto foi antes de oscilar e cair - e nem a solicitude de todos os cavalos e soldados do Rei conseguiu devolver-lhe a integridade. Com o ovo português foi diferente. Desde logo, porque os cavalos e soldados do Rei nada fizeram por ele. A supli- cada vaga de fundo foi tão de fundo que do fundo não passou e nada tugiu à superfície. Depois, porque, se Humpty Dumpty se mostrava preocupado com o poder, com "quem manda", o ovo português dilapidara-o por quantos pequenos autarcas, aparatchiks e senhores da guerra conseguiu juntar. Então, à míngua de poder, quis simulá-lo: foi o espectáculo dos mais caprichosos ziguezagues programáticos; a retórica pesada; o brado inócuo; os simbolismos discricionários. É uma velha chibata administrativa chamada autoritarismo, que imita o poder para esconder a sua falta. Há quem diga que a queda foi arbitrária e acidental. Talvez. Mas tudo, na sua curta existência, lhe foi arbitrário e acidental.

Já o não foi, porém, a rapidez com que os cavalos e os soldados do Rei passaram à busca de alternativas. Fugindo ao incansável fantasma de Santana Lopes, tentaram tentar Cadilhe e acabaram num Jardim que não se resigna a um futuro em prosa. Excitado, este disse à imprensa que não tinha tropas no "Continente" (um problema que, de resto, só o aflige no partido, pois na sociedade tem até uma imensa horda bélica, que os anos e os abusos reuniram contra ele) e soltou Guilherme Silva e outras vozes privativas. Gozou até dos últimos brios de Menezes. Mas esse assalto esbarrou no savoir-faire de Santana para tudo o que é vago, etéreo, translúcido, virtual e mediático. Sendo ele próprio a paixão que o cega, o narcísico ex-primeiro-ministro travou Jardim, usando os media para darem por consumado o que o não estava. Santana ganhou a dança de espectros. Jardim abandonou para, como habitualmente, poder falar grosso depois de chegar a casa. Pede agora, em seu favor, um 25 de Abril no partido (a mesma data que recentemente tanto depreciou na Região). Mas Santana tem custos por pagar. Estruturas poderosas, como o Porto e a Madeira, não lhe perdoarão o desaforo.

A divisão dos "populistas" sorri a Passos Coelho e Manuela Ferreira Leite. Ele - um liberal amável que, naquele mundo, sobressai pelo seu apego ao chá das cinco - conquistou os seus direitos. Pode tentar a sua sorte de hoje sem prejudicar um amanhã que a dispense. Assim lho permitam as vagas de órfãos de Menezes que agora o vão assediar. Ela, com maior reconhe- cimento social e um passado a atestar que não faz luta política fora do institucional. Mas com dois problemas pela frente. Um é a suspeição e o desconforto da relação com Cavaco. Outro é o quebra-cabeças: será que para enfrentar quem, magoando-nos, controlou o défice, a solução virá de quem, magoando-nos, nem sequer o conseguiu?

Aqui chegados, põe-se a questão: será normal, na comemoração do 34.º aniversário do 25 de Abril, falarmos da crise interna do maior partido da oposição e das pequenas veleidades e grandes ambições dos seus principais agen-tes? Será esta a homenagem devida a esses jovens que, numa jornada corajosa e breve, arriscaram carreiras e vidas, sem rede nem sucedâneo? Creio que o é. Abril trouxe-nos o brio de volta. E a liberdade e responsabilidade de escolhermos, nos relativos e humanos termos em que a escolhe existe. Para que tenhamos mérito no que a vida nos deu de bom e culpa própria nos erros cometidos. Por estranho que aos novos pareça, a nossa insatisfação de hoje (e espero bem que de sempre) é o tributo maior que devemos aos jovens capitães inconformados. Sem prejuízo das liturgias do nosso apreço e das celebrações da nossa memória.

E, se assim é, desçamos à terra do a- -propósito com uma nota prática de circunstância. Senhor ministro: mandou porventura afixar, por sobre a entrada da Academia Militar, a dantesca prevenção do "abandonai toda a esperança, ó vós que entrais"? Reinstituiu o parlamento à socapa o instituto da morte civil? Se nem uma coisa nem outra, queira matar no ovo essa peregrina ideia de sonegar cidadania aos militares reformados. A nossa gratidão histórica agradece (a retalho), mas o simples bom senso (que é grossista) agradece muito mais.

DN, 27-4-2008
 
JÁ LHES MURCHARAM UMA FESTA, PÁ

Alberto Gonçalves
sociólogo
albertog@netcabo.pt

A cada ano, a "herança" do 25 de Abril é reivindicada pelos maiores derrotados do processo revolucionário, que festejam uma "revolução" por consumar. Desculpem a alusão desportiva: é um pouco como se a vitória no campeonato fosse comemorada pelas equipas que o perderam. No caso, as forças comunistas perderam exactamente o quê? É facto que a atarantada democracia em curso não constitui um modelo admirável de riqueza, justiça e liberdade. Mas ganha na comparação com os sonhos dos "herdeiros" de "Abril", à época empenhados em transformar Portugal numa filial de Moscovo ou Pequim.

Atraiçoados pela realidade, não conseguiram, e por isso consolam-se há décadas com a nostalgia do que, durante uns meses, acreditaram estar ao seu alcance. Os cravos, as cantigas e certo entulho constitucional são a compensação possível pelo falhanço dos "valores" de "Abril", felizmente falecidos. Se a "herança" é essa, não tenciono intrometer- -me nas partilhas. Com mais ou menos jeito, o 25 de Abril encerrou uma ditadura obtusa, pormenor que agradeço. Os devotos de "Abril" queriam enfiar-nos numa ditadura pior, benesse que dispenso. Sob vários pontos de vista, "Abril" é mesmo deles, e impedi-los de brincar aos totalitarismos hipotéticos seria cruel. Bastou interromper-lhes os totalitarismos reais.

DN, 27-4-2008
 
OS BAIRROS DA LIBERDADE

LUÍSA BOTINAS e ROBERTO DORES

A revolução na habitação da Grande Lisboa

O Bairro 25 de Abril, de Linda-a-Velha, em Oeiras, nasceu em 1975, em pleno período pós-revolucionário, quando "a paz, o pão, habitação, saúde e educação", de Sérgio Godinho, eram palavras de ordem na boca de toda a gente. As moradias de rés-do-chão e primeiro andar, projectadas por um arquitecto, rodeadas por canteiros e passeios, vieram a acolher famílias que viviam até então em condições deploráveis.

Considerado um dos projectos SAAL de maior sucesso, o bairro de Linda-a- -Velha, apesar de ter vivido anos conturbados, ainda não sossegou. Os seus habitantes temem que um dia as casas possam vir a desaparecer, para dar lugar a um condomínio. É mais uma luta que enfrentam.

"Não temos o direito de superfície dos terrenos onde estão construídas as nossas casas, por isso, se um dia aparecer um político que se lembre de nos pôr fora daqui para fazer disto uma urbanização de luxo, nada podemos fazer. Sabemos que esta localização é privilegiada e muito apetecida", diz, preocupado, João Vieira, o vice-presidente da associação de moradores.

A única solução é a Câmara de Oeiras vender os terrenos a um preço simbólico, de forma "a que os possamos pagar e não o que nos têm proposto, incomportável para a maioria das pessoas que aqui vive. Não somos ricos e há muitos que têm dificuldade para arranjar dinheiro para comer, quanto mais para pagar à câmara", sublinha aquele morador. "Continuamos à espera de uma resposta", acrescenta.

Há 33 anos, quando foi preciso arregaçar as mangas, formar uma comissão de moradores e depois construir as casas onde hoje vivem, fizeram-no. "Ainda me lembro de ter vindo para aqui e trazer as nossas coisas em cima de um tractor", lembra Elisabete Penedo. A sua casa foi das primeiras a ser entregue. Estreou-a com o marido e o filho de três anos, conta-nos enquanto mostra fotografias de Carlos tiradas há 30 anos. Ele surge barbudo e de cabelos compridos a falar para um megafone. "Foi no dia da entrega das chaves", acrescenta.

"A maior parte das pessoas veio de nove bairros de barracas ou de casas degradadas desta zona (Biscouteiras, Bairro da D. Aninhas, Bairro da Junça, etc.)", recorda. Os técnicos contactaram-nos, fizeram um levantamento das famílias e das necessidades de cada uma. "Depois, juntámo-nos numa associação. O objectivo era construirmos um bairro com casas condignas, com o financiamento do Estado. Passo seguinte, encontrar terrenos disponíveis", explica João Vieira.

Quando se inscreveu na associação, Vieira tinha "trinta e tal anos". Trabalhou na Lusalite, era um dos muitos operários da construção civil e da indústria candidatos a uma habitação. Nuno Vasconcelos era na altura um engenheiro com 23 anos (hoje é presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana) e liderou o processo. A psicóloga Isabel Cordovil e o arquitecto José Silva Carvalho acompanharam-no nesta operação. "Foi uma experiência marcante, muito positiva e única. As populações estavam directamente envolvidas na resolução dos seus problemas", assegura.

E os laços também ficaram. José Silva Carvalho é presença certa no bairro, todos os 25 de Abril. "O arquitecto nunca falha, este ano cá o esperamos para a sardinhada", diz Manuel do Sul, 71 anos, há 33 no bairro, presidente da associação.

João Vieira garante que processo mais democrático não podia haver. "Votávamos todas as decisões e tudo era aprovado por maioria. Até para comprar os materiais de construção foi assim. Submetíamos tudo à votação, pois o que quer que decidíssemos, seria determinante para o preço da renda que iríamos pagar. Na atribuição dos fogos também procurámos seguir critérios de justiça. Dava-se primazia a quem vivia em piores condições, com filhos, etc.", recorda.

Com as obras já a decorrerem desde 1976, surgiu um revés importante. Em 1978, já com 36 fogos construídos, o empreiteiro J. Pimenta faliu. "Tivemos de avançar para a construção directa, com a supervisão dos técnicos. Alguns de nós trabalharam na construção do bairro." E as 192 casas projectadas para 5,7 hectares. No 25 de Abril de 1979 foram entregues as primeiras chaves. O bairro ficou totalmente concluído em 1981. O Estado, através do Fundo de Fomento da Habitação, "deu" 90 contos a fundo perdido, por cada fogo. O resto foi pago pelos sócios ao longo de 25 anos. "Em 2005, acabámos de pagar as casas, agora contribuímos com uma verba para podermos fazer a manutenção e conservação do bairro", explica João Vieira.

Além das habitações, a associação de moradores construiu e gere no bairro um ATL, um centro de dia, um polidesportivo, um coreto e uma creche, cuja gestão entretanto passou para a Santa Casa da Misericórdia.

Hoje, a experiência seria irrepetível. "Há falta de mobilização, o espírito de luta comunitária perdeu-se. As pessoas fecham-se nas suas casas, mas, mesmo assim, há uns quantos jovens que vêm ter connosco para participarem nas nossas actividades (futsal, animação) e são interessados", salienta João Vieira, garantindo que o facto de a associação se ter mantido imune às tentativas de instrumentalização político-partidária ao longo dos anos foi determinante para o sucesso da operação. "A nossa política era a da habitação."

De Salazar a revolucionário

Nos antípodas deste bairro de Linda- -a-Velha está outro Bairro 25 de Abril, na Quinta da Lomba, Barreiro. Construído no final dos anos 60, o antigo Bairro da Caixa ou Salazar, um conjunto habitacional de mais de 200 fogos promovido pelo Instituto da Segurança Social é, em termos urbanísticos e de arquitectura, o paradigma da habitação social do Estado Novo.

A agilidade do sr. David a passear a cadelinha pela trela não se coaduna com os 82 anos que assegura já ter cumprido. "Vim para aqui em 1969, para uma casa de cinco assoalhadas, muito melhor do que aquela onde vivi 23 anos no Pragal, em Almada", conta com um sotaque alentejano cerrado. "Sou de Casével, perto de Castro Verde", continua, desvendando uma história semelhante à de tantos conterrâneos que deixaram o Baixo Alentejo para virem trabalhar para Lisboa e habitar no Barreiro. "Viemos pagar uma renda de 600 escudos que é o que a gente paga hoje, mas nos euros..."

Casados há 60 anos, o senhor David e a D. Maria são dois idosos que gostam do bairro onde vivem. "É sossegado." E má fama tem? "Fico zangada quando dizem isso. As pessoas falam sem conhecer. Gosto muito disto e só saio daqui para ir para a minha terra", afirma a D. Maria. Salazar e o 25 Abril cruzaram-se por diversas vezes na sua vida, metaforicamente falando...

"Trabalhei nas limpezas, nos estaleiros da Ponte Salazar, que depois mudou para 25 de Abril, e este bairro que era conhecido como o Bairro do Salazar também mudou de nome com a revolução", acrescenta.

Praça da Liberdade, Rua da Resistência ao Fascismo, Rua José Dias Coelho fazem parte da toponímia deste bairro cada vez mais envelhecido. "Há poucos miúdos da nossa idade", diz o Diogo de 12 anos e olhar trocista enquanto dá uns toques na bola com mais cinco vizinhos. No relvado à porta de casa com o entardecer e o Tejo em fundo eles são os miúdos do bairro.

As ocupações em Setúbal

Começou por ser baptizado com o nome de Fundação Salazar, mas no dia 8 de Maio de 1974 a placa original foi destruída. Nascia em Setúbal o Bairro 25 de Abril. Construídas um ano antes para alojarem, sobretudo, famílias ligadas à função pública, a maioria das 171 casas viria a ser ocupada por gente que habitava umas barracas ali perto. As escrituras só seriam feitas em 1996 e, depois da constante degradação em que o bairro mergulhou, foi preciso esperar por 2002 para restaurar os vários edifícios.

"Isto esteve muito mau, com droga e tudo, mas hoje é um bairro à séria", garante Eufrázia Ferreira, orgulhosa da zona onde vive há 35 anos, aproveitando a presença do presidente da Junta de São Sebastião para chamar a vizinha Joana Prata. Entre as duas lá tentam convencer o autarca Carlos Almeida a pôr uns bancos junto ao prédio onde vivem. "Temos de falar sempre encostadas às paredes", justificam. "Então, ponham lá isso por escrito", pede o edil, que pega neste exemplo para tentar mostrar ao DN o "espírito familiar" das gentes do bairro, que foi transferido do IGAPHE para a câmara, décadas depois de uma ocupação que ficou célebre em Setúbal.

Que o diga Sérgio Pires. Este professor de História tinha cinco anos, mas retém uma vaga ideia do dia em que o pai entrou aos saltos pela humilde barraca onde a família vivia, no Bairro da Cova do Canastro, pedindo à mãe que arrumasse a trouxa depressa. "Gritava que a casa era nossa e estava de lágrimas nos olhos. Eu e os meus dois irmãos ficámos assustados. Não sabíamos se era bom ou mau", relembra, admitindo só ter percebido que a vida tinha levado uma volta quando conheceu a nova casa, onde os pais continuam a viver e que só recentemente compraram por 10 mil euros.

O presidente da junta recorda o movimento transversal a dezenas de casais, na casa dos 30 anos. "Era gente que já vivia nesta zona, mas em condições deploráveis. Havia famílias que continuavam a dormir no mesmo quarto, apesar de terem mais assoalhadas."

O processo de ocupação, apoiado pelo Círculo Cultural de Setúbal, era simples. A partir do momento em que uma família entrasse numa casa passava a ser o seu legítimo proprietário, mesmo sem pagar um tostão. Foi num ápice que os 171 fogos conheceram os 424. Isto apesar de existirem alguns exemplos de pessoas que tiveram de abandonar os lares que ainda não estavam concluídos, a pedido do Movimento das Forças Armadas, tendo, contudo, a garantia de que iriam ser alojados em outros edifícios da cidade.

DN, 26-4-2008
 
NOVA REPÚBLICA PRECISA-SE

Manuel Maria Carrilho

Quando olhamos para os 34 anos que agora se perfazem sobre o 25 de Abril de 1974, o que vemos? Que balanço fazemos? Que sucessos, que fracassos, que impasses identificamos nós?

Nos sucessos, há dados quase indiscutíveis: a estabilização da democracia, depois de quase cinco décadas de ditadura. O fim do colonialismo, depois de muitos anos de cegueira política e 13 anos de guerra. A abertura ao desenvolvimento, em contraste com a longa letargia do Estado Novo.

Os fracassos são, naturalmente, mais controversos. A ambicionada transformação da herança colonial do passado em cumplicidade cultural para o futuro continua - como se vê pela atonia da CPLP e pelas peripécias do acordo ortográfico - uma miragem tão adiada como esquecida.

No plano da democracia, o fosso entre a sua dimensão representativa e as exigências participativas tem aumentado, sem que se consiga responder com eficácia à degradação dos partidos, à descredibilização dos políticos ou ao desinteresse dos cidadãos. Factores que em qualquer momento podem convergir, com as mais funestas consequências.

Quanto ao desenvolvimento, parâmetro em que - como o atestam múltiplos indicadores - muito se fez sectorialmente, os sinais do fracasso continuam contudo a manifestar-se na persistência do iniludível diagnóstico sobre o nosso lugar na Europa, ou melhor, como se diz numa fórmula tão consagrada como deprimente, "na cauda da Europa". Que agora, com a Europa a 27, corremos o risco de se transformar "na cauda da cauda"!

O que todavia mais importa, nesta ponderação de sucessos e de fracassos, é perceber onde estão os impasses que exigem intervenção, de modo a fazer o futuro tender mais para os primeiros do que para os segundos.

No entanto, para que isto aconteça, o País precisa de assumir uma verdadeira mudança de paradigma, no sentido de ambicionar mais pluralismo, maior exigência e melhor qualificação. Mudança que tem de apontar para o projecto de uma Nova República que, no quadro do Centenário da República que se aproxima, seria sem dúvida a melhor forma de renovar as expectativas do 25 de Abril de 1974.

Só assim o assustador retrato do deslaçamento das relações da juventude com o regime e com o próprio País, que o Presidente da República ontem apresentou no Parlamento, poderá ser ultrapassado.

Uma Nova República que reclame mais ideias, mais abertura e mais debate dos partidos políticos, hoje reduzidos à função de exércitos eleitorais, quase sem vida própria e com uma noção de serviço público cada vez mais residual.

Uma Nova República que reivindique mais pluralismo na comunicação social, tão empobrecida de informação factual como condicionada por uma "opiniocracia" instalada, com pouco mundo, incapaz de se renovar e - também ela - excessivamente preocupada com a conservação dos seus privilégios.

Uma Nova República que seja mais exigente em relação à vida democrática, propondo soluções políticas que respondam às novas expectativas de participação dos cidadãos, que respondam aos desafios da "contrademocracia" de que tanto se fala, e que restaurem a confiança nos processos de decisão dos responsáveis políticos.

Uma Nova República que consagre a passagem das palavras aos actos no que se refere à qualificação do País - do território, das instituições e das pessoas. É aqui que, apesar de tudo o que se tem feito, mais falta ainda fazer. Como Sofia o pressentiu e escreveu numa carta de Abril de 1976 a Jorge de Sena, o problema que Portugal não soube enfrentar no 25 de Abril foi o da sua enorme "incompetência cultural", no sentido mais lato desta expressão. E o seu pressentimento, é preciso reconhecê-lo, ia direito ao coração daquele que, três décadas passadas, continua a ser o nosso mais grave problema.

É ele que, acima de tudo, exige uma Nova República que faça da qualificação o desígnio central do País: com um plano que estabeleça sem equívocos as respectivas prioridades estratégicas e orçamentais; com uma agenda de objectivos e de medidas bem articulada e calendarizada; com um elã transformador que colha as lições que casos de sucesso como os da Finlândia e da Irlanda tão claramente sugerem; com um Conselho de Ministros especificamente dedicado a esta causa e um vice-primeiro-ministro responsável por ela.

Em suma, uma Nova República que assuma que este é o défice nacional mais difícil de vencer, mas também, na verdade, o único que garante aos portugueses um futuro diferente do seu passado. Que era, afinal, o que se queria com o 25 de Abril.

DN, 26-4-2008
 
E AFINAL O 25 DE ABRIL...

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Na voragem de um quotidiano detalhado à exaustão temos vindo a perder o hábito e o gosto por um qualquer exercício de análise, mesmo do passado recente. Já G.Sorel observava que é caracteristico das épocas de decadência o desaparecimento dos pensadores e a emergência dos comentadores. Estes entregam-se à tarefa circular de analisar um facto - em regra de relevância efémera - por todos os ângulos possíveis. O tempo mediático impõe a redução dos descontextualizadas comentários a análises simplistas, tão efémeras como os factos que as dominam.

É curioso como o 25 de Abril, que estabeleceu uma ruptura definitiva com factores determinantes da nossa identidade histórica, seja hoje pouco mais do que um feriado, com sorte, uma "ponte". Mesmo os que viveram conscientemente este periodo histórico e, em muitos casos, o protagonizaram na catadupa de acontecimentos, inevitabilidades e consequências, de um lado e outro das barricadas, parecem ter preferido digeri-los interiormente como se , com tal atitude, contribuíssem para esta morna normalidade, tida por sua vez como o epílogo tranquilizador de tão indigesta experiência.

Não é, pois, de estranhar, que um estudante graúdo, interrogado sobre o significado da data, tenha respondido sem titubear que se tratou da implantação da República. Espantoso seria, por exemplo, que este e todos os outros soubessem que no dia 25 de Abril de 1974 se deu um golpe de Estado e no dia 1 de Maio se iniciou um processo revolucionário. Que o primeiro teve como causa próxima uma mera questão de precedências e um consequente movimento corporativo dos militares, e o segundo se originou na confluência de todas as forças político-ideológicas que já estavam ou apareceram no terreno. Que houve dois 25 de Abril, um aqui, neste pequeno rectângulo europeu, e outro, avassalador, em todos os territórios onde se hasteava a bandeira portuguesa. Que rapidamente tudo o que realmente relevava passou para a jurisdição de forças externas. Que o mundo se dividiu entre o insólito comovedor de que é paradigma o cravo no cano da G-3, o folclore que a esquerda replicava pelos países onde estas coisas ainda eram possíveis, como os da América Latina, e uma preocupação irritadiça com o despropósito histórico do PREC, num país da Europa ocidental e da NATO. Que o único objectivo estratégico - a descolonização - pertencia ao Partido Comunista teleguiado por Moscovo e foi também o único alcançado e tornado irreversível. A unicidade sindical, a reforma agrária, a economia estatizada, a sociedade sem classes, tudo isso foi passageiro, como um acne juvenil.

Percebe-se que tenha sido assim porque, como se viu, a História não deu razão a quase ninguém. Quinze anos depois a União Soviética e todas as teorias "científicas" em que se tinha baseado cairam literalmente com o muro de Berlim. Os países que emergiram da descolonização têm, ao longo destes anos, enfrentado guerras fraticidas e acumulado atrasos com enorme prejuízo para as suas populações. Portugal perdeu território, massa crítica, população, mercado, importância geoestratégica, desígnio e destino. Até agora parece não ter encontrado o seu futuro enquanto desperdiça, metodicamente, o seu presente. Por outro lado, é certo que os ventos da História iriam obrigar a algum desfecho da guerra do Ultramar e Portugal post-Salazar iria, inevitavelmente, caminhar para um regime democrático. Uma questão de tempo, possivelmente o tempo obrigatório de todas as transições de regime.

Se a descolonização em si não é uma mancha, a forma como foi feita constituiu um vergonhoso acto de irresponsabilidade, consentido pela generalidade das Forças Armadas. Os ganhos da democracia, que são reais, são descuidados quer pelos eleitores quer pelos eleitos. A liberdade, cuja ausência justificou para tantos o nosso atraso, não nos devolveu engenho e arte que se veja.

E as coisas boas que aconteceram? Provavelmente não são, sequer, valorizadas pela nova geração que, a braços com outros problemas, já nem nos concede o benefício da dúvida. É a consequência de se omitir a História.

DN, 1-5-2008
 
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