09 abril, 2007

 

Domingo de Páscoa


Tradição, festa, religiosidades diversas...


http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1scoa

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Pilatos e a verdade

Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista

"O que é verdade?", perguntou Pilatos a Cristo, quando hesitava em condenar um inocente que a multidão queria crucificar (S. João, 18. 38). Esta expressão de descrença na capacidade humana para atingir a verdade serviu para Pilatos relativizar a decisão de vida ou de morte que tinha de tomar. Assim desvalorizou o facto de ceder à pressão popular, demitindo-se de decidir em consciência.

O cepticismo não é apenas do nosso tempo pós-moderno, de onde desapareceu o optimismo antes colocado na razão. O cepticismo é de sempre, com formulação erudita em filósofos gregos (os sofistas), em David Hume, em Nietzsche...

A novidade da nossa era está em que o cepticismo radical se democratizou. No Ocidente, as religiões - nomeadamente as confissões cristãs - perderam vigência social, tornando-se minoritárias. E mesmo dentro dessas minorias, nem todos acreditam nos dogmas que definem a ortodoxia da religião em causa.

Por outro lado, faliram as "religiões laicas", como o comunismo e o nazismo. As antigas certezas ruíram para muitos. O que, diz-se, até traz uma vantagem: reduz a possibilidade de conflito violento, como foram as guerras de religião ou, mais perto de nós, a violência de raiz ideológica. A excepção e a contraprova aí estão no chamado terrorismo islâmico.

Entretanto, avançam a ciência e a técnica, com resultados bem visíveis em inúmeras frentes. Daí a tendência para valorizar as coisas em função da sua utilidade prática. Não interessa tanto saber se algo é ou não verdadeiro (questão por vezes julgada, até, sem sentido), mas se resulta ou não.

As próprias religiões são frequentemente valorizadas em função da sua utilidade. Seja esta a sua eficácia para realizar curas milagrosas, seja fazer o crente "sentir-se bem", seja, ainda, a capacidade das religiões para manter as populações "na ordem", dentro de certos padrões de comportamento (algo muito apreciado por conservadores não crentes).

A discussão sobre concepções do mundo e a existência ou a fundamentação de escolhas morais praticamente desapareceu do espaço público, limitando-se a círculos académicos restritos. Nas nossas sociedades pluralistas coexistem muitas e variadas concepções de vida. Cada um fica com a sua opinião e ninguém tem nada com isso. A filosofia é, assim, considerada matéria inútil, por isso banida do ensino.

Mas a desvalorização da procura da verdade tem um preço. Inevitavelmente, o relativismo reflecte-se nas escolhas morais, que passam a depender de factores contingentes, como a disposição psicológica de cada um. Importará, quando muito, a sinceridade da opinião - não a sua justificação.

Nada impede, então, que quaisquer horrores venham a ser vistos sem repugnância. Um povo altamente culto como o alemão aceitou o nazismo e as suas políticas de extermínio das "raças inferiores" e dos deficientes. E uma ideologia movida inicialmente pela compaixão pelos oprimidos, o comunismo, produziu o Gulag.

A resposta errada ao niilismo moral é o fundamentalismo. Ou seja, a aceitação de ideias e valores tornados absolutos e intocáveis, de maneira a proteger-nos da rápida mudança e da diversidade do mundo. É um falso refúgio contra a insegurança. Outro abrigo é viver deliberadamente na superficialidade.

Não se pode ignorar toda a crítica, toda a desconstrução, de concepções antes tidas por indiscutíveis. Nem é legítimo tentar impor aos outros aquilo em que acreditamos. Pelo contrário, é em diálogo com os críticos da razão que deveremos afirmar que a argumentação racional faz sentido.

Não que alguém possa arrogar-se possuir a verdade. Mas podemos e devemos procurar aproximar-nos desse horizonte de verdade. Aliás, por muito que o espírito relativista domine hoje as nossas sociedades ditas desenvolvidas, o instinto de procurar a verdade é algo irreprimível em nós. Sem acreditar em alguma coisa, ainda que de forma implícita, provisória e insegura, seria impossível viver.

Segundo o filósofo italiano Gianni Vattimo, a nossa época, desprovida de convicções fortes sobre o sentido da vida, é caracterizada pelo "pensamento débil". Ora este leva a uma concepção também débil da pessoa (para usar uma expressão de Bento XVI). Daí deriva a incapacidade para ancorar solidamente os direitos humanos.

Decerto que a vida é um mistério. Mas se desprezarmos a procura da verdade - uma tarefa sem fim - arriscamo-nos a "lavar as mãos" face aos piores crimes. Como Pilatos.

DN, 7-4-2007, pág. 9
 
Papa ouve pregador defender participação das mulheres na Igreja

Luís Naves*

O Papa Bento XVI celebrou ontem a missa de Sexta-feira Santa, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, um dos momentos culminantes da celebração pascal católica. À noite, o chefe da Igreja Católica percorreu a Via Sacra, no Coliseu de Roma, transportando ele mesmo a cruz em parte do trajecto de 14 "estações".

Este é um momento que pretende retratar as circunstâncias da morte de Jesus. À hora do fecho desta edição, ainda decorria a cerimónia, que foi parcialmente dedicada ao tema das mulheres que rodearam Cristo.

Milhões de católicos, incluindo em Portugal celebram nesta altura a Semana Santa, realizando procissões e missas. Esta tradição bíblica coincide com a Páscoa judia. Para os cristãos, ontem foi a sexta-feira que comemora a morte de Cristo, cuja ressurreição, celebrada no domingo de Páscoa, representa a festa mais importante do respectivo calendário religioso.

Na missa de ontem, Bento XVI não proferiu a homilia, que ficou a cargo do padre Raniero Cantalamessa, num texto estudado ao milímetro. O religioso privilegiou o tema das mulheres, defendendo que estas devem ter um papel mais importante na Igreja. "Nenhuma mulher foi implicada, mesmo indirectamente, na condenação" de Cristo, justificou o padre.

A presença de mulheres em torno de Jesus no momento da sua morte contém um ensinamento profundo, prosseguiu o religioso. "A nossa civilização dominada pela técnica precisa de um coração para que o homem possa sobreviver. Nós devemos dar mais lugar às razões do coração, se queremos evitar que o nosso planeta, enquanto aquece fisicamente, mergulhe espiritualmente numa Era Glacial", foi ainda dito na homilia.
*Com agências

DN, 7-4-2007, pág. 15
 
Faltam crianças para fazer de 'anjinhos'

Paulo Julião e Amadeu Araújo*

As crianças estão a desaparecer das procissões religiosas. Um pouco por todo o lado, comissões fabriqueiras e párocos lutam com a falta de adesão dos mais novos aos rituais da terra, mais comuns pela altura da Páscoa. Os "anjinhos" tendem a ser cada vez menos.

Em Viana do Castelo, a falta de crianças levou mesmo a que, no passado domingo, a organização da tradicional Procissão dos Passos colocasse apenas 50 elementos, quando seriam necessários mais do dobro. Em pleno Domingo de Ramos a procissão saiu às ruas do centro histórico, culminando com o Sermão do Encontro. Para a representação dos vários quadros alegóricos são necessárias "mais de uma centena" de crianças para desempenharem papéis de figurantes, como soldados romanos ou anjos, garantiu ao DN fonte da organização. "Mas apenas conseguimos cinquenta, o que já foi muito difícil", explicou.

O ritual obriga as crianças "a muitas horas" com os respectivos trajes, alguns desconfortáveis. Para desmotivar ainda mais as crianças, há que juntar os longos minutos da leitura do Sermão do Encontro, altura em o andor de Nossa Senhora se encontra com o do Senhor do Passos. Nesse momento, os figurantes aguardam em plena praça, sempre trajados. Algumas crianças não resistem ao calor - ou à chuva como foi o caso este ano -, e acabam por fazer de tudo para não voltar a apanhar "seca", como reclamam muitos, habitualmente, no final.

Também em Vila do Conde, "é muito difícil" arranjar crianças para participar nas procissões da terra, diz Maria José Pontes, do armador de Vila do Conde que organiza grande parte dos rituais. "Tenho de me valer das catequistas e mesmo assim ainda tenho de andar a bater às portas", explica. Outros métodos para garantir "anjinhos" passa por ir às escolas e colocar anúncios nas portas. A mudança é grande, sobretudo para quem faz isto há 47 anos. "Antes, as pessoas vinham pedir para ir na procissão e até pagavam", recorda. Agora, os tempos são outros. Para a Procissão do Senhor Morto, que acontece na Sexta-Feira Santa, foi mesmo ao Rancho do Monte solicitar apoio.

A falta de adesão às festividades religiosas não se sente apenas nos mais novos. Em Lamego, a Páscoa chama cada vez menos gente, quando antigamente os romeiros chegavam aos dez mil. "Os mordomos vão ficando velhotes e não há quem os substitua, e com isso perde-se o viço", lamenta Rogério Lopes, comerciante na cidade.

Ao lado de Lamego, em Lazarim, onde a Páscoa também se vive no aconchego da fé, o calvário já desapareceu do lugar do Pego, mas "a procissão ainda hoje se faz", lembra Manuel Ferreira, de 84 anos. Mas, cada vez há menos "homens para levar os andores" e por estes dias os sinos ainda repicam após a missa do Domingo de Páscoa, mas já não há rapazes para lhes dar corda até que o compasso (visita pascal) termine" conclui o ancião.
*Com Paula Ferreira

DN, 7-4-2007, pág. 36
 
Onde e quando é a vida eterna?

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Lembro-me perfeitamente. Estava em Tubinga, quando, pela manhã, fui surpreendido por este título na primeira página do jornal: "O Presidente visita o Filósofo". François Mitterand fora falar com o filósofo Jean Guitton a sua casa, para perguntar-lhe o que é a morte. "Qual é a última barreira?" "Senhor Presidente, é muito simples. A última barreira é a morte." "Mas... e depois da morte?" "Depois da morte é o que se chama o Além." "Mas o que é o Além?" Aí, o conhecido filósofo católico, discípulo de Bergson, amigo de Paulo VI, observador no Concílio Vaticano II, respondeu que não sabia; precisamente "porque é o Além".

Outro grande filósofo do século XX, Ernst Bloch, o filósofo ateu da esperança, deixou escrito que "o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: 'Eu sou a Ressurreição e a Vida.' No século primeiro depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível." De facto, hoje, face ao Além e à vida eterna, o que parece estar em vigência é a indiferença. Mas Bloch prevenia: "Nada impede que dentro de 50 ou 100 anos volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?"

Outro filósofo marxista, B. Bosnjak, contemporâneo de Bloch, também escreveu: "Determinadas formas de religião podem deixar de existir. Mas, como antítese da morte, quer dizer, como aspiração de eternidade, a religião pode sempre tornar a renascer. De facto, encontramo-nos perante o maior dos mistérios: não sabemos porque é que existe alguma coisa em vez do nada."

Já São Paulo tinha proclamado que, se Cristo não ressuscitou, é vã a fé dos cristãos.

Mas, agora, precisamente em tempos de Páscoa - celebração da morte e da ressurreição de Jesus -, andam os media alarmados por causa de um filme de James Cameron, com um documentário sobre uma descoberta arqueológica de 1980 em Jerusalém: dez ossários, seis dos quais com nomes decisivos do Novo Testamento e supostamente ligados à família de Jesus: Jesus, filho de José; Maria; José; Mariamme (Maria Madalena?); Judas, filho de Jesus; Mateus. Encontrado o corpo de Jesus, afundar-se-ia o edifício da Igreja cristã, assente precisamente na ressurreição! A maior parte dos arqueólogos e investigadores veio dizer que a afirmação de que se tinha encontrado o túmulo da família de Jesus é um disparate ridículo. Mas as pessoas gostam do esotérico e do escândalo.

Vamos, porém, supor que um dia se demonstrava que se tinha encontrado os restos mortais de Jesus. Então?

Lembro-me de, ainda jovem estudante, ter dito a um professor jesuíta, holandês, da Universidade Gregoriana de Roma, que, se viessem a encontrar o cadáver de Jesus, a fé cristã continuaria inabalável. Ele ficou surpreendido com a minha ousadia, mas remeteu-me para o famoso Lexikon für Theologie und Kirche, onde se defendia essa posição.

É evidente que a ressurreição nada tem a ver com a reanimação do cadáver, pois, se fosse isso, a pessoa voltaria a morrer. A ressurreição é a afirmação de fé, com razões, de que Jesus, na morte, não soçobrou no nada, mas foi encontrado pela plenitude do mistério inominável de Deus.

O que é e como é esse encontro ninguém sabe - a ultimidade transcende a razão científica, empírico-matemática. Mas aqueles que acreditam em Deus, o Vivente, que é Amor, Criador de todas as coisas, Fundamento e Sentido último de tudo quanto existe, fazem suas aquelas palavras que, noutro contexto, Espinosa deixou: "Sabemos e experienciamos que somos eternos."

Quem não viveu na superfície das coisas, quem perguntou até à raiz de tudo, quem se exaltou com a beleza, quem alguma vez teve um gesto absolutamente gratuito de amor, quem se deixou surpreender pelo abismo in-finito do olhar de alguém, quem tentou descer até ao fundo sem fundo de si, quem foi abalado pela exigência incondicionada do dever, quem se deixou tocar por um tu que não se possui nem domina, quem foi alguma vez avassaladoramente visitado pela pergunta inconstruível: "Porque há algo e não nada?", foi tangido pela fímbria da eternidade.

Onde e quando é a vida eterna? Aqui e agora, no Aberto.

DN, 8-4-2007, PÁG. 10
 
Conto de Páscoa

João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Quando Pedro acordou notou logo que não estava em casa, onde se deitara na noite anterior. Aquilo parecia uma gruta, uma funda e escura gruta. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi: "Afinal Platão tinha razão: sempre estamos numa caverna!"

À medida que os seus olhos se habituavam, ia notando que por ali andava muita gente. Depois de interrogar alguns sem obter respostas, uma senhora idosa disse-lhe: "Estás aqui precisamente como no mundo de onde vieste. Um dia aparecestes lá, sem nunca saberes bem a razão! Porque te inquietas?" De uma forma bizarra esta explicação satisfazia-a. E aos outros também.

Toda a gente parecia muito ocupada. Havia que apanhar comida, confeccionar roupas e outros utensílios. Alguns dedicavam-se à recolha de diamantes, que serviam de moeda, outros à produção e manuseamento de cacetes e outras armas.

Pedro achava tudo aquilo surpreendente. Como podiam, sem saber o significado da sua presença ali, acomodar-se e não pensar nas questões decisivas? Talvez fosse isso que ele fizera toda a vida, mas agora, que tomara consciência da sua inconsciência, queria como Platão conhecer a razão da caverna.

De súbito, encontrou a resposta. Ou pelo menos a pista para a resposta. Tudo ali só era possível por causa da luz. Toda a vida da caverna dependia da iluminação mortiça que banhava o local. De onde vinha a luz que os alumiava? Se soubesse a resposta a isso, Pedro sentia que obteria a solução para todos os enigmas. Olhando com atenção notou que era de um corredor, uns três metros acima do chão, que entrava a claridade. Pedro sentiu então que a única coisa que interessava era seguir por ali e encontrar a origem da luz. A luz que dava sentido a tudo o mais. Perto do corredor estava um homem velho, que sorriu quando Pedro lhe explicou o que pretendia. "É curioso que queiras saber de onde vem a luz. Hoje, a maior parte dos que procuram respostas sente-se mais atraída pela escuridão ali do fundo."

"Mas como?", perguntou Pedro. "Que se pode descobrir no escuro? A escuridão não dá respostas." "Talvez", continuou o homem, "mas o mistério da sombra hoje é mais atraente. E tu, que esperas encontrar na fonte da luz?".

Pedro confessou-lhe que era cristão. A sua fé ensinava-lhe o que esperar no fundo do corredor. Ele estava convencido de que, se seguisse por ali, haveria de chegar a um túmulo vazio, com "os panos de linho espalmados no chão, e o lenço, que tivera em volta da cabeça, não no chão juntamente com os panos de linho, mas de outro modo, enrolado noutra posição" (Jo 20, 6-7) A porta desse túmulo daria para o Céu.

"Ah! Bem me parecia que o Céu tinha de entrar", riu o homem. "Ainda hoje a maioria dos que querem seguir pelo corredor acreditam nisso. Mas nenhum volta para confirmar que há um Céu. Eu pensei algum tempo como tu, mas acabei por me convencer de que a luz vem simplesmente da rocha. Tenho a certeza de que a luz da caverna está na própria caverna. Não é preciso procurar forças exteriores. Isso é superstição. Como podes provar que existe o Céu e a sua porta no túmulo vazio?"

Pedro ficou uns momentos pensativo e depois respondeu. "Não posso provar, como tu não podes provar a existência da rocha luminosa de que falas. Ambos vivemos na fé. A fé a que entreguei a minha vida diz-me que existe o Céu e o túmulo que lá conduz."

"Sim, todos vivemos na fé", respondeu o outro. "Mas a minha fé não precisa de histórias mirabolantes, de Deus criador e redentor. E se é tudo mentira? Já pensaste nisso? E se fazes a viagem sem encontrar nada?", perguntou o homem.

Pedro, depois de pensar ainda um pouco, respondeu: "Eu sei que é verdade. A certeza que tenho é bem real. Tenho o testemunho de milhões de santos que, entregando-se totalmente à luz do túmulo vazio, não só transformaram o mundo mas, mais importante, viveram vidas felizes e plenas. Essa é a minha certeza, que já começo a sentir na própria vida. Uma certeza muito mais valiosa do que qualquer prova que possas invocar."

"Mas, mesmo que fosse tudo mentira", continuou Pedro, "duas coisas não posso negar. Primeiro, a minha ânsia por essa luz. Toda a minha existência exige que procure a fonte da única coisa que lhe pode dar sentido. Além disso, a segunda verdade inegável é que não posso imaginar outra forma de viver que responda melhor à minha busca de felicidade. Mesmo que não chegue ao Céu, amar a Deus e ao próximo é a melhor forma de viver na Terra." E Pedro trepou para o corredor.

DN, 9-4-2007, pág. 9
 
Papa Bento XVI denuncia "os massacres no Iraque"

Helena Tecedeiro

O Papa Bento XVI denunciou ontem os "massacres contínuos no Iraque" e lamentou que "nada de bom venha daquele país". Na sua mensagem pascal, transmitida para 67 países, Joseph Ratzinger evocou as "calamidades naturais" e "tragédias humanas", mas apelou aos cristãos para manterem "a fé trazida pela ressurreição de Cristo".

Com vestes douradas, Bento XVI chegou à Basílica de São Pedro, no Vaticano, à frente de uma procissão de cardeais e bispos. No dia mais santo do cristianismo, o chefe da Igreja católica celebrou uma missa a que assistiram dezenas de milhares de fiéis reunidos na Praça de São Pedro, decorada com flores idas da Holanda.

Após a bênção urbi et orbi (à cidade e ao mundo) pronunciada em 62 línguas, foi em italiano que o Papa alemão saudou os "sinais de esperança" no Médio Oriente, onde israelitas e palestinianos parecem querer dialogar. Pelo contrário, "nada de bom vem do Iraque, ensanguentado por massacres contínuos que forçam a população a fugir". O Papa lamentou também a "fragilização das instituições políticas" no Líbano, onde a oposição pró-Síria há meses mantém um protesto contra o Governo pró- -ocidental de Fouad Siniora.

Da varanda da Basílica de São Pedro, o sucessor de João Paulo II mostrou-se preocupado com África. Bento XVI denunciou a catástrofe humanitária no Darfur, a violência e pilhagens na República Democrática do Congo, os combates na Somália e a crise no Zimbabwe, onde o Presidente Robert Mugabe mandou espancar os opositores.

Na véspera das eleições presidenciais em Timor-Leste, Ratzinger recordou que a população da ilha precisa de "reconciliação e paz".

No dia em que os cristãos celebram a ressurreição de Cristo após a sua morte na Cruz na Sexta-feira Santa, o Papa traçou o retrato de um mundo "desfigurado pela guerra e o terrorismo" e condenou o recurso à religião para justificar "os milhares de faces da violência".

Bento XVI, que irá deixar Roma para passar alguns dias na sua residência de Verão em Castel Gandolfo, evocou as vítimas das catástrofes naturais, que atingiram recentemente Madagáscar e as ilhas Salomão, bem como todos aqueles que sofrem de doenças incuráveis ou de fome.

Durante a vigília pascal, na noite de sábado para ontem, Bento XVI baptizou seis mulheres, duas delas chinesas. O Vaticano tem procurado melhorar a situação dos 13 milhões de católicos chineses. Destes, oito milhões seguem a Igreja clandestina, ligada ao Vaticano. Os outros cinco milhões seguem a Igreja oficial, dependente do regime comunista.

DN, 9-4-2007, pág. 12
 
Morte banalizada mina fé na ressurreição

A banalização da morte numa sociedade onde se mata facilmente e onde se coloca a vida em perigo de forma imprudente dificulta a fé na ressurreição de Cristo. Esta foi uma das ideias fortes expressas ontem pelo cardeal-patriarca de Lisboa na homilia Pascal, celebrada na Sé Catedral de Lisboa, no âmbito das celebrações religiosas da Páscoa.

D. José Policarpo defendeu na sua homilia que "não acreditar na ressurreição de Cristo mata a fé cristã, embora possa permitir a subsistência de uma religiosidade cristã".

Numa tentativa de identificar as causas das actuais dificuldades que muitos experimentam em acreditar na ressurreição de Cristo, o cardeal-patriarca de Lisboa referiu que uma delas será a banalização da morte no seu aspecto de fim de vida.

Por outro lado, defendeu ainda D. José Policarpo, os hábitos da sociedade actual escondem cada vez mais a dramaticidade do mistério da morte.

"Mata-se facilmente, põe-se, imprudentemente, a própria vida em perigo, a morte tornou-se um fenómeno clínico, a própria dor da morte se dilui em cerimónias fúnebres mais marcadas pelos hábitos culturais do que pela vivência da densidade da vida", afirmou a propósito.

Muitos, adiantou ainda, "têm uma compreensão da vida limitada à existência terrestre; outros guardam um vago sentido da vida para além da morte, mas sem referência à ressurreição, participação na vida de Cristo ressuscitado".

Na opinião do chefe da igreja católica na arquidiocese de Lisboa, perdeu-se a consciência "de que a vida é um dom de Deus, participação da sua vida divina".

D. José Policarpo defendeu assim que é missão de toda a Igreja ajudar os cristãos, com solicitude particular pelos jovens, a vencer as dúvidas e a ultrapassar as dificuldades de acreditar.

"E os caminhos são fundamentalmente os mesmos que ajudaram os primeiros discípulos a passar da fé no Cristo histórico para a fé pascal. Antes de mais, os factos que anunciavam a ressurreição", disse.

DN, 9-4-2007, pág. 23
 
Mais de duas mil pessoas celebram a Páscoa à chocalhada

Hugo Teixeira, Portalegre

A confusão foi total na madrugada de domingo, quando mais de duas mil pessoas, cada uma com um chocalho, percorreram as artérias de Castelo de Vide, saudando com aleluias a ressurreição.

A manifestação, de cariz pagã, foi encabeçada pelo padre Vítor Melícias, que todos os anos participa, com entusiasmo, neste evento.

"É extraordinário. Esta manifestação que vivemos aqui é a alma de um povo. Na hora das dificuldades, das guerras e de todas as transformações a que o mundo está sujeito, esta acção é a prova da união, da reconciliação, este é assim o grande milagre da Páscoa", referia o presidente da União das Misericórdias, enquanto tocava um enorme chocalho e desejava "boas festas" à população que assistia à passagem do cortejo.

Enquanto prosseguia todo aquele tilintar ensurdecedor pelas ruas da vila, a filarmónica local fez também questão de marcar presença, interpretando o tema Aleluia e aumentando assim a confusão sonora.

"Eu sei que não se consegue perceber nada, mas o que interessa é participar", disse ao DN o maestro Armindo Santana, que promete regressar no próximo ano com os seus pupilos para "ajudar" ainda mais à confusão.

Entre sons de chocalhos mais agudos e outros mais graves, António Pita, vereador no município local, conta ao DN que esta manifestação é de origem judaica.

"Os judeus tiveram por aqui muito peso e, como esse peso foi aumentando ao longo dos tempos, a Igreja Católica teve de abrir mão de alguns poderes e ceder. A chocalhada é um exemplo de cedência, pois era um hábito enraizado na comunidade judaica", explica, não sem antes referir que a chocalhada surge sempre após a vigília pascal no interior da igreja matriz.

Não existem documentos que comprovem a data em que começou esta tradição. A chocalhada que se inicia no interior da abadia, logo após a vigília pascal, e sai pela porta principal do templo com os representantes do clero a tocar os chocalhos, foi este ano mais uma vez bastante concorrida.

"Nem a chuva que está a cair me faz demover", diz João Batista, um visitante natural de Lisboa e adepto ferrenho desta tradição. "Venho a esta festa há 14 anos, já sou veterano nisto", sublinha ainda o alfacinha, que gostaria de ver esta tradição enraizada na capital.

"No Marquês de Pombal tinha a sua piada, já que andam por lá a colar cartazes que são uma verdadeira comédia. Esta iniciativa era interessante", conclui.

DN, 9-4-2007, pág.40
 
Ex-emigrante no Iraque juntou à mesa 400 convivas e passou ao cunhado a 'Cruz' do próximo ano



Paulo Julião, Viana do Castelo (texto e imagem)

A tradição ainda é o que era em Fontão, Ponte de Lima, e ontem cumpriu-se uma vez mais. O mordomo da Cruz ofereceu o almoço de Páscoa a quase 400 conterrâneos e escolheu o "Cristo" do próximo ano. "Uma traição", confessava ao DN, em tom de brincadeira, o irmão, a "vítima" escolhida por Carlos Ribeiro.

"Já vim a muitos almoços, mas sempre com a promessa de não me escolherem. Também a tinha desta vez, mas traíram-me", contava, emocionado, Arlindo Ribeiro, escolhido para mordomo da Cruz de Fontão, até 2008. No ano que passou, a tarefa que ontem chegou ao fim ficou a cargo de Carlos Ribeiro, um carpinteiro de 51 anos, ex-emigrante no Iraque: "Entregar o ramo ao meu irmão foi a pior das tarefas, mas ele vai safar-se."

O almoço, confeccionado por uma dezena de cozinheiras e 30 auxiliares, foi constituído por dois pratos de carne e um de peixe e, exactamente a seguir ao bacalhau, chegou o ponto alto da "festa". Ludovina, a mulher do anfitrião, de raminho de laranjeira na mão e seguindo a cruz, percorreu todas as mesas até que, depois de "ameaçar" deixá-lo em diversos convidados, acabou por entregá-lo ao próximo mordomo.

"Fiquei muito surpreendido, tinha a promessa deles, mas a minha família é unida e o povo de Fontão também me vai ajudar. Isso dá-me força para ficar com a tarefa", reconhecia Arlindo, um encarregado de construção civil de 55 anos. "Fui eu, o meu marido e a minha filha que decidimos quem seria o escolhido e queríamos uma pessoa de família ou um amigo, mas com algumas posses. Calhou ao meu cunhado", explicou Ludovina, recordando o momento, há um ano, em que soube da atribuição do "cargo" ao marido: "Fiquei em pânico, mas durante o ano fui-me mentalizando e tudo acabou bem."

Certo é que, para ajudar a suportar a "cruz" do casal, a maior parte dos convidados também contribui com ofertas em dinheiro. É que ao mordomo da Cruz de Fontão cabe ainda contratar um grupo de bombos e tocadores de concertinas, para acompanhar o compasso e, durante um ano, assegurar a limpeza da igreja, os serviços do sacristão e o fogo-de-artifício da freguesia.

O convívio do almoço de Páscoa acaba por ser o ponto alto. "Fui mordomo em 1976 e na altura tivemos 280 pessoas. Sem contar com as crianças, que tiveram de comer antes porque não havia espaço", recorda Abílio Teixeira, hoje com 72 anos. Já Carlos Ribeiro despedia-se da tarefa, entregando a cruz com o sentimento de dever cumprido. "Correu bem e estou muito contente. Isto só se pode fazer uma vez na vida, mas se pudesse fazia duas", garantia, mesmo com o "rombo" de 25 mil euros que a mordomia lhe custou.

DN, 9-4-2007, pág.41
 
Cristo crucificado mas numa posição diferente

Um achado arqueológico sustenta a tese

A representação tradicional de Cristo crucificado é a de um homem pregado na cruz, de braços estendidos e pernas esticadas, a acompanhar o formato da própria cruz. Mas a descoberta de um esqueleto, em Jerusalém, em 1968, de um homem crucificado na mesma época de Jesus pode contar uma história diferente.

Essa é, pelo menos, a tese dos autores do novo docudrama da BBC, The Passion, que a televisão pública britânica está nesta altura a exibir. Não sem o protesto veemente de alguns grupos de cristãos mais tradicionalistas, que não aceitam alternativas à versão oficial da crucificação.

A nova versão da crucificação avançada na série da BBC sugere que a posição a que Jesus foi sujeito na crucificação era algo diferente da que foi perpetuada pelos artistas do renascimento e do barroco.

De joelhos flectidos

Os estudos do esqueleto descoberto em Jerusalém apontam para que os cravos tenham sido cravados nos antebraços, e não nas mãos, e sugerem também que a pequena trave à qual foram pregados os pés se situasse mais acima do que tem sido representado.

Nesta posição, em que os joelhos estavam flectidos, os pés não serviam de apoio e o peso do corpo recaía todo nos músculos peitorais e abdominais, dificultando e entrecortando a respiração, e acabando por causar a morte por asfixia à vítima.

Este foi até hoje o único esqueleto encontrado de uma pessoa crucificada naquela época que sustenta esta tese. Mas a série decidiu adoptá-la e foi Simon Elliot, produtor da série, que definiu esta como sendo a tese da crucificação de Cristo a apresentar.

Mark Goodacre, professor de religião na universidade britânica de Duke e assessor científico da série, concordou, no entanto, com a ideia e, a este propósito, adiantou, em declarações citadas pelo El País, que "os romanos crucificavam as pessoas de várias formas diferentes e este método [retratado na série] era um dos mais utilizados", porque era também "um dos mais eficazes".

A tese, porém, acendeu um rastilho de protestos por parte de várias organizações cristãs no Reino Unido, como a muito conservadora Christian Voice.

Protestos dos conservadores

Esta organização chegou a mover inclusivamente um processo contra a estação pública, em 2005, quando esta exibiu o musical Jerry Springer- The Opera, que aquela organização cristã considerou blasfema. A decisão do tribunal, conhecida recentemente, não deu no entanto razão à Christian Voice. Em relação à tese da crucificação defendida na série agora exibida, esta e outras associações no género acusam a estação pública britânica de "distorcer os factos e de depreciar o significado que encerra a imagem tradicional de Cristo crucificado", de acordo com declarações citadas pelo diário El País.

Com um elenco de actores muito populares no Reino Unido, a série de quatro episódios relata os factos conhecidos e discute os acontecimentos com base nos materiais escritos disponíveis, nos achados arqueológicos e na sua interpretação por parte de teólogos e historiadores britânicos de referência.

DN, 18-3-2008
 
Celebração tão antecipada não
acontecia há quase cem anos

Raramente a Páscoa é celebrada
tão cedo como este ano, a 23 de Março. A última vez que aconteceu foi em 1913 e só daqui a mais de dois séculos é que voltará a acontecer porque a Páscoa é sempre no primeiro domingo depois da primeira lua cheia a seguir ao
equinócio da Primavera.
Esta é uma regra que tem já muitos séculos e que é explicada na Renascença pelo pároco da Sé de Lisboa, o Padre Luís Manuel Pereira da Silva, especialista em liturgia.
Esta forma de definir a data do Domingo de Páscoa surgiu “no Concílio de Niceia, no ano 325” porque, de acordo com o pároco da Sé de Lisboa, “no segundo século, os nossos irmãos do oriente celebravam a Páscoa no dia 14 do mês de Nissan, um mês do calendário hebraico e os ocidentais celebravam sempre a Páscoa ao domingo”
A questão foi resolvida ao fim de dois séculos, tornando-se
pacífico que a Páscoa seja “sempre no primeiro domingo depois da primeira lua cheia a seguir ao equinócio da Primavera”.
Assim, explica-se a razão que faz com que o Domingo de Páscoa
possa calhar em datas tão diferentes, entre finais de
Março e finais de Abril.

RRP1, 19-3-2008
 
A PASSAGEM

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Nenhum tempo litúrgico é tão marcado pelo silêncio como este que antecede e prenuncia os trágicos passos do Calvário, a via sacra e a morte de Cristo, o Nazareno.

Silêncio, trevas e uma urgência na precipitação dos factos. Poucos dias mediaram entre a entrada triunfal em Jerusalém, por entre multidões entusiasmadas, e a prisão, o julgamento sumário, o peso do madeiro, a coroa de espinhos, a flagelação, os pregos trespassando os membros, a sede, o medo e o abandono. Porque tudo estava dito, tudo tinha sido, muito tempo antes, profetizado, tudo tinha de acontecer. Ele, melhor que ninguém sabia que tinha chegado a hora, o tempo de vésperas, o fim e o princípio. Por isso não se defendeu, não replicou, não fugiu. Entregou-se como o cordeiro imolado, tal como estava escrito.

Nesta dimensão divina coube a dimensão humana dos acontecimentos: as maquinações políticas, o confronto dos poderes terrenais, a cedência à manipulação popular. E a preocupação dos mais conscientes ou dos mais compassivos, os sonhos assustadores da mulher de Pilatos e as poucas vozes que procuravam contrariar o "processo" de Jesus.

Mas a grande maioria, imagino, assistia a tudo como se de um espectáculo se tratasse. Cristo era uma figura popular, carismática, incómoda, que desafiara os poderes constituídos. Mas seria tão poderoso como dizia ser? Esse homem que se designava filho de Deus - por este crime o condenaram - ía mesmo morrer, tal como os dois ladrões igualmente condenados à crucificação? Ele, que ressuscitara Lázaro, dera a vista aos cegos, curara os leprosos e afirmara, mesmo, que ergueria o Templo em três dias, porque não se salvava a si mesmo?

No meio desta grande agitação do povo e das instituições, dos juízes e juízos, da exaltação das massas e das subtilezas da hipocrisia política, do sofrimento de Maria e de João, da traição de Judas, da cobardia de Pedro, da compaixão de Verónica, o que marca é o profundo silêncio de Cristo. Porque só o silêncio podia suportar o peso do mistério: não há ressurreição sem morte, nem encarnação sem humanidade. Esta tinha de ser uma morte humana, uma morte igual a qualquer outra morte violenta e sanguinária, com o mesmo sofrimento físico, o mesmo derramamento de sangue, o mesmo sucumbir do corpo, o mesmo parar do coração. E o mesmo medo, a mesma recusa, o mesmo abandono.

O sentido último desta morte só se torna claro pela ressurreição, por isso o tempo entre um acontecimento e outro é de incerteza, dúvida e descrença para quase todos. Só Ele sabe com clareza o que se está a passar e porquê. Mas também o medo o divide, a dúvida o atormenta como se, no momento em que todo o seu corpo cede, o seu espírito ficasse, ainda que por brevíssimos instantes, preso à sua dimensão humana. Já no horto das Oliveiras, quando o vêm prender, murmura "Pai, afasta de mim este cálice"; pregado na cruz, ciente que tudo está consumado, exclama "Eli, Eli, lemá sabachthani" que quer dizer "Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?" Uma pergunta cuja resposta Cristo sempre conhecera...

Penso quão actual é esta extraodinária história. Todos os dias de todos os tempos, e do nosso tempo, homens e mulheres são perseguidos, maltratados, caluniados e mortos por amor da verdade e da justiça. A História da Humanidade está marcada por séculos e séculos de violência e nenhum desenvolvimento ou progresso conseguiram evitar, no tão próximo século vinte, matanças incontáveis em nome das mais falsas verdades e das mais ignominiosas doutrinas. Terá então valido a pena a paixão desse homem que revolucionou o seu tempo e os tempos que vieram até aos nossos dias ou, para os cristãos, o mistério da Encarnação, a tragédia da crucificação e o mistério da Ressurreição?

Sem dúvida que sim. Esta é a nova aliança, que nos permite acreditar - mesmo sabendo que os homens, no seu exercício de liberdade entre bem e mal, vão claudicar muitas vezes - que o bem é uma escolha sempre a tempo, que toda a vida humana tem um sentido, que a redenção é todos os dias oferecida a cada um de nós e que, por tudo isto, a morte pode ser só uma passagem...

DN, 20-3-2008
 
ESCAPADELAS DE PÁSCOA

Manuel Maria Carrilho

Com tanta crise, com tanto aperto, como é que tanta gente faz férias na Páscoa?" - esta foi uma das perguntas que mais ouvi durante esta semana.

Na raiz desta perplexidade está um pessimismo que tem vários factores: nacionais, internacionais e civilizacionais. Por cá, temos as consequências do combate ao défice desde 2005, a crise do emprego, a insuficiência do crescimento e a contumaz incapacidade que o País tem revelado, nos últimos 20 anos, para mudar de modelo de desenvolvimento (betão, salários baixos, etc.) e sair dos últimos lugares em quase todas as tabelas da União Europeia. Ainda neste ponto, é grande o peso que tem no desânimo nacional o contínuo processo de descrédito dos partidos políticos, a deserção das elites e a debilidade da sociedade civil portuguesa, cujo potencial raramente sai da esfera retórica, como se ela estivesse condenada pela minúscula dimensão do mercado nacional, que continua a ser a mais pesada das nossas fronteiras.

Mas há outros factores a ter em conta. A nível internacional, sobressaem as angústias de uma crise financeira cujas consequências estão longe de ser conhecidas ("the unthinkable is about to become the unevitable", escreveu esta semana Paul Krugman no New York Times) e um quadro global de grande incerteza em que a Europa parece, apesar de todos os esforços, titubeante e incapaz de se afirmar.

Por outro lado, no registo civilizacional, o ponto central é compreender que a experiência da decepção se situa hoje no âmago das nossas sociedades e da sua matriz igualitária, individualista e consumista.

Matriz que, ao fazer da insaciável ambição material a mola permanente e universal do comportamento humano, o expõe a uma inevitável frustração. É que a igualdade, ao sugerir a um número cada vez maior de pessoas possibilidades de vida que, na realidade, continuam ao alcance de apenas alguns, aumenta necessariamente a amplitude e a intensidade da decepção.

E a força deste paradoxo tem aumentado constantemente, levando os indivíduos a verem-se mais como consumidores do que como cidadãos, sujeitando-se a uma lógica de dependência cujo retrato se encontra tanto no cliente ideal do shopping como no comportamento de um drogado: ou seja, na procura de doses cada maiores e cada vez mais frequentes.

Mas mais consumo quer dizer mais dívida e menos poupança: e o peso da dívida no rendimento disponível dos portugueses passou, entre 1990 e 2006, de 19,5% para 124%, enquanto a poupança caiu de 20% para 8,3% -, também aqui garantindo o último lugar das tabelas da União Europeia.

Mas nada disto, a julgar pelas informações os últimos dias, perturba as férias da Páscoa. Ou, pelo menos, o que é "notícia" sobre estas escapadelas: os hotéis estão cheios, os voos para os mais variados destinos encontram-se há muito esgotados, os centros comerciais continuam apinhados... o consumo faz mais uma vez o seu trabalho de pastiche moderno da ressurreição pascal.

DN, 22-3-2008
 
PÁSCOA E VIDA ETERNA: O QUE QUEREMOS REALMENTE?

Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia

Porque em devir e abertos ao futuro, a esperança é princípio constituinte do cosmos, do Homem e da História. A abertura ao futuro torna-se espera no animal, que precisa de procurar o que lhe falta. Tanto o animal como o Homem esperam, com uma diferença: o animal fica satisfeito, quando obtém o que procura, mas o Homem, após a realização de cada projecto, continua ilimitadamente aberto a um para lá, que o move, num transcendimento sem fim. Segundo essa abertura ao futuro aconteça na confiança ou na desconfiança, a espera configura-se como esperança ou desesperança.

A esperança tem um duplo pólo: subjectivo e objectivo, devendo assim falar-se de esperança esperante e esperança esperada. Neste quadro, é fácil constatar no Homem a diferença constitutiva entre a primeira e a segunda: por mais que a esperança esperante se materialize nas suas realizações concretas, nunca se realiza adequadamente, continuando insuperável um abismo, de tal modo que se impõe um plus ultra, um para lá de todo alcançado. Aí está a razão por que todo o ser humano morre inacabado, insatisfeito, sempre por fazer adequada e plenamente.

Insere-se aqui a esperança pessoal para lá da morte, mas uma esperança tal que salve o ser humano real, de modo pessoal, e não numa "imortalidade" impessoal, apenas pela continuação na família, nas obras, na natureza, na sociedade...

A esperança não é certeza. Tem razões, mas não é demonstrável cientificamente. Não consiste em mero desejo, não pode ser wishful thinking. Tem de fundamentar-se no possível, em potencialidades reais. Assim, quando se pensa na vida eterna pessoal, entende-se que só Deus pode ser fundamento dessa esperança. Como viu São Paulo na Carta aos Romanos, "só o Deus que criou a partir do nada pode ressuscitar os mortos". Na sua continuação, Kant postulou a imortalidade, mas simultaneamente postulou o Deus criador como seu garante. Imortalidade pessoal e Deus pessoal criador implicam-se mutuamente.

Mas será que queremos a vida eterna?

Na sua segunda encíclica, sobre a esperança (Spe salvi), Bento XVI debate-se honestamente com esta pergunta. Reconhece que muitos hoje recusam a fé porque "a vida eterna lhes não parece algo desejável". Querem a vida presente, e a vida eterna é "um obstáculo". Continuar a viver para sempre, numa vida interminável, "mais parece uma condenação do que uma graça". Quereríamos adiar a morte, mas viver sempre, sem um final, tornar-se-ia, em última análise, "insuportável". A eliminação da morte - pense-se no romance de José Saramago: As Intermitências da Morte - faria da vida na Terra uma impossibilidade, e que benefícios poderia trazer para o indivíduo? Então, na nossa existência, há uma contradição: por um lado, "não queremos morrer", mas, por outro, "também não desejamos continuar a existir ilimitadamente nem a Terra foi criada com esta perspectiva." Que queremos então realmente?

Esta pergunta abre para outra: "que é realmente a 'vida' e que significa verdadeiramente 'eternidade'?"

O Papa responde apelando para algumas das nossas experiências - a beleza, o amor, a criação --, em que nos aproximamos do que seria verdadeiramente viver, de tal modo que aí até dizemos: assim deveria ser sempre.

No fundo, queremos esta vida, que amamos, mas plena. Queremos a bem-aventurança, a felicidade. Não sabemos exactamente o que queremos, pois é o desconhecido -- um "não sei quê --, mas neste não saber sabemos e experienciamos que essa realidade tem de existir: é ela que nos arrasta e é para ela que somos impelidos.

Não sabemos o que queremos dizer com "vida eterna". Apenas podemos pressentir que "a eternidade não é um contínuo suceder-se de dias no calendário, mas como o instante pleno de satisfação, no qual a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade". Seria o instante da submersão na imensidade do ser, na vida plena, "no oceano do amor infinito, no qual o tempo já não existe."

Na Páscoa, o que se celebra são estes mistérios do cosmos, do Homem e da História, da vida, da morte e da vida eterna.

DN, 22-3-2008
 
Uma mesma fé dividida pelo calendário

LICÍNIO LIMA

Páscoa é tempo de festa para os cristãos - católicos, ortodoxos, protestantes, evangélicos - e, também para os judeus, que, aliás, foram os primeiros a inseri-la no calendário religioso, embora com motivos e símbolos diferentes.

Para os judeus, a Páscoa, que significa "passagem" (Pessah), evoca o momento em que Moisés liberta o povo hebreu de 400 anos de escravidão no Egipto. O grande acontecimento é a passagem do mar Vermelho, há cerca de três mil anos, que foi o início de uma caminhada de 40 anos pelo deserto até Jerusalém, a conflituosa Terra Santa, onde se centra a fé dos judeus.

A "festa da libertação", também assim chamada na comunidade judaica, é celebra- da sempre nos dias 14 e 15 do mês hebraico de Nisan, este ano correspondente ao ano 5768. No calendário ocidental (gregoriano), a Páscoa judaica é este ano celebrada a 19-20 de Abril - a festa começa sempre na vigília no dia anterior.

Durante uma semana, os judeus comem pão ázimo, recordando a fuga do Egipto - tão rápida que nem deu tempo para que o pão fermentasse. O jantar da primeira e segunda noites, em que é servido o cordeiro, é muito simbó- lico: os mais velhos contam a história do povo de Israel para que as gerações mais novas a memorizem e depois a transmitam às gerações seguintes.

Segundo a Bíblia, foi durante esta festa que os romanos, colonizadores na região, detiveram Jesus, levando-o ao Sinédrio (a autoridade máxima da religião judaica), acabando condenado à morte. Mas, embora crucificado, segundo a Bíblia, terá ressuscitado ao terceiro dia, num domingo.

Para os judeus convertidos ao cristianismo, a Páscoa passou a ser a evocação da ressurreição de Jesus, elemento central da fé. A data da festa manteve- -se nos dias fixos de 14 e 15 do mês de Nisan.

Mas quando a nova religião se expandiu para Ocidente, com Roma no centro, os crentes desta parte do globo quiseram manter a tradição da ressurreição a um domingo, tal como refere a Bíblia. Assim, a oriente e a ocidente, a ressurreição passou a ser come- morada em dias diferentes. A adopção do calendário gregoriano no Ocidente (1582) trouxe nova diver- gência entre as igrejas ocidentais e orientais, pois estas não aceitaram, na liturgia, o novo calendário.

As igrejas ortodoxas, separadas de Roma desde o século XI ( devido ao chamado grande cisma do oriente), e as católicas de rito bizantino (que, embora sendo doutrinalmente ortodoxas, na liturgia e nos símbolos, mantiveram-se fiéis ao Papa), para a celebração da Páscoa seguem até hoje o calendário juliano, que apresenta um atraso de 13 dias em relação ao calendário gregoriano ocidental. Mas sendo a Páscoa uma festa móvel e o calendário juliano lunissolar, e havendo a preocupação de acertar a data com a celebração judaica, este ano, os cristãos orientais, ortodoxos e bizantinos, assinalam a Páscoa a 26-27 de Abril.

Do ponto de vista teológico, os dogmas pascais celebrados pelas igrejas cristãs orientais são os mesmos que na igreja ocidental, embora a oriente as celebrações litúrgicas sejam muito mais carregadas de simbolismos e com muitos mais cânticos.

Os cristãos protestantes e evangélicos, da igrejas nascidas da cisão provocada pela excomunhão de Martinho Lutero, depois de este monge alemão ter afixado, em 1517, as suas 95 teses contra as indulgências, seguiram o calendário gregoriano e celebram a Páscoa na data dos católicos.

Assim, este ano, celebrando a passagem do mar Vermelho, os judeus vão viver a Páscoa a 19-20 de Abril. Os ortodoxos e outras igrejas orientais de rito bizantino fiéis a Roma celebram a 26-27 de Abril. A Páscoa dos católicos e protestantes, incluindo os evangélicos, é a 22-23 de Março. Uma mesma fé que o calendário também divide.

DN, 22-3-2008
 
Um dia separa a abstinência da celebração

DUARTE CALVÃO

Sendo verdade que várias datas de festividades religiosas são recebidas apenas com a alegria de ter um feriado - que, de preferência, dê para fazer "ponte" -, e que o Natal tem hoje uma enorme carga comercial, a Páscoa será aquela festa que ainda guarda maior significado em países de tradição cristã como o nosso. Porém, também essa relação vai desaparecendo e se no Natal há muitos não cristãos a dar presentes uns aos outros e a comer bacalhau e peru, na Páscoa são ovos de chocolates e amêndoas para todos os lados, especialmente em famílias com crianças.

A Páscoa, em termos gastronómicos, é vivida em dois momentos. Passamos da abstinência de carne e de excessos alimentares da Sexta-Feira Santa e do Sábado Santo para a celebração, também à mesa, da Ressurreição, sobretudo no almoço do Domingo de Páscoa. Uma série de alimentos típicos desse dia leva-nos aos alegres pratos "conviviais" entre famílias, amigos e vizinhos, caso dos famosos folares que se vêem em todo o País, que se dão de presente ao pároco que vai de casa em casa. Ou então dos assados de carne, sobretudo de cabrito e borrego, que assinalam claramente o fim da Quaresma. Aliás, são animais que apresentam neste início de Primavera (que, segundo se diz, será a origem pagã destas festividades) o seu melhor momento ao longo do ano. É com o fim do Inverno que nasce a vida. Os ovos são disso símbolo.

Para os que não vivem religiosamente estas datas, a Páscoa é sobretudo um fim-de-semana obrigatoriamente alargado, que pode ir a quatro ou cinco dias conforme a "tolerância de ponto", um período de férias escolares, de aproveitar para "tirar uns dias", para quem pode em praias tropicais que nos fazem esquecer os frios europeus.

Mas também é a época dos doces, em que os chocolates se apresentam das mais diferentes maneiras, assim haja imaginação entre produtores e comerciantes, das amêndoas cobertas de açúcar, de folares em versão doce, do pão-de-ló, das broas e de muitas outras tentações que vão significar novas abstinências e horas e horas de ginástica com o rápido aproximar do tempo de praia e da celebração da religião do corpo.

Vivendo nestas sociedades de abundância, perdemos a noção de como era excepcional o consumo de açúcar ou de carnes de animais que se sacrificavam especialmente para assinalar dias de festa, como os da Páscoa. Ninguém tem ilusões de que os hábitos desses tempos voltarão, nem sequer isso era desejável, mas não há dúvida que a nossa saúde agradecia se deixássemos estes "excessos" de açúcar e carne para datas especiais, em vez de alimentarmos quotidiana e automaticamente a epidemia de obesidade que se avizinha.

DN, 22-3-2008
 
Ovos simbolizam a vida e a boa nova

O fim das privações quaresmais significa o regresso dos prazeres da mesa e a abundância. Ovos, folares e amêndoas são alguns dos símbolos que compõem a gastronomia pascal, normalmente oferecidos a familiares e amigos por ocasião destas celebrações cristãs. Os ovos, símbolos de vida e de notícia feliz, chegaram a ser proibidos na Semana Santa. Até que ficaram definitivamente associados a estes festejos religiosos.

Os de galinha, pintados, são típicos de muitos países, como a Polónia e a Ucrânia, havendo também o costume russo de os levar para as campas dos familiares nos cemitérios. Famosos ficaram as ovos encomendados a Peter Carl Fabergé pelos czares russos. Mas também os que Luís XIV de França, o Rei-Sol, mandava benzer e oferecia pessoalmente aos membros da corte, conforme lembra o endereço electrónico da diocese de Nanterre.

A sua mulher, a infanta espanhola Maria Teresa, filha de Felipe IV, terá sido responsável pela introdução do costume de tomar chocolate líquido na corte francesa. E foi precisamente em França, no século XVIII, que alguns confeiteiros surgiram com a ideia de esvaziar um ovo fresco e voltar a enchê-lo com chocolate. A seguir apareceram os ovos todos feitos de chocolate, que se escondiam nos jardins, para as crianças encontrarem. Associado a eles existe, em países como a Alemanha, a figura do coelho de Páscoa. Nos últimos tempos, os ovos de chocolate começaram a trazer brinquedo no seu interior, como forma de melhor captar a atenção e a preferência dos mais pequenos. Este ano há mesmo um anúncio que diz que só existe um ovo que traz brinde e que só esse é o verdadeiro.

Os ovos são também presença obrigatória nos folares, tradicionais bolos pascais, que variam na receita e no aspecto consoante a região do País de que são oriundos. Os mais comuns no Algarve e Alentejo são de massa seca, doce, feitos à base de farinha, leite, ovos, fermento e condimentados com canela e ervas aromáticas. Os de Aveiro podem adquirir formas de animais ou de coração e os da zona de Trás-os-Montes são feitos de massa dura, com farinha, ovos, leite, manteiga e azeite, com bocados de carne à mistura. Os de Chaves, Mirandela e Valpaços são alguns dos mais conhecidos e vendem-se mesmo fora da região, em pastelarias lisboetas, de proprietários ou funcionários que continuam fiéis às tradições da terra.|

PATRÍCIA VIEGAS

DN, 22-3-2008
 
NÃO BEBER 'SUMOL' P OR AMOR A CRISTO

RITA CARVALHO

Café, compras, Sumol, maquilhagem, álcool, Messenger, doces ou jogos de futebol. Estes foram hábitos deixados para trás por alguns católicos durante a Quaresma que terminou agora. Um período de 40 dias que antecede a Páscoa e no qual procuraram também uma contenção nas palavras, em especial as críticas, que ferem o próximo. Estas renúncias exprimem as novas formas criativas do jejum e da abstinência que a Igreja Católica vem recomendando para melhor viver a Páscoa da Ressurreição: o momento mais alto do ano litúrgico. Aquele em que, para os católicos, Jesus Cristo ressuscitou.

"Renunciar é um exercício de liberdade." A frase, provocadora, é de Luís, católico de 54 anos, que escolheu privar-se do álcool e dos jogos de futebol na televisão. "Mas é preciso compreender o contexto", vai avisando, consciente de que, "quem está de fora" dificilmente compreenderá o intuito desta privação e tenderá a associá-la ao cumprimento de regras absurdas. "Desenquadrada, esta visão é uma estupidez. É de insultos, fundamentalista. Mas para quem acredita que Cristo ressuscitou e é o Absoluto das nossas vidas faz todo o sentido."

Não encher o copo do vinho soberbo, guardado há muito na garrafeira para o almoço de fim de semana com os amigos, ou dispensar as várias horas semanais passadas a ver futebol na televisão, custa. "Claro que custa. Tenho seis canais de desporto e vejo tudo, até a segunda divisão inglesa. Mas este esforço não passa de uma renúncia a algo supérfluo que me ajuda a consciencializar o relativo em relação ao Absoluto", afirma, pragmático, este advogado de Lisboa. "Deus é único, fiel. Tudo o resto é indiferente e passageiro", explica, sublinhando que, "sempre que se cumpre o que se renuncia, é muito mais gratificante do que penoso. Ganha-se em liberdade de espírito e atenção ao que é essencial".

Ao lado, Maria, mulher de Luís, vai enumerando as suas renúncias, que cumprem o mesmo propósito: "não faço compras para mim, não vejo televisão depois do jantar". Para além do jejum de carne que a Igreja pede que se faça na sexta-feira. O dinheiro e o tempo acumulados são investidos em oração e leitura e na esmola entregue à Igreja. A tentação foi sempre vencida, diz, mesmo quando da loja onde habitualmente compra roupa ligaram a perguntar porque não tem aparecido. "Primeiro não expliquei. Mas a senhora insistiu e lá respondi: desculpe mas na Quaresma não faço compras!", relata.

Contenção nas palavras

A discrição no cumprimento das privações é recomendada pela Igreja no Evangelho de Quarta-feira de Cinzas: "Que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo." Mas se o alerta impõe recolhimento e leva este casal a escolher um nome fictício, há quem, depois de muito reflectir sobre o assunto, contraponha com outro argumento. "Jesus, quando disse: 'vós sois a luz do mundo', não pediu que déssemos testemunho?", questiona Marta Silveira.

Aos 27 anos, esta jovem psicóloga já percorreu um longo caminho de fé. Esta ano optou por "silenciar" algumas fontes de "ruído" que considera roubarem-lhe tempo para rezar ou pensar no sacrifício de Jesus na hora da crucificação: a televisão acesa durante as refeições, o rádio no carro, o sudoku no comboio ou os bolos que mais gosta de comer. Mais importante, diz, foi o "jejum de palavras", e o esforço por silenciar comentários pejorativos e queixumes. Tudo isto são "exercícios para me disciplinar, treino espiritual que me faz parar para pensar. Deus precisa de espaço, se andamos a correr, passamos ao lado". É como se a renúncia fosse um presente para Deus, entregue de boa vontade, sem cara feia, explica. "Se não como o pastel de nata e fico de mau humor, de mal com a vida, não serve de nada". Depois do "treino", os "frutos" são enormes, assegura: "Fico menos egoísta e mais disponível para ajudar os outros."

O crescimento interior que perdura para além do período quaresmal é também, para Cristina Tordo, o essencial. Mais do que os bolos e cafés que ficaram por tomar e os euros poupados para esmolas, Cristina, 32 anos, realça, "a consciência que se ganha e a tentativa que fica de nos melhorarmos a nós mesmos". Tal como Cristo passou pelo deserto até chegar à ressurreição, exemplifica, "estas coisas ajudam-me a estar disponível para acolher melhor. Mas só faz sentido se for para atingir estádio melhor".

Com Fátima Nunes, os doces também ficaram de fora. A ideia de renunciar foi tomada junto dos jovens que acompanha enquanto chefe dos escuteiros. "Cada um escolheu algo que o obrigasse a lembrar que estamos em época especial", conta esta engenheira de telecomunicações, 31 anos.

Este propósito de renunciar a hábitos e coisas da vida comum não é novo. Para além das indicações do jejum normal da sexta-feira e da esmola, este ano bastante incentivada pelo Papa, as práticas criativas têm vindo a ser desenvolvidas ao longo dos anos. Mas a renúncia deve ter sempre o mesmo propósito, explica o jesuíta Vasco Magalhães. Ou seja, "prescindir do que nos retira qualidade de vida. O objectivo não é o sacrifício por si mas o treino do espírito para corrigir o que nos desumaniza." Que pode ser um excesso alimentar, um jogo de futebol, ou a falta de tempo para dedicar ao próximo.

DN, 22-3-2008
 
"Páscoa era festa da Lua 12 séculos antes de Cristo"

CARLA AGUIAR

Moisés Espírito Santo, ANTROPÓLOGO

O que é a Páscoa?

Desde o século XII antes de Cristo, a Páscoa é uma festa da Primavera, a festa da primeira lua cheia a seguir ao equinócio de dia 21. Mas a Páscoa cristã já vem da Páscoa judaica . É um exemplo de continuidade no calendário festivo. No século XII, o ano começava agora com o equinócio da Primavera, ligado à lua, que era uma divindade neste período no Médio Oriente. Os hebreus pediam aos patrões para festejarem o seu Deus nesse dia. Foi nesse contexto que se deu a fuga dos judeus para a Palestina. Passou a ser a data judaica.

Jesus já festejava a Páscoa e a "última ceia" seria, justamente, a celebração da Páscoa. Como se explica que agora celebremos a Páscoa para assinalar a ressurreição de Cristo?

Explica-se pela ideia de continuidade na celebração. No século V, a Igreja católica estabeleceu que a Páscoa se celebraria sempre no domingo a seguir à Páscoa judaica, uma guerra de igrejas e uma certa xenofobia...

E os rituais?

É preciso ter em conta que era uma festa campestre. Sendo a festa da lua e concebendo-se que era a lua que regulava a natureza, a procriação animal e humana, a lua é o símbolo exacto da renovação da vida. E o renascimento de Jesus Cristo encaixa-se perfeitamente na ideia de renovação da vida. Esta celebração também teve grande prestígio pelo facto de estar ligada à Primavera.

Como aparecem os ovos e os cordeiros?

Sendo uma festa de pastores, estes aproveitavam para tosquiar as ovelhas. Os cordeiros surgem, naturalmente, associados ao sacrifício à lua. Ainda hoje, no Minho, por exemplo, o anho é obrigatório. Já os ovos simbolizam a renovação, a vida, a célula fundamental da existência humana.

Tem havido alterações substanciais ao longo dos tempos na forma como a Páscoa é celebrada?

Não houve alterações muito significativas. Antigamente, e ainda hoje em algumas aldeias do Minho, a Igreja fazia o chamado compasso, levando Cristo na cruz, de porta em porta, para ser beijado pela população. Hoje, esse ritual deixou de ser compatível com as rotinas da nova sociedade, que já não vive em aldeias.

O simbolismo da Páscoa é mais forte que o do Natal?

O Natal é, desde logo, menos antigo. Para além de que Jesus nem sequer nasceu em Dezembro. Foi noutra data e depois houve aí hesitações da Igreja. A Páscoa vem da natureza, tem um cunho mais forte. Para consolidar a fé cristã, a Páscoa é mais forte.

Como é hoje a celebração pelas várias igrejas ?

Hoje a celebração é basicamente ligada à gastronomia, tanto nos católicos como nos protestantes, para quem se trata da festa mais importante do ano.

DN, 23-3-2008
 
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