27 junho, 2007

 

Do bom nome


e da litigância desnecessária à sua defesa.





"A bem da Nação!

O primeiro-ministro decidiu colocar em tribunal, num evidente
acto de perseguição política (a somar ao caso
DREN), o autor do blogue que, há anos, vinha a revelar os
factos que deram origem ao chamado caso da licenciatura.
Sócrates tem todo o direito de se sentir “difamado” e agir
em conformidade, mas o “atraso” com que o faz é bem
revelador do ar dos tempos.
Se não consegues cala-los, talvez possas prendê-los?!
E, no entretanto?... O medo irá fazendo o seu caminho: de
manso, de fininho… impondo o respeitinho.
Palavra aqui, linha ali, parágrafo acolá. Investigação
esquecida na gaveta mais adiante.
Com cada vez menos notícias desnecessárias e “estúpidas”
o povo ficará mais tranquilo e feliz e acabará naturalmente
atento, venerando e obrigado a suas excelências.
Regista-se o aviso.
Repete-se a sina liberal vintista: os mais insuspeitos
defensores da liberdade são os primeiros a não conseguir
coexistir com ela. E vão apertando o cerco. Primeiro: a
absurda criação da entidade reguladora; agora o novo
estatuto dos jornalistas. Por último, pela calada, anunciase
a nova lei da concentração travestida de último garante
(imagine-se?) do pluralismo.
É a loucura regulatória.
Mas, denunciada a fúria interventiva do manicómio, respondem
os visados que “se é loucura a sua acção”, nada
os fará recuar, porque são loucos “com muito orgulho”.
Imagino que os velhos censores também exerciam a função
com o mesmo zelo e brio profissional. Genuinamente convencidos
que o faziam “ a bem da Nação!”.
E os portugueses querem?"

Graça Franco
RRP1, 27-6-2007

http://doportugalprofundo.blogspot.com/

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_S%C3%B3crates

Comments:
José Sócrates apresentou queixa-crime contra bloguer
Carlos Rodrigues Lima

Autor do blogue "Do Portugal Profundo", será também ouvido como testemunha no âmbito de outro processo sobre a carreira académica do primeiro-ministro.

Rui Ochôa

José Sócrates apresentou uma queixa-crime contra o blogger António Balbino Caldeira devido ao conjunto de textos que este professor de Alcobaça escreveu sobre a sua licenciatura em Engenharia Civil na Universidade Independente (UnI), apurou o Expresso junto de fonte próxima do processo. Está assim explicado o facto de o autor do blogue 'doportugalprofundo.blogspot.com' ser ouvido no mesmo dia no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de manhã como arguido e à tarde como testemunha.
Esta dupla condição resulta do facto de o DCIAP estar a conduzir dois processos sobre a licenciatura do primeiro-ministro na UnI: um que teve origem numa participação feita pelo advogado José Maria Martins, que levantou suspeitas sobre a passagem de Sócrates pela UnI, e no qual o bloguer será ouvido como testemunha, e um segundo que foi aberto após a queixa-crime do primeiro-ministro contra António Balbino Caldeira. Ambos os inquéritos estão a correr paralelamente.
Contactado pelo Expresso, António Balbino Caldeira não quis prestar qualquer declaração. O gabinete do primeiro-ministro não confirmou a apresentação de uma queixa-crime. No último «post» colocado no blogue sobre a sua condição de arguido, António Balbino Caldeira escreve: "O sistema persegue politicamente os seus opositores por estes pretenderem exercer os seus direitos de cidadania. Mas só sobrevive com a complacência dos órgãos do Estado e a resignação popular".

Expresso, 20-6-2007
 
O TABU DE SÓCRATES

Pedro Lomba
jurista
pedro.lomba@eui.eu

Na entrevista à SIC desta semana, Sócrates garantiu, com a testosterona do costume, que Portugal vai no caminho certo, as reformas estão em marcha, os seus ministros são impecáveis e não há rigorosamente nada de que ele se arrependa em três anos de governo. Com o ciclo quase no fim, dificilmente se podia esperar outro discurso do primeiro-ministro. Mas, apesar do seu imenso êxito e espírito de decisão, Sócrates informou que ainda não decidiu se irá concorrer de novo, à frente do PS, nas legislativas de 2009. Foi uma surpreendente revelação esta que o nosso primeiro nos trouxe, sobretudo porque ele mesmo reconhece que não concluiu o seu programa e, de resto, ninguém acredita que ele se fartou do poder. No entanto, ficou dito: Sócrates ainda não sabe se fica.

Isto, por si só, causa alguma estranheza. A socratologia habituou-nos a ver no líder do PS alguém que medita e antecipa o efeito das suas intervenções. Da cabeça dele nunca sai grande coisa por acaso ou espontaneidade. Qualquer aparição é preparada ao pormenor. Ocorreu-lhe que, depois do género melífluo de Guterres e impotente de Sampaio, o PS precisava de um líder mais adornado que soubesse projectar uma imagem de força e esconder as fraquezas. Com o resto do País, impunha-se o mesmo cálculo. Após dez anos em que o PSD tentou a sucessão de Cavaco Silva, seria ele, Sócrates, a fazer com sucesso a transição que o PSD não conseguiu, seria ele o pós-cavaquista capaz de explicar que o que se passou antes foi um interlúdio de jovens deslumbrados (Durão e Santana) e que agora as coisas voltariam ao seu lugar. Sócrates é, por isso, o primeiro interessado em que a esquerda, com a cumplicidade de alguma direita ingénua, o pinte como um político que governa em acordo com a direita e que, por isso, existe para além dos desvarios de Alegre, PCP e Bloco. Dá-lhe espaço para ir jogando com a sua própria ambiguidade ideológica, que, no fundo, é a ambiguidade do País.

Agora, Sócrates confessa que ainda não sabe se fica para as eleições do próximo ano. Os amigos aprovam-lhe a "humildade democrática". Não me lembro que elogiassem a "humildade" de Cavaco Silva quando há mais de dez anos ele criou a penosa e demorada dúvida sobre se ficaria ou não para um terceiro mandato. Mas aí havia uma razão: dez anos tinham sido um enorme desgaste e Cavaco queria sentir se ainda o queriam. Sócrates não tem nem feitos, nem tempo de governo que lhe permitam sair de cena. O seu destino é continuar. Mas, claro, quis que se soubesse que ele ainda não sabe se fica, só para que os contestatários internos se calem e o PS continue domesticado como sempre. E para que os inocentes gritem entre si pela sua permanência: cuidado que ele não é garantido.

DN, 21-2-2008
 
SÓCRATES VERSUS SÓCRATES

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Na segunda-feira constatámos que ninguém faz aquilo melhor que José Sócrates: aquilo foi uma hora de televisão por conta do entrevistado não interessando nem a quantidade nem a qualidade dos entrevistadores. Num país onde os media instituíram o princípio de que "em política o que parece é", a Sócrates basta-lhe parecer, exercício em que se tornou exímio.

Com rapidez e lógica, poucas premissas mas constantemente repetidas, números quanto baste, um tom levemente magoado quando se trata de qualquer ataque pessoal, uma certa impaciência face à incompreensão dos entrevistadores da importância do que estava a dizer, esse truque decisivo de falar para os espectadores por cima da cabeça dos jornalistas. Fez o que quis.

Tornou tudo óbvio. Quando explicou que remodelou para que tudo continuasse na mesma. Afinal o único erro de Correia de Campos foi não ter sabido comunicar, perdeu a confiança dos portugueses, coisa que com bom marketing não acontece, veja-se o exemplo do primeiro-ministro. E quanto aos objectivos da governação, que se impôs e nos impôs? São obviamente aqueles que qualquer país desenvolvido já cumpriu e, portanto, indiscutíveis. Aliás, foi para nos desenvolver que ele se instalou em S. Bento.

Mostrou-se, obviamente, um governante habilitado, capaz de fazer frente ao deficit público, ao estado da economia, ao desemprego. Atacou nas três frentes, tem estratégia e táctica, não fez como os outros, coitados, que só agarraram uma frente e deram com a economia de pantanas. Porque estas questões são complexas, só quem não sabe é que não entende, isto de subir meio ponto percentual aqui e descer um ponto acolá não é coisa simples. E ele é como um malabarista bem treinado, faz girar as três bolas em simultâneo. E agora que já está a casa mais arrumada vai puxar da sua consciência social, está visto que sim, são os velhinhos, os deficientes, as famílias, as crianças... Porque não é um insensível como dizem as más línguas, é apenas lúcido, pragmático. Mas estas atenções para com os mais carenciados vão muito a tempo, aliás vão mesmo a tempo.

A resposta à pergunta se se vai recandidatar não foi exactamente um tabu, foi o mesmo que dizer: agora nada me distrai deste desígnio, não vou fazer demagogia para ganhar eleições, não baixo impostos mesmo que isso me crie problemas morais e a seu tempo se verá. Recado que dirige, pessoalmente, aos espectadores para que vejam nele o primeiro-ministro de todos os portugueses e também ao PS, partido de que é um filho incómodo, que já percebeu que não está no poder sem Sócrates e não está confortável no poder com Sócrates.

Depois disto, que foi "o que pareceu", que concluir? Pode dizer-se que o primeiro-ministro vive de uma renda de situação, a situação em que se encontram os partidos da oposição. Mas se for precisamente o contrário, a oposição está assim porque Sócrates é assim? Pode dizer-se que o primeiro-ministro mentiu. Mas não mentiu. Não completamente e isso é quanto basta. Pode dizer-se que é um megalómano perito em propaganda. Mas o que parece excessivo e grandiloquente no seu discurso ele tem o cuidado de explicar que é ambição, ambição para Portugal, auto-estima nacional, punch e método.

Ora, uma reeleição de Sócrates com maioria absoluta passa pela conquista do centro e até de alguma direita. Se fez a remodelação para calar a esquerda, foi para este potencial eleitorado que falou agora. Um eleitorado que gosta de resultados, de quem exerça a autoridade, de quem faça um discurso aparentemente consistente, de quem fale de govenação em vez de política, de quem não tenha nenhum conteúdo ideológico. Um eleitorado que, em Portugal, aumenta cada dia que passa.

E os partidos de Direita? Parece estranha esta preocupação de se autofragmentarem em facções e tendências num momento como este! Esquecidos da distinção, essencial em política, entre inimigo próximo e inimigo principal. O inimigo próximo destes partidos são eles próprios. O inimigo principal é Sócrates.

DN, 21-2-2008
 
EU, INOCENTE, ME CONFESSO

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Na segunda-feira, 3 de Março, acordei às sete da manhã, estremunhada e, ao que constava, arguida. As rádios, a Lusa, as televisões queriam um comentário meu à estelar manchete com que o jornal 24 horas me mimoseara naquele dia: "PJ investiga Nogueira Pinto", "Antiga Provedora da Santa Casa de Lisboa já é arguida num caso de gestão ilegal nas Misericórdias".

Áquela hora ainda não tinha visto nada. Quando o jornal chegou olhei para as parangonas, constatei que era tudo falso, mas percebi, imediatamente, que o efeito seria devastador. No interior, ocupando duas páginas, a história, num exercício de delirante imaginação, prosseguia. Na coluna do lado esquerdo o director brindara-me com um verdadeiro obituário escrevendo "...Mas, como é evidente, a imagem impoluta que ela sempre teve está, agora, afectada." Ao lado, sob o título "Política e escritora" o jornal reproduzia o meu curriculum vitae.

Bruscamente tinham-me julgado e condenado e cabia-me a tarefa de lidar com um paradoxo: por um lado, o valor objectivo da verdade: tudo o que o jornal publicara era falso; por outro, a força destrutiva da calúnia: qualquer um que tomasse conhecimento da notícia tinha o direito a acreditar que a mentira era verdade. Soube que tinha de o fazer sozinha quando, contactado o director, o ouvi, na ponta do fio, responder-me o óbvio: o jornalista era um excelente profissional, a "fonte" à prova de bala, a que se juntava um misterioso "responsável judicial".

Constatei que na prática as regras estão feitas para obrigar o ofendido a assumir o ónus da prova e perante uma qualquer notícia falsa, ainda que altamente atentatória do nosso bom nome e reputação, cabe-nos a nós, as vítimas, demonstrar o contrário. Neste extraordinário sistema que deixámos instituir e alimentar, o único sujeito totalmente protegido é "a fonte". E quem é esse personagem obscuro, oculto, a quem todo o silêncio é devido? Em regra um desgraçado cobardolas que usa os jornalistas para executar as sua vendetas, políticas ou pessoais, ou para ganhar alguns tostões.

O caso assumiu contornos de loucura quando o jornalista que escrevera a peça me telefonou, num sinal de boa vontade, para me dar a data, a secção e o nome da procuradora que me interrogara no DIAP. Como se bastasse eu fazer um esforço de memória para tornar real o que nunca ocorrera. Hesitei entre tomar a atitude habitual de desmentir, pôr um processo ao jornal e esperar três ou quatro anos por uma reparação publicada numa página interior e uma indemnização que de pouco serviria ou, paradoxalmente, aplicar a minha indignação na tarefa de deslindar, eu mesma e em tempo útil, aquele imbróglio.

Foi o que fiz. Durante três dias reuni as provas de que não havia qualquer investigação em curso, nunca tinha sido ouvida e constituída arguida, em nenhum dia de 2005 ou em nenhum outro dia da minha vida, por aquela procuradora. As diligências a que tive de proceder ocuparam-me horas, sobre as horas já ocupadas dos meus dias: Procuradoria, DIAP, PJ, o provedor da Santa Casa e até o ministro do Trabalho, tutela daquela instituição. E se obtive resultados rápidos isso deveu-se à extrema compreensão com que fui atendida.

Nesses dias senti-me, pela primeira vez, constrangida nas ruas da minha cidade. Os olhares de uns pareciam-me uma censura velada e os cumprimentos efusivos de outros uma manifestação implícita de pena. Nem mesmo as manifestações de tantos amigos, tão diferentes e de tantos pontos do País, conseguiram atenuar esta sensação terrível.

Na sexta-feira, dia 7, o 24 horas publicou em manchete de primeira página o desmentido com um enorme título de "INOCENTE" e o reconhecimento expresso do erro cometido. Uma vitória? Numa história destas não há vitórias. Mas pode haver pedagogia, uma espécie de pacto contra natura para reduzir danos imensos. Foi o que fizémos. Todos menos as fontes, é claro.

DN, 13-3-2008
 
TODA A HISTÓRIA DE JOSÉ SÓCRATES

JOÃO CÉU E SILVA

Biografia. O DN divulga hoje excertos da biografia escrita pela jornalista Eduarda Maio sobre o primeiro-ministro. A infância passada em Vilar de Maçada e na Covilhã e o momento - desconhecido - em que toma a decisão de se candidatar a secretário-geral do PS são os capítulos escolhidos

Uma biografia não autorizada pelo governante

Para os portugueses mais curiosos está aí o livro que conta um pouco mais da história do primeiro-ministro que governa Portugal, com estórias desconhecidas que vão desde a sua preferência pelos carrinhos da Dinky Toys, que levava da Covilhã para a aldeia natal - Vilar da Maçada -, até à alta política com a presidência europeia de 2007, passando por todas as polémicas que o fizeram notícia na comunicação social. São 350 páginas fruto de uma investigação realizada pela jornalista Eduarda Maio durante dois anos e que contou mesmo no final com uma entrevista de dez horas do visado para aparar as dúvidas que foram surgindo durante a recolha dos muitos depoimentos de amigos e conhecidos de José Sócrates sobre a sua vida. Não sendo prática habitual no panorama editorial português escreverem-se bio- grafias sobre políticos vivos, este livro - Sócrates, O Menino de Ouro do PS - surpreende pela quantidade de informações recolhidas e que são contadas num vaivém das épocas vividas pelo secretário-geral do Partido Socialista. Não ficam esquecidos os enquadramentos da sua ascensão consistente que, apesar de ter demorado 20 anos, surpreendeu, nem ficou por fazer um dos retratos mais completos e sistematizados desse seu passado político. Para os mais curiosos, repita-se, existe neste livro toda a recriação da infância e adolescência de José Sócrates e o povo português poderá finalmente ficar a saber a respostas a muitos dos porquês da sua vida. Porque é que o pai lhe deu o nome de Sócrates?; por que razão os pais se separaram cedo?; porque sofreu tanto com a morte da sua irmã?; porque se dedicou à política?; porque não terminou o curso no tempo certo? e ainda, entre muitas interrogações, porque foi primeiro militante do PPD, durante o início da sua vida política, e só depois se passou para o partido que lidera? Uma longa série de fotografias, muitas delas inéditas, situam as palavras de Eduarda Maio na vida real e fazem prova de uma investigação passada a livro. Apesar do título demasiado "frete", Sócrates - O Menino de Ouro do PS é uma radiografia muito completa e que dá início a uma série de biografias sobre os nossos políticos.

DN, 14-6-2008
 
Biografia de José Sócrates

JOÃO CÉU E SILVA

Da entrevista concedida à autora, José Sócrates fez questão de falar sobre muitos dos seus sentimentos em relação aos primeiros anos de vida e de revelar pormenores desconhecidos sobre como brincava e se dava com as outras crianças

"A INFÂNCIA"

"O parto decorreu normalmente e o Zezito nasceu bem. Eram dez e meia da noite de uma sexta-feira, 6 de Setembro de 1957. Fernando e Adelaide não formalizaram o nascimento do rapaz ali, na freguesia de Miragaia. Esperaram pelo regresso a Trás-os-Montes para registar o bebé como natural da freguesia de Vilar de Maçada, no concelho de Alijó, distrito de Vila Real, com o nome de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. «José Sócrates foi o nome por mim escolhido», esclarece o pai, «e com o que a minha ex-mulher esteve de acordo. José, nome de meu pai. Sócrates, apesar de não ter nenhuma raiz familiar, foi ideia minha por me vir à lembrança o filósofo grego por quem nutria alguma admiração através da leitura de testemunhos que a figura deste filósofo representa de racionalidade e humanismo. Ainda houve alguma objecção por parte do conservador do registo civil na aceitação do nome, por não ser usual, mas que foi superada.»

O pai de José Sócrates era o filho mais novo de José Pinto de Sousa, homem bem remediado, com casa no Largo da Fonte, junto do tanque comunitário de Vilar de Maçada, onde as mulheres mais velhas, ainda coçam a roupa na pedra de granito, em pleno Inverno, puxando a espuma ao sabão. O avô paterno de Sócrates dava-se à encadernação, ao cerimonial das festas religiosas e ao cuidado dos mortos. A antiga capela da casa era a sua oficina e armazém. Aplicava os dias a forrar livros ou a construir molduras de madeira, feitas e decoradas pelas suas mãos. Quando se aproximavam as festividades da vila, ou as romarias das populações em volta, dedicava-se mais aos andores. De alfinetes na mão, enfeitava-os com o esmero e o saber de muitos anos. Os cetins de cor iam ganhando uma ondulação minuciosa. A cada saliência minúscula seguia-se uma depressão feita pelo alfinete que cravava o tecido ao chão do estrado. (...)

Quando alguém morria, em Vilar de Maçada, era José Pinto quem tratava de dar ao finado a dignidade necessária na despedida deste mundo. Muitas vezes, saíam das suas mãos uma espécie de mocassins, feitos de papel escuro, para calçar os pés dos defuntos. Gente que, em vida, só conhecera a pedra arrefecida e o esboroado do chão, chegados à sola do pé e que, só depois de morta, recebia os primeiros e únicos sapatos. José Pinto aproveitava os tecidos mais cansados, usados nos andores em tempo de festa, os mais descorados e marcados pelas muitas alfinetadas, para revestir os caixões.

A música era outra das facetas do avô de José Sócrates. «O meu pai tocava guitarra com expressão e virtuosismo, o que me incutiu o gosto pela música. Chegámos a formar um conjunto: violino, guitarra, viola, bandolim e flauta, tocando música nos serões de Inverno ou serenatas nas noites quentes de Verão.» Fernando Pinto de Sousa tocava o violino e recorda com prazer esses tempos vividos com os irmãos em Vilar de Maçada. Ainda tentou contagiar José Sócrates com o seu gosto pela música mas a semente não germinou. Sócrates teve aulas de piano no conservatório da Covilhã, dos quatro até aos oito anos. «Era um martírio», recorda o político, «a professora Regina batia-nos nos dedos, mas nunca tive uma grande inclinação para a música. Os meus filhos adoram música. O Zé Miguel toca viola e o mais novo toca bateria.»

(...) José Sócrates já só via o avô nas férias e nas festas. A família mudara-se para a Covilhã em Maio de 1958, tinha Sócrates oito meses. Fernando Pinto de Sousa arrendara casa e abrira o seu atelier de arquitectura no centro da cidade. Apesar da arquitectura ser a sua actividade principal, Fernando nunca se desligou do ensino, pelo qual tinha grande gosto. (...) A cidade aproximou também Fernando Pinto de Sousa de outras das suas paixões - o cinema, a música, a poesia, a filosofia, a simpatia pela vida de figuras históricas, disciplinas para as quais tentou cativar os filhos. Cinco anos depois de José Sócrates, nasceu o seu irmão mais novo, António José. A família já tinha carro e deslocava-se com regularidade a Vilar de Maçada. Na aldeia «os meus filhos brincavam à vontade, sem o perigo automóvel, com os primos e outros meninos no jogo da bola ou a andar de bicicleta», recorda Fernando Pinto de Sousa. «Acompanhavam-me também na festa anual, no largo do adro, durante o arraial, em visita às barracas de brinquedos, jogos e outras festividades. Não dispensávamos os banhos nos açudes do rio Pinhão, ponte de Parada ou ponte de Monim, durante o Verão. Deslocávamo-nos com frequência a Vila Real para fazer compras e tomar qualquer coisa nas excelentes pastelarias da cidade, sobretudo na mais que centenária Gomes, na avenida Carvalho Araújo.»

Os quatro dias de festa do Senhor Jesus da Capelinha eram os mais aguardados em Vilar de Maçada. Reuniam os da terra. Aos que lá viviam, juntavam-se, nesses dias, os que haviam saído para outros pontos do país ou para o estrangeiro. (...) Na aldeia, José Sócrates passava o tempo entretido com os primos de roda dos Dinky Toys que carregava da Covilhã, os famosos brinquedos criados na década de 30 e cuja produção apareceu, quase ao mesmo tempo, em Inglaterra e em França. António, Fernando, José e Carlos, filhos da tia Helena, encantavam-se com aquelas miniaturas de automóveis, perfeitas, apetrechadas com pneus de borracha de verdade e os pára-lamas cromados, a cintilar. Eram tardes de êxtase, em frente de casa, que arrumavam a noção das horas a um canto. Um bando de miúdos de costas dobradas e joelhos no chão, engenheiros da brincadeira, construindo estradas, estudando a localização e os materiais das pontes e dos túneis, os motores a trabalhar, os guinchos dos travões e os roncos dos aceleradores, num ofício de lábios, gargantas e línguas.

(...) Os passos de José Sócrates ainda hoje o conduzem para a ponte de Parada, se vai à vila. Desce o caminho, em corrida, até ao sítio predilecto dos meninos de Vilar de Maçada. De vez em quando, o povo vê-o a passar para lá, mas só quem o conhece bem se atreve a acenar-lhe ou a cumprimentá-lo. Os outros inibem-se, acanham-se. A intimidade da terra com o pequeno Zezito é tão forte quanto a distância e a estranheza da vila em relação ao homem que chefia o governo do país. Como se Zezito e José Sócrates habitassem dimensões diferentes. Sócrates continua, porém, a regressar a Trás-os-Montes, convocado pelas memórias e pelos afectos, essa «coisa», como diz o político, verificada pelo tempo, que se aquartela na pele e «não sai». «Eu sempre tive dificuldade em responder a essa pergunta - de onde és? - mas a minha resposta intuitiva é sempre Vilar de Maçada, porque isso é o que está no meu bilhete de identidade e porque fui habituado a pensar assim», descreve o socialista. «A minha aldeia é a minha terra, é a dos meus pais. Nunca vivi lá mas era a terra dos meus pais. Nós passamos uma parte da vida a não gostar de "ir à terra". Também me aconteceu e, a partir aí dos trinta anos comecei a gostar de ir lá e agora "obrigo" os meus filhos também a irem a Vilar de Maçada. Às vezes contra a vontade deles, porque acho que eles gostarão de saber de onde vêm. (...)

"A DECISÃO POLÍTICA"

Memórias II. O momento em que decidiu avançar para a candidatura ao cargo de secretário-geral do PS foi precedido de um retiro nas terras onde passou a infância e adolescência e de uma importante conversa com o pai. Para o primeiro-ministro, o segredo da sua vitória política passava muito pelo momento certo da decisão

"É sexta-feira, 9 de Julho de 2004.

José Sócrates está a caminho de Vilar de Maçada para assistir às festas do Senhor Jesus da Capelinha. Precisa de uma pausa e gosta da quietude do lugar. A quatro horas de Lisboa, a vila é um refúgio atraente e um local perfeito de reflexão em tempo de tanto desassossego. Concede a José Sócrates o afastamento necessário para se centrar no essencial e o isolamento suficiente para decifrar, de forma clara, todos os sinais que, as próximas horas, ou os dias imediatos, lhe irão trazer, amplificando o discernimento entre o importante e o acessório. A experiência já lhe demonstrou que, não raras vezes, a política se enfia por atalhos e que, nessas ocasiões, é indicado saber conjugar na perfeição lucidez e ponderação com capacidade de reagir em cima dos acontecimentos, influenciando-os. A concentração é uma aliada valiosa para pressentir o momento certo. Antecipar-se ou atrasar-se, em relação a esse instante, não o distinguir limpidamente, pode fazer a diferença entre o político de sucesso e o falhado, entre o político influente e o inofensivo.

«Este não é o momento certo!», responde amiúde, repelindo as perguntas às quais entende não ser ainda a altura de revelar o seu entendimento. Está para lá da simples fuga à interpelação incómoda ou do puro cálculo político. Para José Sócrates é a busca do momento perfeito, irrepreensível. O socialista aprendeu que «o tempo é essencial em política» e, se encontra um propósito, a frase solta-se-lhe, como se exercitasse o pensamento em voz alta. «Um dos segredos mais importantes da política é escolhermos nós o momento», esclarece Sócrates. «Se se perguntar a um general o que é estratégia, ele dirá que é escolher o sítio e o momento para lutar. Um político também tem que ter essa ideia de ser ele a escolher o momento e não de ser o momento a escolhê-lo.» José Sócrates é um homem inesperadamente sereno, quando descansa das batalhas. Põe uma voz baixa e amena. Mas o mais pequeno estímulo pode endurecer-lhe o tom e ampliar-lhe a vibração. «Não há tempos ideais e aqueles que esperam pelos momentos ideais nunca farão nada. Estou farto de ver políticos sempre à espera do momento ideal e esse momento ideal não existe.

O mais importante é escolhermos o nosso momento e não nos deixarmos levar pela coisa.» A subida de tom serve para colocar certeza nos seus argumentos e paixão na sua defesa, depois torna a apaziguar-se para revelar: «O segredo é o ataque», diz, depositando as palavras, uma a uma. «O segredo é a iniciativa. O que é a liderança? Liderança é antecipação, é iniciativa. O general Foch costumava dizer: a minha direita progride, a minha esquerda avança, está tudo bem, estou ao ataque.» As mãos, em cima da mesa, acompanham-lhe o raciocínio. Desfaz o gesto e conclui: «Iniciativa.» Outro exemplo chega-lhe de repente: «O Lord Nelson também dizia que atacar pode ser um erro. Mas é um erro do lado certo. O mais importante na política é ter iniciativa e para termos iniciativa temos que escolher o nosso tempo, o nosso momento. Podemos cometer erros, mas devemos ser nós a comandar o tempo e não condicionarmos o nosso movimento ao movimento do parceiro, sermos os primeiros a movermo-nos.»

José Sócrates já estivera em Vilar de Maçada na Páscoa de 2004, com o pai e os dois filhos. Nos primeiros dias de Abril, o socialista descansara e reflectira sobre o momento que o seu partido vivia.

A direcção fragilizada de Ferro Rodrigues e o incentivo que vinha recebendo de alguns camaradas para que ponderasse apresentar-se como alternativa de liderança, bailavam-lhe na cabeça. Nessas férias confidenciou o assunto ao pai: «(…) houve entre nós uma troca de impressões. Da minha parte manifestei-lhe a minha concordância quanto à candidatura para secretário-geral do PS, uma vez que ele reunia todas as condições para o ser.» Porém, Fernando Pinto de Sousa fez também ver ao filho o pesado fardo que tal decisão poderia acarretar: «(...) como secretário-geral, surgiria a grande probabilidade da sua eleição a primeiro-ministro, hipótese, a meu ver, quase certa. Neste sentido não deixei de lhe transmitir as dificuldades do cargo, por ter presente o que sucedera a Sá Carneiro e outros altos governantes, sempre hostilizados nas suas importantes decisões. Permaneceu ali (Vilar de Maçada), então, cerca de duas semanas, e decidiu-se pela candidatura.»

Esse propósito continuaria, no entanto, em estado de maturação interior, impartilhável e sem termo de validade. O curso político guiaria o silêncio de José Sócrates e dir-lhe-ia quando materializar a decisão ou, até, se ela se concretizaria.

DN, 14-6-2008
 
O 'MENINO DE OURO' DE DIAS LOUREIRO

JOÃO PEDRO HENRIQUES

Sócrates. 'O Menino de Ouro do PS', biografia do primeiro- -ministro da autoria da jornalista Eduarda Maio, foi ontem lançada em Lisboa. Dias Loureiro, ex-ministro do PSD, conselheiro de Estado designado por Cavaco, multiplicou-se em elogios a Sócrates e ao seu "optimismo, que faz bem a Portugal"
Loureiro acha que optimismo do PM faz bem ao País
Manuel Dias Loureiro, empresário, "barão" do PSD, conselheiro de Estado indicado pelo Presidente da República, mais parecia, ontem, um fervoroso militante socialista.

No lançamento de uma biografia de José Sócrates da autoria da jornalista Eduarda Maio, sob a chancela da Esfera dos Livros, o ex-ministro elogiou a autora do livro ("uma investigação exaustiva" que é "fácil de ler") mas em relação ao próprio biografado foi verdadeiramente hiperbólico. Fez inclusivamente "sombra" ao outro apresentador da obra, esse sim portador de cartão de militante do PS, o ex-ministro e ex-comissário europeu António Vitorino.

Dias Loureiro declarou-se "emocionado" com o "lado dos afectos" retratado na biografia (intitulada "José Sócrates - O menino de ouro do PS"), sobretudo na parte em que a autora referiu a ligação do líder socialista à aldeia transmontana onde nasceu há 50 anos, Vilar de Maçada. "Há duas coisas que não podemos escolher: os nossos pais e a terra onde nascemos. Temos a obrigação de respeitar essa herança, amá-la e transmiti-la", afirmou.

Mas Dias Loureiro elogiou também as características políticas de Sócrates. Por exemplo, a sua "atenção aos detalhes". "Só quem está atento aos detalhes pode fazer grandes coisas. Essa é uma característica dos grandes homens." Elogiou-lhe também a "sensatez" e a "prudência" e ainda o seu "optimismo": "O optimismo de Sócrates faz muito bem a Portugal".

O outro apresentador, o dirigente socialista António Vitorino, sublinhou o "risco" de escrever uma biografia de um político ainda no activo - sendo portanto lida à luz das "paixões" que o biografado provoca. "Um livro destes é muito raro", sublinhou, salientando ao mesmo tempo a pouca tradição portuguesa das biografias.

Vitorino referiu Sócrates como o primeiro chefe do Governo pós-25 de Abril "totalmente formado" depois da Revolução, enfatizando também que o líder socialista, nas declarações que fez a Eduarda Maio sobre aspectos da sua vida pessoal e familiar, "deu pela primeira vez o passo para o outro lado da fronteira" - ou seja, rompeu com o hábito que tem mantido de manter essa parte da sua vida fora do escrutínio público.

Sócrates, no seu entender, "é um político moderno". E domina três aspectos essenciais da acção política moderna: "É um bom comunicador - e só é um bom comunicador quem tem algo para comunicar; é um profissional porque está focado nos resultados; e não tem uma concepção fixista dos valores". Encerrou a prelecção dizendo ter ficado com uma dúvida: afinal Sócrates tem ou não prazer em "vitimizar telemóveis"? O livro não esclarece. "Ficará para uma autobiografia." Talvez.

DN, 1-7-2008
 
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