09 julho, 2007

 

A justiça


em Portugal

Alguns dados:

- 1.790 juízes,
- 1.338 magistrados do Ministério Público,
- 9.046 oficiais de justiça,
- 25.000 advogados;

Em 2006, entraram nos tribunais portugueses mais 790.453 processos, mantiveram-se pendentes 1.700.000 ( 75% dos quais acções cíveis ) e foram findos 797.128...

A maioria são acções de dívida que não chegam aos 500 euros!

- de entre as cíveis 24,1% são declarativas contra 29% executivas;
- 60% de todas as declarativas em tribunal são referentes a dívidas;
- 35,4% destas têm valor inferior a 500 euros.

http://www.tribunaisnet.mj.pt/

http://dre.pt/pdf1sdip/2007/07/14500/0487004872.PDF

http://www.portugaldiario.iol.pt/noticia.php?id=914180&sec=3

Comments:
Justiça e comunicação social permanecem de costas voltadas

Moderação: JOÃO MARCELINO, RUI HORTELÃO, ANA SÁ LOPES E MARTIM SILVA
textos João Pedro Henriques e LIcínio LIma

A divulgação de certos casos judiciários tem de supor, sempre, a violação do segredo de justiça, milhares de vezes registada, por exemplo no processo Casa Pia, ou é possível um outro tipo de relação entre a justiça e a comunicação social?

Maria José Morgado - Muito concretamente, se houve milhares de violações de segredo de justiça em determinado caso ultramediatizado ou até patologicamente mediatizado, eu não gostaria de seguir por aí, nem criminalizar o debate, sob pena de perdermos completamente a importância das coisas, sua natureza, e do significado.

Estamos preparados para assumir um tipo de relacionamento mais transparente?

Maria José Morgado - Nunca estamos suficientemente preparados. As mudanças no interior das magistraturas são sempre mais difíceis porque estamos a lidar com gente que é formada para aplicar a lei e que, evidentemente, pode ter um determinado tipo de formação que cria dificuldades à mudança. Começando por mim própria. Sinto às vezes essas dificuldades, como é evidente…

É possível haver transparência sem perda de autoridade?

Maria José Morgado - Aparentemente, quando a comunicação social entra em funcionamento, nos nossos dias, parece que transparência e autoridade são coisas antitéticas - no sentido de que ao se ser transparente se perde a autoridade. É necessário, de facto, haver transparência e haver autoridade.

Como?

Não sei… não quero ser pretensiosa e dizer que há receitas acabadas. Há experiências comparadas…

Ricardo Cardoso - É evidente que a comunicação social tem um papel fundamental na tradução e publicidade das audiências. É obrigatória, e está constitucionalmente consagrada, ao contrário do que se passava antes do 25 de Abril, em que havia julgamentos à porta fechada. A regra é a publicidade e o esclarecimento das decisões… Mas, para o bom esclarecimento, a própria decisão deve conter todos os elementos necessários a poder ser interpretada pelo mais vulgar dos cidadãos… Todas as decisões são discutíveis em termos públicos.

Essa "tradução" tem sido bem feita?

Ricardo Cardoso - Temos assistido a três níveis diferentes de linguagem. Umas vezes, a decisão é meramente transposta para os media, e chega assim aos cidadãos. Outras vezes, já tem uma interpretação opinativa de quem divulga. Ou, mais grave ainda, a divulgação e tradução são feitas pelos próprios intervenientes no processo. Este último nível é muito frequente, mas é eticamente reprovável. Os intervenientes no processo não devem pronunciar-se sobre o mesmo....

Quer referir algum caso concreto sobre esse terceiro nível?

Ricardo Cardoso - Não me lembro agora de nenhum… mas devem conhecer alguns… (risos).

Mas o debate público é positivo...

Ricardo Cardoso - O debate público é positivo, mas a violação da ética por parte dos intervenientes no processo não é positiva. É como se os senhores jornalistas começassem a discutir sobre quem são as fontes uns dos outros.

Maria José Morgado - A comunicação social é o intermediário entre o tribunal e as pessoas… essa é que é a grande questão. Mas a percepção da justiça na opinião pública, feita através dos jornalistas, é, às vezes, ligeiramente desfasada da realidade da justiça.

António Martins - É vulgar assistirmos a isto: "É verdade, porque eu até vi na televisão." A comunidade, sem grande formação jurídica, absorve os media de forma acrítica. Esta absorção deveria obrigar a um grande rigor, de forma a que as matérias fossem trabalhadas de modo crítico, e não colocadas, muitas vezes, de modo, não digo tendencioso, mas com ligações a jornalismos de causas, que têm pouco a ver com o direito a informar.

Rogério Alves - O cidadão português tem uma particularidade engraçada... não acredita em nada nem em ninguém, excepto no que ouve na comunicação social. É uma singularidade. A comunicação social está de parabéns... Não se acredita em políticos nem nas instituições... mas lê-se uma coisa no jornal, e acredita-se...

Há um mau uso do direito a informar?

António Martins - Com base nesse direito vemos que se criam notícias, assente na ideia de que a comunicação social tem por missão noticiar processos em investigação, ou com os arguidos a serem constituídos. Porém, quando mais tarde é feito o julgamento e uma decisão tomada, que muitas vezes é de absolvição, a comunicação social já desapareceu. A imagem da pessoa que fica na opinião pública é a daquele primeiro momento - a imagem da culpabilidade...

É culpa só dos jornalistas?

António Martins - É evidente que os próprios tribunais têm de repensar o seu papel na forma de se relacionar com o cidadão. No modelo de hoje, os tribunais e os juízes são deixados "sozinhos", abandonados nos seus tribunais ou nas suas estruturas de investigação, com o peso dos media à volta. Já se deveria ter criado estruturas profissionalizadas, nomeadamente ao nível dos juízes junto do Conselho Superior da Magistratura (CSM).

Rogério Alves - As pessoas que apreendem o fenómeno judiciário através da comunicação social acham-no um pouco ridículo, um pouco patético, onde tudo é violado, onde tudo é subvertido...

Porquê?

Rogério Alves - Porque a informação é falhante, é manipulada, é insuficiente, é errada. Às vezes dolosamente, outras por mera culpa.

Isso parece infernal...

Rogério Alves - Em Portugal, a conjugação das várias coisas, algumas boas, outras más, transformou a relação entre a comunicação social e a justiça num verdadeiro inferno, e num factor de descrédito...

António Martins - O mais preocupante para mim, enquanto cidadão, é sentir que estou a viver numa sociedade que não consegue resolver coisas básicas como esta… Eu, cidadão, se um dia enfrento um problema com a justiça enquanto potencial suspeito, sou crucificado imediatamente na praça pública e, mais tarde, mesmo que o julgamento conclua que não tenho culpa rigorosamente nenhuma, a minha imagem fica para sempre ligada ao momento em que fui crucificado…

Rogério Alves - Um dos problemas de fundo da relação da justiça com os media e com o povo é que a nossa justiça é conhecida por pequenos episódios, e não de um modo mais global. Já fiz várias vezes uma proposta a órgãos de comunicação social para que fizessem uma reportagem que envolvesse um processo relativamente rápido, um de velocidade média e um de velocidade lenta. E que fossem descobrir porque é que isso acontece. E, assim, ficariam com uma amostragem sobre os métodos de trabalho, falta de instalações, onde o processo esteve, e encontraria razões que ajudariam a perceber porque é que a nossa justiça funciona a este ritmo e com estas limitações.

O que pensa o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público?

António Cluny - Temos de distinguir dois tipos de jornalismo. Uma coisa é o jornalismo que tem a ver com acompanhamento dos processos. Sempre existiu. Exige alguns conhecimentos e alguma técnica. Outra coisa é o chamado jornalismo de investigação. Infelizmente, o jornalismo de investigação tem estado mais vocacionado para pirataria da investigação judicial. O que nós hoje chamamos de jornalismo de investigação é, no fundo, uma piratagem das investigações desenvolvidas pelos órgãos de polícia criminal (OPC) ou pelo Ministério Público (MP)…

Jornalismo judiciário e de investigação podem ser complementares?

António Cluny - Quando estas duas realidades se misturam e se perturbam podem ocorrer situações em que o próprio jornalista se torna parte da notícia. Quando isto acontece, ou porque violou o segredo de justiça, ou porque se envolve com determinadas fontes, ele próprio perde alguma credibilidade enquanto jornalista e vicia o papel da comunicação social.

António Martins - Ou aprendemos todos, jornalistas e pessoas que trabalham nos tribunais, a modificar um pouco esta perspectiva, ou continuaremos a caminhar para isto que está a acontecer, que dá lugar a uma descredibilização da justiça. Por arrastamento, mais tarde ou mais cedo, vai levar a uma situação de canibalismo também da comunicação social.

António Cluny - A reflexão sobre esta matéria tem de partir também de dentro do próprio jornalismo, sobre as suas próprias competências e capacidade para lidar com estas notícias.

E com as pressões....

António Cluny - Muitas vezes não se vê esse distanciamento crítico do jornalismo, quer relativamente às pressões que vêm do exterior quer relativamente às próprias fontes.

Não são muitas vezes as fontes a manipular os jornalistas?

António Cluny - Sabeis responder a isso melhor do que nós. Vejo que a muitas notícias é atribuída uma "fonte judicial". Isto das generalizações, em democracia, é perigoso. Corrói-se e destrói-se o prestígio, a fama, a capacidade de decisão de todas as instituições. Convém que se saiba de onde vêm as notícias.

Revelar as fontes?

António Cluny - Não digo isso. Mas era importante que a própria comunicação social reflectisse. E, se calhar, era conveniente que dissesse de onde vêm as notícias.

Como é que a Polícia Judiciária (PJ) lida com tudo isto?

Almeida Rodrigues - Para a PJ, a comunicação é fundamental para efeitos de prevenção geral. Se o crime é grave, a comunicação social divulga. Mas, se a PJ, quando descobre os autores e faz detenções, não fizer um comunicado, para todos os efeitos é como se o crime não estivesse a ser resolvido. Se nos esquecemos de fazer o comunicado, é a própria comunicação social que nos alerta.

A PJ tem modificado os seus procedimentos perante a pressão dos media?

Almeida Rodrigues - A PJ tem procurado actualizar-se, e posso dizer que tem havido o cuidado por parte dos directores nacionais em se adaptarem aos novos tempos. Agora, é difícil face ao próprio espartilho legal, quer o artigo 12.º da lei orgânica da PJ quer o 96.º do CPP. Não é fácil gerir a informação perante esta nova realidade. Vamos imaginar um caso...

Ricardo Cardoso - O caso de Madeleine Mc Cann.

Almeida Rodrigues - Não gosto de falar de casos. Mas vamos supor que aparece um corpo de uma criança ou que aparece uma criança. Em bom rigor, a PJ não pode dizer se aquela criança é, ou não, a criança desaparecida.

A comunicação nem sempre é possível...

Almeida Rodrigues - Em bom rigor, essa informação está sob segredo de justiça. Obviamente que há mecanismos para que seja quebrado. Só que o tempo de quebra não é o mesmo tempo da comunicação social.

António Cluny - Até porque a PJ tem uma dupla função. De investigação, mas também de prevenção e de segurança. A informação às vezes é fundamental para garantir o sossego e a paz social. Relativamente à polícia, há uma função que é algo de diferente da do próprio sistema de justiça.

Almeida Rodrigues - Por exemplo, na época estival, os grandes incêndios são sempre noticiados. Também devem ser noticiadas as detenções, pelos motivos já referidos.

A comunicação é feita pelos inspectores?

Almeida Rodrigues - A PJ tem porta-vozes...

É esse o caminho que deve ser seguido...

Almeida Rodrigues - Parece que sim.

Maria José Morgado - Pessoalmente, acho que, em temos de comunicação, a PJ funciona muito bem. Se metessem gente de fora, perderiam em termos de eficácia.

É importante que a sociedade conheça os rostos que aplicam a justiça?

Maria José Morgado - A justiça não está na clandestinidade… A justiça tem um aplicação pública, e na justiça penal há o princípio da publicidade… Agora, não podemos cair em extremos. Uns amigos meus, juízes brasileiros, contavam-me há pouco tempo que a mediatização da justiça no Brasil é de tal forma que até se dizia, numa certa zona do Brasil, que, quando um procurador da República vai de manhã ao frigorífico, ao enfrentar a luz logo pergunta: "Como é que eu estou?"

Considera-se uma vedeta da justiça?

Maria José Morgado - Não. A comunicação social usa e abusa da minha imagem sem pedir licença. Mas… não estou na clandestinidade…

A mediatização da sua imagem terá ajudado à confiança dos cidadãos da justiça?

Maria José Morgado - Essa não é a minha posição… seria ridículo.

Não reconhece isso?

Maria José Morgado - O que há é uma participação na discussão pública das reformas penais e em determinados interesses da justiça. Tudo o resto são ideias tabloidizadas, é tabloidismo… Temos de separar as coisas.

Como?

Maria José Morgado - A Maria José tablóide não é a Maria José que está aqui hoje. São pessoas diferentes… tenho a noção disso…

Ricardo Cardoso - O protagonismo foi uma arma de arremesso que o poder político, em determinado momento, erigiu contra os magistrados que tomaram determinadas decisões. Em Itália, não houve vedetismo de juízes. Houve, sim, a exposição pública das suas decisões que foram arrastadas na voragem mediática que a todos ultrapassa. Quando o terrorista Carlos Chacal foi apresentado ao juiz, disse-lhe: o senhor vai ficar famoso. Hoje ninguém se recorda do nome do juiz.

Quer explicar melhor?

Ricardo Cardoso - A partir do momento em que determinadas figuras públicas são expostas em processo-crime, são essas mesmas pessoas que se dirigem aos órgãos de comunicação social nos horários nobres das televisões para discutir o processo. Opostamente, não se vêem nem os juízes nem os magistrados do Ministério Público, mais ou menos tablóides, a ir à televisão ou a outro sítio explicar o que fizeram nos processos.

Estamos perante um fenómeno novo?

Ricardo Cardoso - A situação tem evoluído. As reacções foram deixando de ser só individuais, das pessoas visadas, para passarem a ser uma coligação de forças políticas, a partir do momento em que nos anos 90 os políticos com responsabilidades criminais pertenciam a vários partidos, como, por exemplo, no âmbito das viagens-fantasma da Assembleia da República. A reacção política tornou-se forte, introduzindo, então, alterações à composição do CSM, que deixou de ter uma maioria de juízes - como, aliás, sempre defenderam Salgado Zenha e Sá Carneiro - para passar a ter uma maioria de membros nomeados pelo poder político. Tal foi visível na intervenção do presidente da Assembleia da República no congresso dos juízes em Viseu, em 1997, em que anunciou essas alterações.

Essa alteração provocou algum mal-estar entre os magistrados judiciais?

Apreensão, até porque, seguidamente, outros fenómenos foram visíveis, nomeadamente com a nomeação, por parte do poder político, de vogais para o CSM próximos de pessoas intervenientes em processos mediatizados, sempre que se colocasse a hipótese de que determinado ministro fosse chamado a depor em tribunal ou que algum ministro fosse preso.

É esse o panorama actual?

Ricardo Cardoso - O actual poder político, na sequência de todo o agravar de tensão entre os poderes judicial e económico, num tempo em que a corrupção e o financiamento dos partidos passaram a ter maior visibilidade, celebrou um Pacto para a Justiça e vinha já há um ano a erigir a magistratura como se fosse o inimigo público número um, pretendendo introduzir alterações ao seu estatuto. Aliás, esse é um dos objectivos do Pacto para a Justiça. A transversalidade do poder económico e o alargamento das coligações do poder político levaram à criação de condições semelhantes às que deram origem ao processo mãos limpas...

António Martins - Isto está a subverter várias regras, desde logo as regras de tratamento igual para todos, de que nunca deveríamos prescindir, além de subverter regras essenciais da própria democracia…

Sente isso…

António Martins - Não sinto em casos concretos. Mas sinto cada vez mais a perspectiva de uma pressão de politização da justiça. Em 1992/1993 já havia processos a envolver pessoas politicamente relevantes.

Maria José Morgado - Caso Melancia, Hemofílicos...

António Martins - Exactamente. Já na altura se sentia alguma pressão para a politização da justiça - que o doutor Ricardo falava há pouco.

Maria José Morgado - Isto agravou-se.

António Martins - É isso mesmo...

Ricardo Cardoso - Piorou muito...

António Martins - Piorou imenso. Já na altura se sentia esta perspectiva de atacar os juízes com a ideia de mediatização, com a ideia de serem muito novos. Eu, com 36 anos, era na altura considerado muito novo… para muita coisa… Para ser ministro aos 35 já não se é muito novo… Todos estes aspectos eram a tentativa de descredibilização dos juízes, na perspectiva de exercerem influência sobre eles. Hoje, isso agravou-se.

Ricardo Cardoso - Porque a pressão da comunicação social é também maior.

António Martins - Não digo que seja…

Almeida Rodrigues - Nos tempos que correm, parece-me que deve haver um esforço de conciliação entre o tempo da comunicação social, o tempo dos tribunais e o da investigação. Por exemplo, hoje [dia 20] há mais uma sessão de julgamento do caso do presumível homicida em série de Santa Comba Dão. À medida que o julgamento avança, a presença da comunicação social é cada vez menor. No entanto, lembro-me da pressão que houve sobre a PJ no momento da detenção.

António Martins - E mais. No dia anterior ao início do julgamento, vimos o arguido a prestar declarações em directo na televisão, desde o estabelecimento prisional...

Não será inexoravelmente sempre assim... e cada vez mais?

António Martins - Não, não pode ser assim.

Ricardo Cardoso - Isso remete para o que aconteceu com os políticos nos anos 90, conforme referiu o doutor António Martins. Quando são visados em certos processos vão às televisões, em horário nobre, expor o seu assunto. Isso alargou-se a todos os processos mediáticos. Todos vão ao horário nobre. Se isto se vai manter assim? Isto vai piorar...

António Martins - Mas não pode ser assim. Um arguido ser entrevistado em directo no dia anterior ao início do julgamento?!!!

Rogério Alves - O arguido foi entrevistado em directo?

António Martins - Foi...

Rogério Alves - (risos)

António Martins - ... e no estabelecimento prisional!!! Isto deveria dar lugar à demissão do director-geral dos Serviços Prisionais, ou do director do estabelecimento...

O assunto não causou grande discussão...

António Martins - Nenhuma discussão... Isto de permitir a um arguido fazer declarações em directo na televisão, no dia anterior ao julgamento, dando-lhe tempo de antena para dar a sua versão, sem contraditórios em perspectiva, pode transmitir para a opinião pública uma ideia diferente daquilo que se vai passar em julgamento.

Como?

António Martins - Em julgamento, as regras são diferentes... Pode o arguido nem sequer prestar declarações. E, se prestar, há lá outros intervenientes com possibilidade de fazer perguntas. Há ali todo um conjunto de dados que estão no processo e que podem ser questionados ao arguido, se ele prestar declarações. Na entrevista, é tempo de antena...

Então, falemos do segredo de justiça...

Ricardo Cardoso - Vamos a isso. Como é que está? Está muito maltratado… As pessoas que intervêm nos processos, e que têm de decidir, apercebem-se de que muitas notícias estão carregadinhas de impressões digitais. Basta ler para perceber qual é a fonte. E, sendo assim, apercebemo-nos de que alguém anda a jogar fora do processo, em termos de envenenamento da opinião pública.

A missão do jornalista é informar...

Ricardo Cardoso - Eu compreendo que se queira informar. Mas isso deve derivar do próprio tribunal. O tribunal tem mecanismos, através do Código do Processo Penal (CPP), para dar as informações que entenda relevantes e públicas sobre os processos, desde que o entenda….

Os jornalistas deveriam ser, objectivamente, os garantes…

Ricardo Cardoso - É impossível pedir ao jornalista que seja garante do segredo de justiça. Aliás, é impossível punir o jornalista pela violação do segredo. O segredo de justiça vincula apenas aqueles cuja finalidade é garantir a objectividade do processo e a sua reserva. Ou seja, só vincula os profissionais directamente ligados ao processo.

Maria José Morgado - Já vi jornalistas serem acusados por violação de segredo, e alguns estão, inclusive, a ser julgados…

Ricardo Cardoso - Não me pronuncio sobre caso nenhum.

Maria José Morgado - A possibilidade de o jornalista poder ser autor do crime é possível… mas depende da prova. Em termos dogmáticos. Não estou a falar de casos concretos, mas da previsão…

Rogério Alves - O segredo de justiça hoje é uma coisa ridícula... É uma coisa para as pessoas achincalharem. Só falta haver um concurso de quem viola mais o segredo de justiça em 30 dias... uma coisa que até podia ser vendida a peso...

Não dê ideias...

Rogério Alves - Espero que me paguem direitos de autor se alguém pegar nesta brilhantíssima ideia...

Está a transmitir uma imagem muito negativa do instituto...

Rogério Alves - A Ordem dos Advogados (OA) apresentou uma proposta na Unidade de Missão para a Reforma Penal - a proposta foi rejeitada - no sentido de que algumas coisas nunca poderiam ser divulgadas. Se fossem, seriam atribuídas responsabilidades a quem as divulgou... Mas a opção que se tomou na reforma do CPP e do CP sobre esta matéria é claramente à portuguesa (ver texto ao alto das páginas 20 e 21). Havia dúvidas, continua a haver... Um tribunal decide uma coisa, outro tribunal decide outra... e ouve- -se as pessoas dizer: "Este sistema judicial, realmente... não sabe o que anda a fazer..."

Essas fugas de informação vêm, sobretudo, de dentro do edifício da justiça?

António Martins - Com certeza que sim… mesmo estas a que temos assistido. A manchete de um jornal, hoje, repete um assunto [o caso Portucale, em segredo de justiça] que tem vindo às pingas na comunicação social há mais de uma semana. Os objectivos de notícias desta natureza são fáceis de perceber. É evidente que tem de vir de dentro do sistema judicial. A questão é: devemos conviver com isto? Enquanto cidadão, não gosto de conviver com isto…

Rogério Alves - Mas há outros problemas graves. O primeiro é que, em Portugal, confunde-se permanentemente o assunto com o processo. Isto é uma coisa letal para a vida dos cidadãos. Em Portugal, já não há assunto. Ou seja, as pessoas são designadas pela posição processual que detêm. É ou não arguido? Se houvesse uma sessão de pancadaria neste debate, em que os três deste lado da mesa agredissem os três de lá...

Ricardo Cardoso - Já estava à espera... (risos)

Rogério Alves - Prosseguindo com este exemplo simulado, para ajudar quem está de fora a entender o que se passa no interior do sistema: se os três deste lado da mesa agredissem os três de lá. Eu sou constituído arguido mais cedo. O doutor António Martins tem mais sorte e nunca mais é constituído arguido. O doutor António Cluny, sob quem pende a possibilidade de eu ser constituído arguido, não sei se bem se mal, por outras razões também não é. Eu sou pior do que eles. Porque eu já fui constituído arguido, mas eles não.

Isso tem também a ver com a velocidade da informação...

Rogério Alves - O mundo mediático é rápido, o mundo judiciário é lento. Ou seja, uma coisa que no mundo judiciário vai ser analisada com detalhe, com ponderação, e que depois dá origem, se der, a uma acusação, e que depois dá origem, se der, a uma pronúncia... Depois, vai a julgamento, se for... onde se ouvem as pessoas, e se volta a ouvir... onde é que já vai a comunicação social?!!!

O que se passa hoje é diferente de há 20 anos?

Rogério Alves - Em Portugal, o foco mediático deixou de ser o julgamento... Essa é a grande diferença. O que interessa é aquela fase empolgante da investigação: quem é detido, quem é constituído arguido, escutas telefónicas.... O que interessa é saber quem é ungido com aquela perfídia associada à constituição de arguido, ou pelo menos à indiciação. Enfim, com tudo o que de cabalístico têm as palavras...

António Cluny - Passamos a descentrar o assunto que inicialmente era grave, para outro assunto lateralmente importante, mas que é outro, deixando de lado, objectivamente, o assunto inicialmente noticiado.

Isso afecta a investigação?

António Cluny - Desta forma consegue-se deslegitimar a actuação de toda a gente, seja polícias, seja MP, seja advogado, seja juiz, desfocando completamente o assunto. Isto é, dentro de um processo nasce como que um bebé informático com potencial para destruir a existência do primeiro... Temos um alien que nasce ali...

Ricardo Cardoso - As dificuldades sobram depois para os órgãos de polícia criminal, que são os que estão constantemente debaixo de fogo, e sem possibilidade de dar resposta à informação que toda a gente quer... Quer em Portugal quer no estrangeiro, toda a gente deita fogo à polícia.

Deixemos a polícia responder...

Almeida Rodrigues - O segredo de justiça não é uma questão nova para a PJ. Já em 1981 o então director-geral pediu um parecer ao conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República acerca da forma como haveria de lidar com a CS.

Seguramente que o parecer já não se adapta aos dias de hoje...

Almeida Rodrigues - A forma de comunicação hoje é completamente diferente da de 1981. O parecer do conselho consultivo obviamente que está desactualizado. Mas o instituto do segredo de justiça, em si, não é um mal. E compreendemos as razões. Acontece o mesmo com o estatuto de arguido. O fim, em si, é bom, mas acaba por ser desvirtuado. Isto mostra que estamos perante uma realidade que é dinâmica, e que temos de ir aperfeiçoando estes institutos ao longo do tempo.

Rogério Alves - Tem de haver menos segredo de justiça e melhor segredo de justiça. Os OPC devem ter, em regra, um prazo para investigar. Dentro desse prazo têm de abrir o segredo de justiça - aquela discussão sobre se alguém detido ou preso preventivamente deve saber porque o é - mas não só dizer apenas o crime de que é indiciado, mas também as provas que sustentam a imputação.

António Cluny - De certa forma o segredo de justiça acaba por ser também um instrumento útil em determinados momentos para brandir contra os próprios processos, e colocá-los permanentemente em suspeição. Aqui temos como que um instrumento que, tendo uma função legítima, acaba por funcionar como instrumento de deslegitimação do sistema. Para alguns, é bom que se mantenha o segredo de justiça tal como está, porque sempre se pode utilizar quando der jeito....

Pode dar jeito em tempo de eleições...

Rogério Alves - Isso tem a ver com uma outra coisa, que temos de dizer. As pessoas são invejosas, são mesquinhas e gostam de ver os outros em dificuldade. Isto é uma coisa claríssima. Estou a ser um bocadinho injusto para muitas pessoas, mas há outras que são assim.

Por exemplo...

Rogério Alves - Descobriu-se uma metodologia de causar dificuldades a terceiros. Eu ponho a circular um boato sobre uma pessoa que me anda a irritar, ou que é meu potencial rival. Alguém vai queixar-se dela de um crime de peculato, por exemplo, numa carta anónima. A pessoa vai prestar declarações e, por uma opção errada do CPP, é imediatamente constituída arguida... O CPP acha que deve ser assim, para defender as pessoas...

Não concorda que seja assim...

Rogério Alves - Claro que não...

Está prevista uma alteração na reforma do Código de Processo Penal...

Rogério Alves - Vão ser feitas alterações, mas muito tímidas... A constituição de arguido depende um bocadinho do procurador... um bocadinho, porque a lei é clara...

Maria José Morgado - Depende também do bom senso...

Rogério Alves - Se o processo corre contra alguém, esse alguém tem de ser constituído arguido logo que é ouvido. Significa: se alguém for a um OPC e puser lá um papel a dizer que A agrediu B - o A deve ser constituído arguido antes de começar a prestar declarações. Quando começa a prestar declarações...

Ricardo Cardoso - Isso tem uma razão de ser...

Rogério Alves - Tem... até para que possa dizer que não deseja prestar declarações... Mas pode dizer: "Eu não posso ter agredido essa pessoa porque nesse dia até estava na China... dêem-me um tempo que já apresento os bilhetes de avião, o passaporte, etc." O problema é que, se este processo demorar quatro ou cinco meses a ser arquivado - as provas têm de ser analisadas, obviamente -, durante esses meses a pessoa é arguida no processo de agressões. Sempre que lhe apeteça dar um ar da sua graça em público, aparecerá sempre alguém a recordar: "Este senhor doutor é arguido num processo de agressões..." As pessoas reagem: "Este rapaz até fala bem... mas bater no outro é que não lhe fica nada bem..."

É um método de aniquilamento?

Rogério Alves - Os políticos descobriram esta forma de se atacarem... Temos uma metodologia que, quando se aproximam eleições...

Isso acontece porque a lei não permite que as pessoas envolvidas no processo possam defender-se publicamente...

Rogério Alves - Se o autarca é acusado pela vox populi de desviar dinheiro para a sua conta pessoal, havendo a possibilidade de o MP o acusar dali a três ou quatro meses, esse autarca pode dizer que a acusação é uma mentira. As pessoas, num debate público, podem dizer porque é que o acusam, e ele pode dizer porque é que é mentira...

O que se ouve é as pessoas dizerem que não comentam porque o assunto está em segredo de justiça...

Rogério Alves - Em Portugal, o segredo de justiça como que absorveu, sugou, os assuntos... As pessoas não falam. E, como não falam, o assunto fica latente, e as pessoas ficam dependuradas na sua posição de arguido durante meses, anos ou décadas...

Há direitos humanos em questão?

Rogério Alves - É muito difícil defender os direitos humanos em Portugal. Alguém está numa televisão a defender um arguido e, por trás do ecrã, passam imagens de crimes. As pessoas estão em casa, a tomar o pequeno-almoço, e dizem: "Lá estão os advogados a defender A, B e C... não têm vergonha..." Nunca passam no screen um acusado inocente, um condenado reparado pela justiça. Passam sempre figuras que são o paradigma conceptual da desonestidade e que estão sempre a acompanhar, em espécie de banda desenhada, as nossas defesas dos direitos humanos.

Haverá algum dia consenso sobre a publicidade na justiça?

Ricardo Cardoso - A publicidade não é um problema só nosso. É uma questão transversal a todos os sistemas judiciais, sejam eles quais forem. Nos EUA, por exemplo, todas as pessoas sabem que na Califórnia os julgamentos são em directo. Mas não se passa o mesmo na Costa Leste, em que aparecem aqueles senhores a fazer desenhos da audiência, porque lei proíbe a captação de imagens. Os Estados de Leste, de influência inglesa, mantêm a audiência à porta fechada. Sobre o que se passa nas investigações a informação é mínima. O que se passa dentro do julgamento é proibido noticiar.

Rogério Alves - Há matérias nos processos que não estão sujeitos a segredo de justiça. Se me escreverem uma carta a ofender violentamente, e depois apresento queixa, esta carta não está em segredo de justiça... A pessoa que escreveu pode também ser entrevistada. O que não posso dizer é o que está nos autos, o que a polícia investigou...

O que pode ser noticiado?

Rogério Alves - Escutas telefónicas como aquelas que hoje aparecem nos jornais [sobre o caso Portucale] não deveriam ter sido publicadas, assim como a identidade de testemunhas protegidas, vítimas de crimes sexuais. Diligências que a polícia realiza com autorização do MP ou do juiz de instrução, daquelas consideradas essenciais para as investigações, também não devem ser divulgadas...

Ricardo Cardoso - Estamos totalmente de acordo.

Rogério Alves - E, portanto, acabava-se com isto...

Porque é que não se acaba?

Rogério Alves - Porque o CPP não diz...

Ricardo Cardoso - Não acho que seja só por isso...

António Cluny - Não diz, e não se quer que acabe...

Juiz António Martins, uma pequena síntese para finalizar?

António Martins - O papel da comunicação social é fundamental. Mas deve informar com mais rigor, mais isenção, menos sensacionalismo e menos perspectiva de exploração da notícia. Por sua vez, os tribunais, têm de ter uma abertura maior, percebendo que isso é positivo para a comunicação com o povo. Tem de encontrar mecanismos para descodificar a sua linguagem através de gabinete de comunicação. O CSM tem de alterar a sua ligação com a comunicação social.

António Cluny - Entendo que é preciso maior profissionalismo por parte da comunicação social, designadamente no jornalismo judiciário, aquele que se encarrega de relatar o desenvolvimento dos processos. É preciso maior preparação, maior isenção dos jornalistas que fazem jornalismo judiciário e melhor capacidade de prestação informativa por parte do sistema judiciário.

Maria José Morgado - Não me sinto à vontade para falar do assunto.

Acha que não faz sentido este tema?

Maria José Morgado - Não é não fazer sentido. Acho que ninguém consegue dizer nada de forma objectiva e serena sobre isto...

Porquê?

Maria José Morgado - Do lado do jornalismo há, de facto, um negócio e há disputa de poderes - poderes económicos e poderes políticos e outros - e muita outra coisa subjacente a isso de que ninguém fala. Hoje, há medo de dar certas notícias, e ninguém as dá. E teriam grande repercussão e importância - não me pergunte quais, porque não vou dizer.

E do lado dos tribunais?

Maria José Morgado - Porque, além do negócio, há o domínio de certos poderes económicos na comunicação social, não vamos ser ingénuos. Do lado dos tribunais, há a questão da afirmação da autoridade, o que num Estado de direito é decisivo, não podemos subestimar isso. Os magistrados vêem-se desfigurados no espelho da comunicação social.

DN, 29-6-2007
 
O SEGREDO DE JUSTIÇA ESTÁ BEM COMO ESTÁ

João Marcelino
director

Omundo dos media é de consumo rápido e vive numa corrida permanente contra o relógio. A Justiça, ao invés, precisa de tempo, de respeitar compassos próprios. Pelo meio impõe-se a crescente necessidade de informação mas também o direito de todos os cidadãos ao seu bom-nome. Como resolver, melhor, como atenuar, este permanente foco de conflito em que o segredo de justiça é muitas vezes atropelado "lá" dentro e ignorado "cá" fora?

A receita dos nossos convidados para a virtual resolução do problema apareceu mais ou menos consensual: os media têm de apurar o seu sentido de responsabilidade e seguir os códigos éticos e deontológicos que regem a profissão - e não são poucos; a Justiça tem de exigir igualmente a todos os que lidam com os processos o cumprimento escrupuloso da lei - porque a devassa a que às vezes se assiste é intolerável.

No caso concreto do segredo de justiça mereceu consenso o entendimento de que a lei está bem como está, e só tem de ser cumprida. Seria errado, como pretendem alguns políticos, fechar a lei em torno da proibição explícita aos jornalistas. Hoje, com o triunfo da Internet, sendo cada cidadão um potencial jornalista com efectiva capacidade de publicar, não faz sentido que a lei, incapaz de se fazer cumprir a montante, julgue poder resolver o problema elegendo o jornalista como garante do silêncio que devia ser cultivado por quem de direito.

A qualidade da democracia não teria nada a ganhar se chegasse o dia em que os media censurassem matérias ao alcance de todos e discutidas por todos.

DN, 29-6-2007
 
Novo mapa judiciário desenhado à margem dos problemas reais dos nossos tribunais

Juiz António Martins, como é que vê esta ideia de que os magistrados resistem bastante à mudança?

António Martins - Não tenho feedback dessa resistência, nomeadamente resistência às formas processualmente abreviadas de fazer justiça. As estruturas da justiça podem é não estar devidamente adequadas. O legislador tem feito leis mas não tem encontrado sistemas adequados de organização e gestão da justiça. No pacto, a nova organização do mapa judiciário parecia uma belíssima ideia mas agora espero que não vá descambar para essa péssima ideia das NUT. É uma coisa inacreditável como se consegue vender este conceito sem justificar o produto. É pensar que se pode dividir o mundo judicial por NUT definidas por critérios de captação de fundos comunitários, portanto isolando aspectos sociais, aspecto demográfico e aspectos de oferta e procura. Dizer que isto é o adequado para a justiça necessita de demonstração e essa demonstração não está feita. Nuns casos a organização ficará com as mangas curtas devido a uma dimensão territorial enorme.

Ricardo Cardoso - Mas, traduzindo, isso torna a justiça mais acessível aos cidadãos?

António Martins - Não, não torna. Isto não permite racionalidade do sistema. Por isso propusemos no documento que apresentamos que, em vez de se partir para um sistema completamente novo, se parta do modelo actualmente existente. Não é o melhor mas é o que deve ser racionalizado, até porque é aquele que todos nós conhecemos. Racionalizando o sistema, obtemos ganhos de produção.

Maria José Morgado - Tem de haver alguma alteração porque isto está completamente desequilibrado. Enquanto há tribunais que recebem 500 inquéritos por ano há outros que recebem 90 mil.

Mas como é que se resolve o problema?

Maria José Morgado - Estabelecer um equilíbrio de acordo com as pendências.

Ricardo Cardoso - Se não for feito conjugadamente com a reforma do cível, do penal, as coisas acabam depois por não ter possibilidades práticas de funcionarem completamente. É preciso conceber o todo, não é conceber cada uma das questões e depois ir ao todo, porque assim dá um Frankenstein. Não pode ser às peças.

Almeida Rodrigues - Perdoem-me que puxe à minha brasa. Mas a PJ pode servir de modelo nalgumas coisas na justiça. No recrutamento, exigimos licenciatura para a categoria de base. Depois esses funcionários, além da prova escrita, que é corrigida sem que haja conhecimento da identidade do autor, tem também de fazer provas psicológicas, que são eliminatórias. E há formação permanente. Este exemplo podia ser transposto para a magistratura. No tocante ao mapa judiciário, se virem a implantação territorial da PJ, reparam que se tem em conta a população, os índices de criminalidade mas também as acessibilidades. Hoje temos de pensar no mapa rodoviário. Temos também em conta que por vezes a proximidade pode não ser muito boa. Alguns casos recentes de corrupção e peculato foram investigados por equipas de longe.

António Cluny - Sobre o mapa, ou está implícita uma reforma que não conhecemos ou começar pelo fato não tem sentido. As grandes reformas do século XIX foram pensadas de forma integrada. Por exemplo, temos de pensar se com este modelo de NUT faz sentido ter os tribunais da Relação como temos. Tudo isto parte de uma ideia-base: por um lado, especialização; por outro, proximidade. Para já, parece-me que não há nenhuma opção definitiva, embora se saiba que já há equipas no terreno.

Ricardo Cardoso - E pode tudo ser inútil, se for declarado inconstitucional, dado o princípio da inamovibilidade dos juízes.

Rogério Alves - Concordo com a revisão porque não há adequação entre oferta e procura. Condição é a tomada de medidas que consigam estacar litígios inúteis. Exemplo dessas medidas: o que se fez com os prémios dos seguros. Uma medida inteligente e não lesiva: paga o prémio, renova-se o seguro; não paga, não se renova o seguro. Na modalidade antiga ia tudo para tribunal. Acho ainda que o mapa judicial tem de implicar do Estado um reforço do investimento na área da justiça. Não pode ser construído para espalhar algumas coisas, deixando algumas pessoas longe da justiça. É para entrar em vigor só em 2015 e portanto temos algum tempo.

António Martins - Os juízes são os primeiros a estar interessados numa reforma do mapa judiciário. Temos a plena noção de que o sistema judicial não responde às necessidades dos cidadãos e isso reflecte-se negativamente na imagem dos juízes. O que dizemos é que é preciso debater seriamente a solução das NUT e não dá-la por adquirida. Não se pode fazer como o Governo está a fazer que é ir ao pronto-a-vestir e comprar um fato. Tem de ser construída uma peça de ourivesaria. A chave é construir-se a partir do círculo judicial actual.

DN, 29-6-2007
 
UMA REFORMA NECESSÁRIA MAS DELICADA

Ana Sá Lopes
jornalista
ana.s.lopes@dn.pt

A reforma do mapa judiciário é urgente: não faz qualquer sentido o sistema em vigor das 233 comarcas, que, tal como Maria José Morgado assinalou no debate DN, tem como resultado um quadro absolutamente desequilibrado, com disparidades de "trabalho" que são também responsáveis pela má distribuição de recursos e pela ineficácia da justiça. Alguma coisa tem de ser feita e nisso todos os protagonistas estão de acordo: não é possível manter o que existe, com tribunais a trabalharem 500 inquéritos e outros a receberem 90 mil.

A alteração do mapa judiciário é uma grande reforma estrutural necessária, que, aliás, é consensual entre os dois maiores partidos: foi acordada no Pacto para a Justiça que PS e PSD assinaram num momento de tréguas Governo-oposição. Mas, como qualquer outra grande reforma, ameaça ser extremamente dolorosa. O encerramento das maternidades e de escolas primárias já foi sintomático da delicadeza de um processo que, em nome de uma necessária optimização dos recursos, acaba a introduzir factores de exclusão numa parte do País que, um dia qualquer, "muda-se" para Espanha. O País do interior será penalizado com um acesso muito mais difícil à justiça, caso a reforma do mapa judiciário vá em frente - e nada indica, atendendo ao acordo assinado entre o PS e o PSD, que não vá. António Cluny chama a atenção para isto: poderá haver menos justiça. Com a redução da proximidade da justiça, o risco de redução do direito é grande. E, naturalmente, com a proposta de revisão do mapa, a proximidade da justiça, que é um valor para o exercício do direito à justiça, sofre um corte substancial. Importa que a reforma não seja feita a régua e esquadro, instrumentos que, só por si, não são garante da igualdade dos cidadãos - nomeadamente dos que vivem naquele "outro país" que fica longe do mar.

DN, 29-6-2007
 
Pacto da justiça é uma boa ideia mas avançou sem substância

moderação: JOÃO MARCELINO, RUI HORTELÃO, ANA SÁ LOPES E MARTIM SILVA textos João Pedro Henriques e LIcínio LIma

Há nove meses os políticos dos maiores partidos, PS e PSD, fizeram uma coisa rara, um pacto de regime, o chamado pacto da justiça, que apareceu com o patrocínio, ou pelo menos o beneplácito, do Presidente da República, e como uma chave para resolver a crise da justiça. Já ouvimos o primeiro-ministro dizer que os diplomas estão há uma série de tempo a marinar no Parlamento e era preciso acelerar a aprovação do Código Penal e do Código de Processo Penal. Gostava de ouvir uma avaliação deste pacto, nomeamente nas mudanças previstas para a prisão preventiva, escutas telefónicas, alterações de penas de prisões.

Ricardo Cardoso - As mudanças legislativas em Portugal operam-se sempre a reboque da comunicação social e dos casos que vão sendo postos na agenda. Quando foge um padre para o Brasil, muda-se imediamente a legislação da liberdade condicional. As coisas acontecem com uma agenda marcada desta forma em vez de ser uma agenda marcada pela ponderação e cuidado na harmonização de todo o sistema. O direito é cada vez mais chamado a casos cada vez mais novos: as coisas mais variadas, da bioética às mães de aluguer, etc. Tanto que tem havido uma discussão, teórica, sobre se vivemos o tempo do apogeu do direito ou do seu suicídio. Neste quadro, chegamos a um ponto, depois de uma caminhada iniciada em 1974, em que as relações entre o poder judicial e o poder político estão hoje muito mais complicadas do que há uns anos. Não é só um fenómeno nosso. Existe um conflito entre o poder económico, o poder político e o poder judicial. Esta tensão é sentida a partir do momento em que, a seguir à resolução do problema do terrorismo, nos anos 80, comum à generalidade da sociedade europeia, se começou a verificar o aparecimento de determinado crime económico, os ilícitos de capitais, depois os tráficos de droga e de armas e de outras coisas. A partir do momento em que começaram a investigar estes crimes, o poder económico, surge também, colateralmente, o fenómeno da corrupção dos titulares de cargos políticos. É a partir desse momento que se começa a assistir a uma reacção do poder político contra o poder judicial. É o tempo da agressão aos juízes com a acusação de que eram protagonistas, da denúncia do vedetismo. Isto é uma coisa extraordinária: é pensar que os juízes podem escolher os seus arguidos. Conhecemos ao longo da experiência comparada destes países - Itália e Espanha, por exemplo, mas também em França - o incómodo que o poder político sentiu e as alterações que foi introduzindo nos vários sistemas judiciais, e sempre no sentido da limitação dos poderes dos tribunais. Aqui em Portugal, não é por acaso que depois de se saber que determinado político ou ministro foi preso ou escutado ou isto ou aquilo, surgem imediatamente propostas de alteração legislativa para que os titulares de cargos políticos passassem apenas a ser investigados em segunda instância, introduzindo-se aqui a noção de que a lei é igual para todos menos para uns, que são autênticos aristocratas julgados à parte. A ideia não passou mas também não deixou de ser debatida. E deixa antever quais são os tipos de preocupação e porque é que são ditadas para o debate questões como as do segredo de justiça, e as alterações das penas de prisão, que serão as maiores alterações nas propostas legislativas.

António Cluny - O pacto foi útil porque teve a vantagem de moderar uma crispação que era extraordinariamente forte. Baixou a fervura - e isto independentemente das propostas que lá vinham. Qualitativamente, o pacto é fraco. É um documento desequilibrado, com pormenores muito grandes numa área e princípios gerais noutra. Mas mais grave foram as soluções técnicas, para efeitos do sistema penal que dali resultaram. A reforma processual penal vai até, de certa forma, em contraciclo com a evolução da criminalidade actual. Temo que algumas das medidas previstas possam, a médio prazo, criar situações complicadas, a nível da percepção pelos cidadãos da eficácia dos tribunais. A reforma é extraordinariamente liberal nalguns aspectos, mas estas reformas feitas assim têm tendência a ter um efeito de pêndulo, ou seja, passado um tempo funcionará em sentido contrário, caminhando para medidas extremamente restritivas. Estou a falar nos prazos da prisão preventiva, nos prazos do segredo de justiça interno. Há soluções em concreto que podem produzir efeitos extraordinariamente nocivos e tanto é assim que o Parlamento tem tido dificuldade em lidar com esta realidade. Apesar do apelo do primeiro-ministro, a verdade é que sabemos que será feito um esforço para até ao final da legislatura discutir o Código Penal. No Processo Penal já se percebeu que isso não é possível. Há aqui todo um atamancar de prazos que não tem permitido encontrar as melhores soluções técnicas.

Rogério Alves - A concepção de um acordo é uma coisa boa porque há reformas que precisam desta coisa muito estafada que é algum consenso e alguma paz. O sistema de justiça não se pode alterar como se alteraram as torres de Tróia: faz-se a demolição e constrói-se do zero.

Ricardo Cardoso - Mas também demoraram 20 anos a vir abaixo...

Rogério Alves - Pois, pois, exacto. Mas precisamos de continuar a operar enquanto o sistema se muda. Quando um Executivo - não necessariamente este - está a executar uma reforma do sistema de justiça, há medidas estruturais que atravessam vários mandatos. Se estamos sempre aos ziguezagues, se andamos três quilómetros para a direita e depois voltamos cinco quilómetros para trás, depois optamos por terra batida, depois alcatrão e depois macadame, aí nunca mais conseguimos ir a lado nenhum. É bom haver uma aquisição, nomeadamente político-partidária, de linhas de orientação. Depois nem só de processo penal vive o pacto. Há uma coisa que o pacto prevê e que é a intervenção na acção executiva. Hoje o Estado português não sabe executar as suas sentenças. Temos um Estado meio paralítico que não executa as suas sentenças. Estou a falar da justiça cível, das cobranças de dívidas, que são mais de 50 por cento das acções, e estou a falar da justiça penal. O pacto ora vai a grandes detalhes nalgumas matérias, ora é muito programático noutras. E há uma coisa em que o pacto não fala directamente e sem a qual a nossa justiça não vai a lado nenhum: a simplificação das nossas leis processuais penais e cíveis. Têm complicações próprias de um sistema que tem poucos processos, mas nós temos muitos. Temos formalidades dentro de cada processo incompreensíveis. Cada processo tem de demorar muito menos e isso passa por uma coisa muito temida: dar mais poder ao juiz. Por exemplo: concordo genericamente com a redução dos prazos do segredo de justiça. Mas nalguns casos em que esse segredo não possa ser levantado porque há uma perícia essencial que não foi feita, o juiz tem de ter o poder de não deixar levantar o segredo de justiça. Isto é que é uma justiça onde o homem vai controlando o efeito da lei e não onde a lei vai impedindo que o homem seja sensato. A complexidade atrai complexidade: se eu soube que um processo demora, aposto no processo como factor dilatório; mas se eu souber que o processo é rápido, eu não aposto no processo como factor dilatório - logo haverá menos processos. Há uma revolução que tem de ser feita e não está a ser feita, que é a da simplificação processual. Em Portugal tem de haver restrição no acesso dos recursos ao Supremo porque senão qualquer dia temos um Supremo com 500 conselheiros - e creio que já temos um dos maiores da Europa, se não mesmo o maior. Mas em contrapartida temos de ter um julgamento em segunda instância que analise matéria de facto. Como: através, por exemplo, da utilização da matéria áudio e vídeo. Já agora, sublinho que também fui contra essa proposta, completamente sem sentido, de colocar algumas pessoas a serem investigadas por um tribunal superior.

Como se sente quem está no terreno, perante este acordo?

Almeida Rodrigues - Algumas soluções podem ajudar a investigação criminal, por exemplo a possibilidade de buscas nocturnas. É positiva também a possibilidade de obter a localização celular dos telemóveis. Penso que se poderia ter aproveitado o pacto para, nalgumas matérias, ir mais longe e simplificar as coisas. Os meios audiovisuais deveriam poder ser mais aplicados ao processo penal. Se o interrogatório de um arguido pela polícia pudesse ser filmado, e se essa filmagem pudesse ser exibida em audiência de julgamento, isso evitaria muitos problemas, nomeadamente a desconfiança face à polícia. Talvez se pudesse ter ido um pouco mais longe.

Porque é que não se foi nesse sentido?

Almeida Rodrigues - Não sei.

Rogério Alves - Receio que tenha sido falta de meios, provavelmente. Creio que não foi nenhuma opção ideológica. Parece-me, parece-me...

António Cluny - Há problemas que é preciso resolver na investigação, mas grande parte dos problemas passa-se já na parte do julgamento. É inadmissível poderem existir julgamentos com 800 testemunhas. Isso descredibiliza todo o funcionamento do sistema de justiça. Sobre toda essa área não há praticamente propostas. As propostas não tiveram por base uma reflexão profunda sobre os problemas que realmente existem. Por exemplo, há uma ilusão permanente em Portugal de que existe excesso de prisão preventiva - e eu até sou favorável à diminuição dos prazos. Mas toda a gente sabe que nós contamos a prisão preventiva de uma forma diferente dos outros países, o que nos dá um acréscimento de 40 por cento de prisão preventiva em relação aos outros.

Ricardo Cardoso - Exactamente. No sistema anglo-saxónico, o indivíduo no momento em que é condenado já se presume culpado porque já não se presume inocente. E então considera-se imediatamente em cumprimento de pena.

António Cluny - Lidamos com realidades que não são científicas. Avança-se para uma reforma com base em duas ou três ideias feitas, algumas correctas e outras não, mas sem se fazer um levantamento real dos bloqueios do sistema. Por exemplo: propõe-se a possibilidade de no inquérito as testemunhas serem assistidas por um advogado. Mas não se permite que esse depoimento - que até já foi assistido por um advogado e que o advogado atesta - possa ser confrontado em julgamento. Mais uma vez se esquece que a parte fundamental do processo é de facto o julgamento. Mais uma vez parece - e acabamos por dar assim razão à comunicação social - que a fase nobre é a da investigação. Isto é absolutamente impensável.

António Martins - Quanto ao pacto da justiça, já tive uma opinião mais positiva do que tenho hoje. Está com quase um ano de vigência e as consequências práticas são zero. O que me levava a ter uma visão positiva do pacto era a perspectiva de estabilidade nas políticas legislativas. Mas começo a verificar aspectos negativos. Há aspectos preocupantes na área cível - que não é a justiça mediática. Se o senhor primeiro-ministro já tivesse percebido que se os tribunais cíveis funcionassem bem podiam ser um factor extremamente importante para a melhoria da economia, se calhar já tinha dado condições para funcionar. Em Julho de 2006, a Associação dos Juízes apresentou um relatório sobre os bloqueios da acção executiva. Onze meses depois, nada foi implementado e não nos dizem nada. Há uma incapacidade de legislar nestas matérias essenciais. Outro problema é o de pôr os tribunais de comércio, que tratam das insolvências, a funcionarem adequadamente. A própria lei precisava de melhoramentos. Ninguém tem resposta para uma pergunta: em que medida é que o mau funcionamento da justiça cível leva empresários, grupos económicos e outras entidades com dinheiro para investir a pensarem seriamente em não o fazer. Em que medida é que isto afecta ou não a capacidade de o país produzir riqueza? Temos senhorios com despejos decretados no tribunal há dois, três anos e as sentenças não são executadas. Às vezes as pessoas partem para a acção directa e isso gera mais processos, criminais. Outra matéria: está no pacto, em parte até de forma correcta, a revisão dos recursos em processo civil. Mas o que está no pacto é diferente da lei de autorização legislativa do Governo aprovada na Assembleia. Essa lei vai dar origem a questões gravíssimas. Os recursos demoram quatro a seis meses, segundo estudos feitos. Agora, introduzindo as mudanças, os recursos irão diminuir mas cada recurso que subir até lá acima em vez de ter uma matéria terá dez, vinte ou trinta. O que é fantástico é não haver a capacidade de percepção disto.

Ricardo Cardoso - Para que as pessoas compreendam: a área do cível é a área principal da pendência processual. É aí que se discute o essencial deste país, que é o sobreendividamento das famílias.

António Martins - Na reforma do código penal, a proposta que existe não vai alterar significativamente a situação actual. Nem é esse o objectivo. Em termos de processo penal vejo isto como, mais uma vez, uma oportunidade perdida. O que há aqui é um problema, que é este: a ideia de obter celeridade, eficácia e credibilidade não vai ser conseguida. Não vamos ter celeridade por uma razão: o processo penal como está construído é demasiado formal. Fazemos um inquérito com uma formalidade enorme que depois, no julgamento, não nos serve para nada. Fazemos recolha de prova que, por razões meramente formais, é completamente deitada abaixo, nas escutas, por exemplo. Conta mais a forma do que a substância. E não vamos obter credibilidade porque vamos continuar a ver absolvições e processos a arrastarem-se indefinidamente e vamos continuar a ter aquilo que é grave para o cidadão: a ideia de que o poderoso - económico, político - consegue safar-se e que o cidadão comum paga as consequências.

Drª Maria José Morgado, é uma oportunidade perdida?

Maria José Morgado - Concordo com o dr. Martins nessa parte. Receio bem que daqui por uns anos estejamos a fazer marcha atrás. Na justiça penal, coisas como escutas e dados de tráfego só são importante para um certo tipo de criminalidade, que tem características de organização, mobilidade, invisibilidade, e que por isso goza de imunidade privilegiada à devassa das instâncias de controlo. Há aqui no Código de Processo Penal uma reforma ao contrário de tudo quanto está a suceder na Europa, como se não tivesse acontecido o 11 de Setembro. Isto era uma justiça certa nos anos 80. É uma reforma inconsequente, nessa parte. Tem partes boas para o combate à pequena e média criminalidade. Mas quanto aos fenómenos de criminalidade altamente organizada, ritualiza excessivamente os actos do inquérito, sem permitir a sua validade em julgamento, portanto cria duas realidades disfuncionais que vão agravar os problemas de morosidade e eficácia. Faço notar que na proposta lei das prioridades da investigação criminal se considera a utilização da Internet e da informática como meios complexos, exigindo por isso métodos especiais no seu combate. Mas no Código de Processo Penal não se permite que a polícia tenha acesso aos dados de tráfego da Internet sem autorização de um juiz, salvo em caso de perigo de vida e para a integridade física e isso tem de ser validado em 24 horas. Constata-se que a par do agravamento das formas de sofisticação da criminalidade temos um código de processo penal que limita a recolha da prova e até permite a perda da prova e que afasta cada vez mais os órgãos de polícia criminal dos cenários de recolha de prova. Isto é uma ficção! E revela ignorância sobre o funcionamento das polícias. Estamos a criar situações burocráticas em sede de inquérito que vão prejudicar o combate ao crime grave. E depois vamos investigar senhoras que tiraram um creme de três euros num supermercado e vamos ritualizar isso ao máximo, como se as pessoas estivessem a arriscar 25 anos de prisão. Mas é claro que devemos reconhecer que agora a política criminal já não é feita de amnistias aprovadas de dois em dois anos. Já não há uma desde 1999. Só para concluir: a verdadeira reforma, a verdadeira mesma, é quando se criarem novas formas de gestão dos tribunais, especialização, gestão por objectivos, uma reforma que conduza ao empenhamento de todos.

DN, 30-6-2007
 
A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO CONSTANTE

João Marcelino
director

Ficou claro que, vista de dentro dos tribunais, a idade dos juízes não é encarada como um problema, o que, de alguma forma, contraria a opinião de muitos cidadãos, para quem um rosto jovem é muitas vezes um rosto "perigoso" de alguém sem experiência da aplicação das leis, não conhecedor da vida e com alguma falta de mundo.

Os magistrados concordaram, no entanto, em que esta é uma questão menor, sobretudo quando equacionada no âmbito dos grandes problemas do sector.

Entendem que o exercício das funções continua a permitir uma progressão equilibrada no sentido do ganhar de experiência.

É uma opinião curiosa, que talvez não repetissem a propósito de governantes, de jornalistas, de professores e, de uma maneira geral, de outros cidadãos com responsabilidades de decisão ao mais alto nível - mas a verdade é que desde a separação das duas magistraturas não parece haver outra maneira de dar experiência que não no local de trabalho e em contacto com o mundo dos casos que diariamente surgem para julgamento.

Nenhum dos nossos convidados sugeriu qualquer reforma neste campo. Antes pelo contrário: chamaram a atenção para o facto de um tempo de espera na entrada na profissão beneficiar sobretudo os grandes escritórios de advogados, que logo disputam os melhores estudantes em prejuízo do CEJ.

Isso sim, há que abrir a carreira a pessoas oriundas de outras áreas que não apenas do direito e apostar, como é imperioso em todas as profissões, numa selecção criteriosa e numa formação constante.

O tempo em que o banco da escola preparava para toda a vida é um mito, mesmo nos tribunais...

DN, 30-6-2007
 
O SONHO DE UMA MUDANÇA CONCRETA

Rui Hortelão
director adjunto
rui.hortelao@dn.pt

Oacto de um governo ter a necessidade de definir as prioridades da investigação criminal é sempre um sintoma de que nem tudo está bem. Ou porque quem governa entende que quem investiga aplica mal a liberdade que tem para fazer o seu trabalho ou, pelo contrário, porque não resiste à tentação de politizar as investigações.

No futuro se saberá para que lado vai pender mais, na sua aplicação prática, a Lei-Quadro de Política Criminal (Lei n.º 17/2006), a aguardar discussão na especialidade na Assembleia da República.

Em tom mais ou menos crítico, os convidados do DN são unânimes: a nova lei, mais do que perigosa para a autonomia da justiça, é "inútil". Maria José Morgado assume que as prioridades vão continuar a ser definidas no terreno, ao arrepio de qualquer lei. Já Almeida Rodrigues até admite que a PJ cumpra as prioridades impostas pelos órgãos de soberania, mas alerta que quem investiga pode, com esta lei, perder a proactividade anticrime e ter tendência a só cumprir formalidades, para garantir que não é mal avaliado. Uma hipótese que a natureza humana deixa a um pequeno passo da mais banal realidade.

Além disso, para que a nova lei traga vantagens efectivas ao sistema judicial não chega que inspectores e magistrados investiguem com critérios mais direccionados. Sem estarem criadas as condições para os tribunais darem a resposta adequada ao escoamento de processos, o avanço da justiça continuará a ser feito num ritmo solavancado, em que só o brio profissional de alguns polícias, magistrados, juízes, advogados e políticos alimenta o sonho de uma mudança concreta.

DN, 30-6-2007
 
"A revisão das leis é só o início da reforma, cujo sucesso depende das práticas judiciais"

RUI HORTELÃO

Entrevista com Rui Pereira, ex-presidente da Unidade de Missão para a Reforma Penal

Maria José Morgado diz que o novo Código Penal "cria duas realidades disfuncionais", o inquérito e o julgamento. Aceita a crítica?

A pretensa relação disfuncional entre o inquérito e o julgamento resulta, no fundo, da estrutura acusatória do processo penal, que é garantida pelo artigo 32.º, n.º 5, da Constituição. Quem acusa não julga e toda a prova, em regra, tem de ser produzida ou apresentada no julgamento para se exercer o contraditório. É este o preço que se paga para salvaguardar a presunção de inocência. Mas esse preço deixa, por vezes, um sabor amargo na opinião pública, nas polícias e nas autoridades judiciais.

O juiz Ricardo Cardoso considera impossível punir jornalistas por violação do segredo de justiça, mesmo com as alterações do Código de Processo Penal. Concorda?

A grande alteração que se faz ao regime do segredo de justiça consiste em esclarecer que todas as pessoas que, em alternativa, tomem contacto com o processo ou tenham conhecimento de elementos dele constantes estão sujeitas ao segredo. Por essa razão, todas elas poderão cometer o crime de violação do segredo de justiça. Mas é claro que se ressalvam as investigações jornalísticas autónomas, ainda que atinjam resultados idênticos aos constantes do processo.

Por outro lado, há quem veja nesta Reforma Penal uma limitação à liberdade de imprensa. Com a nova lei os jornalistas correm mais riscos de ser condenados por violação do segredo de justiça?

Atendendo à definição do âmbito subjectivo do segredo de justiça, aumenta a possibilidade de terceiros, incluindo jornalistas, serem condenados por violação do segredo de justiça. Todavia, deve recordar-se que o âmbito objectivo do segredo é restringido, e reforçando-se o princípio da publicidade mesmo na fase de inquérito. A publicidade só é excluída quando puser em causa a investigação criminal ou direitos fundamentais.

Foi unânime que a justiça só teria vantagens em ter porta-vozes destacados para comunicar mais regularmente com os media. Qual é a sua opinião?

Concordo com a ideia de que é necessário criar uma relação mais fluente entre a justiça e os media. Na reforma do Código de Processo Penal de 1998, já se abriu a possibilidade de prestar esclarecimentos para a defesa da paz pública ou do bom nome das pessoas. Porém, é preciso ir mais longe. Hoje os cidadãos sentem a justiça como uma questão que lhes diz respeito e não há nenhuma razão para os privar da informação relevante e até da possibilidade de apreciarem o sentido e a justiça das decisões dos tribunais.

Maria José Morgado considera inconsequente a reforma que está em discussão na Assembleia da República, nomeadamente em relação ao terrorismo e à criminalidade violenta. Aceita a crítica?

Considero que a Lei-Quadro da Política Criminal e a respectiva lei de execução para o próximo biénio são de grande utilidade. Como é sabido, os meios materiais e humanos do sistema de justiça são limitados e nem todos os crimes são perseguidos ou punidos. Por isso, é necessário definir com clareza quais são as prioridades no âmbito da prevenção e da investigação criminal. O n.º 1 do artigo 219.º da Constituição pressupõe que essa responsabilidade é dos órgãos de soberania - a Assembleia da República e o Governo. Ora, esses órgãos de soberania assumiram pela primeira vez essa responsabilidade, o que não põe em causa a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público, visto que não há interferência em processos concretos.

A magistrada defende ainda que a alteração do CPP "limita e dificulta a recolha de prova, pois afasta a polícia do local do crime" com as "complicações burocráticas que impõe". Mais uma vez, aceita a crítica?

Creio, pelo contrário, que as alterações ao Código de Processo Penal facilitam a actividade da polícia. Essas alterações admitem a produção de prova através do reconhecimento fotográfico e dos exames pessoais, prevêem, de acordo com a Constituição, as buscas nocturnas em situações excepcionais e clarificam o regime das escutas em vários aspectos. Também no âmbito das medidas de polícia, o regime da localização celular, por exemplo, constitui um progresso, que permite socorro de pessoas em perigo para a vida ou para a integridade física, por sua iniciativa, com posterior controlo pelo juiz.

António Cluny prevê maiores dificuldades para a investigação, porque por exemplo "alguns dos prazos previstos para certas peritagens são impossíveis de cumprir com os meios disponíveis em Portugal?

Em geral, não foram alterados os prazos no Código de Processo Penal. Apenas foram diminuídos, de forma limitada, os prazos de prisão preventiva. Neste aspecto, teve-se em conta que o arguido ainda é um presumível inocente e que esta medida tem carácter excepcional. Por outro lado, atendeu-se à recomendação do Congresso da Justiça.

No inquérito continua a ser proibido filmarem-se os interrogatórios e apresentarem- -se depois em julgamento. Segundo Almeida Rodrigues, isto contribui para uma "realidade disfuncional" entre o inquérito e o julgamento, visto que, em tese, tudo o que é feito no inquérito pode não servir para nada no julgamento. Como se resolve?

A prova produzida num inquérito apenas é utilizada limitadamente num julgamento, por causa da estrutura acusatória do processo. Apenas se admite a utilização de declarações para memória futura e, no caso do arguido, a utilização de declarações que ele haja prestado perante juiz e sejam contraditórias com as que venha a prestar em julgamento. Uma utilização mais ampla da prova produzida no inquérito em sede de julgamento pressuporia uma reponderação da estrutura acusatória do processo penal português. Tratar- -se-ia, então, de uma ruptura com o actual modelo, que a reforma em curso não quis assumir.

Maria José Morgado queixa-se de que continua a ser muito difícil o acesso aos dados de tráfego da Internet, hoje ferramenta essencial na investigação do crime organizado. Porquê ainda tantas limitações?

O acesso aos dados de tráfego na Internet, de acordo com a clarificação reproduzida no Código de Processo Penal, é possível mediante autorização do juiz, quanto aos crimes que admitem escutas e relativamente a pessoas que podem ser objecto das escutas (arguidos, suspeitos e intermediários). Penso que os maiores problemas resultarão, porventura, da dificuldade de acesso a sites internacionais, dificuldade essa que é imposta por entidades estrangeiras. Por isso, a própria ONU se tem ocupado desta questão.

"O maior imposto que os portugueses pagam é o da corrupção", disse Ricardo Cardoso. Concorda?

A corrupção é, com efeito, um fenómeno criminal que corrói o Estado de direito democrático, se opõe ao progresso e penaliza todos os cidadãos. Não é um fenómeno moderno, uma vez que o crime já era previsto no direito romano, mas atinge hoje, sem dúvida, maiores proporções. Todavia, não se deve deixar passar a ideia de que Portugal é um país de corruptos, porque ela é falsa. No último Relatório Internacional sobre índices de corrupção, Portugal era o 16.º com menor incidência, entre mais de uma centena e meia de países.

António Martins considera que a Reforma Penal "é uma oportunidade perdida". Como presidente do grupo de trabalho que a propôs, apresente-nos os argumentos que melhor ajudam a provar contrário.

Não creio que a Reforma Penal tenha sido uma oportunidade perdida. Para me cingir apenas a alguns tópicos que provam o contrário, direi, por exemplo, que houve uma diversificação das penas não privativas da liberdade, a consagração sistemática da responsabilidade penal das pessoas colectivas, o reforço da tutela penal de vítimas especialmente indefesas, o reforço da punição de fenómenos criminais graves como o tráfico de pessoas e os incêndios florestais, a clarificação do estatuto do arguido e da testemunha, o aprofundamento da intervenção do Ministério Público no inquérito e a simplificação do regime de recursos, com maior intervenção do juiz relator e dos juízes presidentes do tribunais superiores.

Almeida Rodrigues não é tão radical, mas defende que se devia "ter ido mais longe". Se pudesse voltar atrás faria alguma alteração nesse sentido na proposta da Unidade de Missão a que presidiu?

Não julgo que se devesse ter ido mais longe, porque isso significaria uma ruptura. Concordo, no essencial, com a estrutura da Lei Penal Portuguesa e penso que a reforma melhorou essa estrutura, permitindo a todos os agentes judiciais um maior desempenho. Mas não deveremos esquecer que a revisão das leis é apenas o início de uma reforma, cujo sucesso depende das futuras práticas judiciais.

António Cluny disse que já não é possível uma reforma do Código de Processo Penal nesta legislatura [até 2009]. Confirma?

Entendo que esta Reforma do Código de Processo Penal será concluída na presente legislatura. A Lei-Quadro de Política Criminal já está em vigor, a Lei sobre Política Criminal já foi aprovada e o Código Penal sê-lo-á antes do período de férias. O Código de Processo Penal ainda não foi revisto na especialidade, porque o Parlamento não pode, como é óbvio, apreciar todas as propostas do Governo em simultâneo.

Todos concordaram que a definição de prioridades da investigação criminal por parte do poder político é inútil. Não acha que essa deveria ser competência exclusiva dos agentes da investigação?

O poder político não se deve imiscuir na definição de prioridades quanto a processos concretos. Mas a definição de prioridades em abstracto, quanto aos fenómenos criminais mais graves, não só pode como deve ser feita pelos órgãos de soberania. A Constituição di-lo, no n.º 1 do artigo 219.º, e trata-se de um corolário do princípio da separação e interdependência de poderes.

Maria José Morgado considera que sem a melhoria dos meios informáticos do Ministério Público de nada vale definirem-se prioridades de investigação. Concorda que por estarem desactualizados os meios disponíveis podem de certa impossibilitar que se retire o máximo de vantagens da reforma penal em curso?

A melhoria dos meios informáticos é indispensável para tornar mais eficaz a investigação e promover a celeridade processual. Creio que a obra do Ministério da Justiça neste domínio fala por si. Tem sido feito um esforço de simplificação, desmaterialização e modernização informática que merece os elogios mais rasgados.

A acusação de "vedetismo" a alguns magistrados foi comentada como sendo desde há anos uma "arma de arremesso" dos políticos contra os juízes. Qual a sua posição sobre o assunto?

Nunca acusei de vedetismo nenhum magistrado. Creio que o desafio difícil, para qualquer magistrado, é manter reserva e discrição mas conseguir, ao mesmo tempo, comunicar com os destinatários das suas decisões e com a comunidade em geral. Uma sentença também é um acto comunicativo e deve ser compreendida e aceite pela comunidade - e não apenas imposta pela autoridade do Estado.

Na formação dos magistrados, concorda com a lei em vigor, que prevê dois anos em que os licenciados ficam "a apanhar maturidade" (expressão de António Martins)?

Não concordo com o regime em vigor, que aliás julgo estar prestes a ser revisto, embora entenda que é útil os magistrados possuírem uma experiência jurídico-profissional prévia. Essa experiência pode dar-lhes uma visão mais alargada e reforçar a sua capacidade de julgamento.

O novo mapa judicial não corre o risco de mexer com o princípio constitucional do juiz natural (hipótese lançada por Ricardo Cardoso), na medida em que poderá obrigar à transferência de processos de um juiz para outro?

O que me parece ser de realçar é a absoluta necessidade de um novo mapa judicial. A sociedade portuguesa mudou muito nas últimas décadas e a distribuição demográfica é muito diferente daquela que se registava nos anos sessenta ou setenta. A decisão política do Governo foi corajosa e não se pode adiar mais a aprovação de um novo mapa judicial. O princípio do juiz natural só seria provado se, sem critério legal e distribuição, os processos fossem distribuídos à medida a certos juízes, o que certamente não irá suceder. A mera redistribuição já hoje se verifica em muitos casos, sem violação do artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.

O Governo lançou a hipótese de se aprovar uma proposta de lei que obrigasse os autarcas acusados pelo MP a suspenderem o mandato. Muita gente - inclusive do PS - já criticou a proposta, por considerar que ela fere de morte o princípio constitucional da presunção da inocência. Como comenta?

Creio que uma proposta desta natureza deve ser devidamente ponderada. Pelo que foi noticiado, ela criaria um regime idêntico àquele que se consagra constitucionalmente para deputados (após acusação pública e só quanto a crimes dolosos puníveis com prisão superior a três anos). Porém, não conheço um projecto formal nesse sentido.

DN, 30-6-2007
 
Supremo só vai aceitar acções de valor superior a 30 mil euros

LICÍNIO LIMA

O Conselho de Ministros aprovou ontem um decreto-lei que altera o regime de recursos e de conflitos em processo civil. Estando em vigor, só serão recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) as acções com valor superior a 30 mil euros. Aos tribunais da Relação só chegarão casos com valor superior a cinco mil euros. Quando a Relação decidir um caso no mesmo sentido da decisão do tribunal da primeira instância - a chamada a dupla conforme - o processo deixa imediatamente de ser recorrível para o STJ.

Estas novidades ontem aprovadas, previamente discutidas em universidades e noutros meandros académicos, tornam mais difícil a possibilidade de recurso para os tribunais superiores. A anterior alçada do STJ, recorde-se, era de 14 963,94 euros, ou seja, passou agora para o dobro. A Relação tinha uma alçada de 3740,98 euros.

Os tribunais superiores livram-se, assim, das chamadas "bagatelas jurídicas". Note-se que 60 por cento dos processos que anualmente entram nos tribunais referem-se a acções de dívidas e, entre estas, 35 por cento têm uma valor inferior 500 euros.

O novo diploma prevê também que a distribuição dos processos aos juízes, agora feita apenas à quinta-feira, em geral, passe a ser todos os dias, permitindo que se saiba mais rapidamente a que juízo são destinados. Se houver conflito de competências, isto é, se houver dúvidas sobre quem pode julgar determinado caso, deixa de ser necessário formar um colectivo de magistrados para dirimir. No novo diploma prevê-se que o assunto seja imediatamente resolvido pelos presidentes dos tribunais da Relação - ou do STJ, caso o conflito surja na segunda instância.

Os tribunais superiores vão também poder sentenciar a partir de decisões anteriores, quando o permita a simplicidade da causa. Ou seja, esta medida vai evitar que as Relações, e em especial o STJ, sejam sistematicamente convocados a decidir questões padronizadas, de escassa importância ou que já tenham sido alvo de várias decisões judiciais no mesmo sentido.

Falando no final do Conselho de Ministros, o titular da pasta da Presidência, Pedro Silva Pereira, afirmou que o executivo "deu mais um passo na reforma do sistema de justiça".

Procuramos agora introduzir com este decreto [que surge na sequência de uma autorização legislativa da Assembleia da República] uma maior celeridade no regime de recursos e conflitos em processo civil", justificou.

"Sem prejuízo dos direitos e das garantias das pessoas, o Governo pretende garantir que a tramitação dos processos se efectue com maior celeridade", acrescentou.

Vaz das Neves, presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, em declarações ao DN, salientou a necessidade de os tribunais superiores, designadamente o STJ, se afirmarem como "orientadores da jurisprudência". Neste sentido, considera positivas, em geral, estas alterações.

DN, 13-7-2007
 
Vêm aí mais bases de dados na Justiça

JOÃO PEDRO HENRIQUES

Medidas já vão constar do OE para 2008
Vem aí um super-pacote de medidas criando mais bases de dados na área da justiça: Uma base de dados dos inquéritos-crime, outra, controlada pela Procuradoria-Geral da República - que em Portugal tem, através do Ministério Público, a responsabilidade da condução da investigação criminal -, com os mandados de captura (nacionais) em vigor, uma base de dados genética e ainda a abertura a magistrados, já em fase de testes, da base de dados dos reclusos.

Estas medidas, quando existirem, permitirão por exemplo que não volte a acontecer o caso do Natal passado, em que o Presidente da República indultou por engano alguém que andava fugido à justiça. Na altura, Cavaco Silva concedeu um perdão de pena de seis meses (entretanto revogado) ao empresário Américo Mendes, por desconhecer que tinha fugido à justiça para o estrangeiro.

São medidas no chamado campo da chamada "e-justice" (ou justiça electrónica) que o respectivo ministro, Alberto Costa, quer fazer já incorporar no próximo Orçamento do Estado, cuja proposta o Executivo vai entregar na Assembleia da República até 15 de Outubro.

O ministro, falando ao DN, não avança números concretos sobre custos da criação deste conjunto de bases de dados - alegando que as contas ainda estão a ser feitas. Mas adianta, desde já, "que não será nada de excessivo" no peso das contas públicas nacionais.

Em declarações ao DN, o ministro explicou, por exemplo, a base de dados genética, que já muita controvérsia provocou, devido ao seu carácter alegadamente "big brotheriano" e de violação de direitos fundamentais.

Nesse acervo só será incluída informação genética sobre condenados a três ou mais anos de prisão - e, mesmo neste caso, terá de um juiz requerer essa mesma inclusão. À base de dados acrescerão os dados genéticos de recém-nascidos, mas também aqui só se os respectivos pais expressamente o requererem. "Não haverá nenhum procedimento compulsivo", garante Alberto Costa.

Já a base de dados dos inquéritos-crime visa resolver o problema, há muito denunciado por agentes da justiça, da impossibilidade da circulação digital dos processos entre os vários "edifícios" da investigação (as diversas polícias, o Ministério Público, a magistratura judicial).

O que se passa actualmente é que uma ficha aberta (por exemplo) num posto da Guarda Nacional Republicana, por um qualquer crime, nunca conseguirá ser aberta depois pelos computadores do Ministério Público, quando a investigação do crime lá chegar. A nova base de dados visa resolver precisamente esse problema, segundo o ministro.

Todas estas iniciativas sublinham, no entender do ministro, o empenhamento do Governo na chamada e-justice. "A e-justice não é para nós um entusiasmo momentâneo", afirma Alberto Costa. "Achamos apenas que não faz sentido a justiça prosseguir caminhos que vêm de tempos muito antigos."

DN, 3-9-2007
 
Ano judicial recomeça hoje

Vários casos mediáticos como os processos Casa Pia,
Apito Dourado, Fátima Felgueiras e Câmara Lisboa estão na
agenda dos tribunais, que reabriram esta segunda-feira, após
um mês de férias.
Outros casos não menos mediáticos relacionam-se com os
processos Portucale e Operação Furacão, entre outros.
Está definido que o ano judicial começa a 1 de Setembro,
mas, coincidindo este ano com um fim-de-semana, os tribunais
reabrem segunda-feira, havendo opiniões críticas relativamente
ao ano judicial passado e à redução do período das
férias judiciais.
O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
(ASJP) faz um balanço “negativo” da actividade e resultados
da Justiça no ano judicial passado, considerando que “não
houve mudanças significativamente positivas e efectivas, em
benefício dos cidadãos e das empresas”.
Num balanço do ano judicial, na perspectiva antiga de que
este ia de Setembro a Julho, António Martins salientou à Lusa
que “o mais preocupante é o não desbloqueamento dos graves
problemas de que enferma a acção executiva (cobrança
de dívidas e penhoras)”.
Opinião semelhante tem o bastonário da Ordem dos Advogados,
Rogério Alves, que alertou para as 750 mil acções de
cobrança de dívidas e penhoras pendentes na máquina judiciária
e sublinhou o “grande fracasso do Governo” em resolver
o problema da acção executiva.
Por sua vez, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
(SMMP) afirma que, no “caso Madeleine”, foram notórias “as
exasperantes vicissitudes e problemas relacionados com a
falta de meios periciais e técnicos da investigação criminal”
em Portugal.

RRP1, 3-9-2007
 
Estudo traça panorama “negro”

Um estudo universitário sobre a justiça cível em Portugal
indica que as medidas de descongestionamento dos
tribunais nada mudaram no sistema judicial português.
Um livro a lançar hoje em Lisboa, financiado pela Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento, identificou estatisticamente
os maiores constrangimentos com duas grandes
conclusões: o reforço de meios só por si não resolve o problema
e, em Lisboa, o panorama é mais negro que no resto do
país.
A capital, apesar de ter uma oferta superior da Justiça face
ao resto do país, demora em média mais tempo a resolver o
mesmo tipo de processos.
Os autores deste estudo concluem, por isso, que mesmo
depois das reformas dos últimos anos, nada mudou e que o
plano de acção de descongestionamento dos tribunais, lançado
por este Governo, pode não só não atingir quaisquer resultados
como agravar a situação existente.
O estudo aponta dados concretos, através do cálculo da taxa
de congestão que analisa o número de processos pendentes
no início do ano, dividido pelo número de processos finalizados
nesse mesmo ano. O ideal seria um resultado próximo de
1, mas a verdade é que os cálculos para os tribunais de primeira
instância e superiores deram uma taxa superior a 2,3.
E Lisboa é a região que apresenta pior taxa de congestão.
Este estudo sustenta que não é o reforço de meios que resolve
a congestão de tribunais, mas uma alteração de comportamentos
dos diferentes intervenientes na Justiça.
De resto, a culpa deste congestionamento é do próprio sistema
que, ao crescer nos últimos anos, contribuiu para o colapso
da Justiça, a começar pelos juízes, cuja produtividade
tem vindo a cair desde os anos 90. Além disso, dizem os
autores, a saturação da Justiça deve-se mais à organização
interna do sistema judicial do que à maior procura.
Os autores deste estudo sublinham ainda a falta de dados: a
Justiça em Portugal continua a ser uma área pouco conhecida
e sem um diagnóstico feito. Por exemplo, não se sabe quanto
custa um tribunal, um processo, quanto se gasta com juízes
ou com os funcionários judiciais ou quanto custam os arrendamentos
de espaços e as custas judiciais.
Governo reage
O secretário de Estado da Justiça reconhece que o congestionamento
dos Tribunais é um problema ainda longe de estar
resolvido, mas sublinha que as medidas do Governo já estão
a ter efeitos.
O secretário de Estado da Justiça diz que já há estatísticas
mais recentes que apontam para uma diminuição dos processos
pendentes: “Entre 1991 e 2005, durante cerca de 15
anos, a pendência processual cresceu sempre entre 100 a 120
mil processos por ano. Em 2006, pela primeira vez, com o
plano de acção para o descongestionamento dos tribunais e
as medidas adoptadas pelo Governo, conseguimos evitar este
crescimento crónico”.

RRP1, 17-1-2008
 
Presidente critica política de justiça do Governo

FILIPA AMBRÓSIO DE SOUSA

Cavaco Silva ataca lentidão e falta de diálogo com sector
Cavaco Silva desferiu duras críticas à política de justiça do Governo na abertura do ano judicial, cuja cerimónia decorreu ontem no Supremo Tribunal de Justiça. "Não é possível ter a pretensão de reformar a justiça sem ouvir aqueles que, com um saber de experiência feito, conhecem como ninguém o quotidiano da vida judiciária e todos os dias lidam com milhares de processos nos nossos tribunais." Este foi um dos vários recados que o Presidente da República lançou ao ministro da Justiça, tendo em conta que a falta de diálogo entre Governo e agentes da Justiça tem sido uma das principais críticas feitas por estes a Alberto Costa. E Cavaco voltou mais tarde a lançar igual aviso ao afirmar que "só quem pratica o Direito é capaz de dizer se o Direito que se faz é praticável".

O Presidente prosseguiu nas críticas. "A celeridade não é um valor absoluto, mas a lentidão não pode ser uma prática instalada", avisou, mantendo o tom: "Não é tolerável que o desfecho de alguns processos se arraste durante anos nos tribunais portugueses." Esta é já a segunda vez, em menos de um mês, que o Chefe de Estado se desliga da habitual diplomacia para com o Governo e aponta os erros do Executivo. Depois de, na mensagem de Ano Novo, ter exigido resultados na justiça, o mote do discurso volta a ser esse: o da exigência.

"Os portugueses confiam a justiça? Aos olhos dos cidadãos, o nosso aparelho judiciário é eficiente? O nosso povo considera que a justiça que temos é verdadeiramente justa e igual para todos?" São estas as questões que o Presidente gostava de ver respondidas. E, para Cavaco, é esta linha que o Governo deve seguir na escolha das reformas legislativas.

Cavaco manteve o tom elogioso à magistratura ao fazer uma saudação especial a essa classe, prestando homenagem "à dedicação dos magistrados e ao esforço que têm feito para tentar resolver em tempo útil os milhares de processos que todos os anos afluem aos tribunais".

No final da intervenção, Cavaco Silva foi incisivo: "Uma cultura judiciária interpela os agentes políticos e os operadores judiciários" e apela a que deixe de lado os "conflitos e tensões entre quem legisla e quem aplica as leis", ou seja, Governo e magistrados. E fez questão de deixar um aviso: " O Estado de direito não pode ser refém daqueles que dispõem de maiores recursos."

PGR responde a Marinho

Mantendo o discurso no tom da polémica, Marinho Pinto, bastonário dos advogados, ganhou a "disputa" de intervenção mais acesa e voltou a apontar o dedo à corrupção de quem é titular de cargos públicos e à falta de "pulso" do Ministério Público (MP) para a punição desses mesmos crimes.

Mas Pinto Monteiro, o PGR, que sexta-feira abriu um inquérito sobre essas mesmas denúncias, contestou as afirmações e fez questão de deixar uma mensagem clara: "Nenhum ilícito ficará por averiguar, nenhum esforço deixará de ser feito para apurar a verdade, (...) independentemente da posição social, da fortuna ou da posição política", frisou Pinto Monteiro. "Não há justiça para ricos nem justiça para pobres", assegurou o procurador-geral da República.

DN, 30-1-2008
 
Juízes e advogados debatem relações entre as duas profissões

Liliana Monteiro

As relações entre juízes e advogados estiveram hoje em debate num seminário organizado pela Universidade Católica. Entre os protagonistas do sistema de Justiça
que vivem o dia-a-dia nos tribunais, há quem opte por trocar de lugar. É o caso de Álvaro Carvalho, antigo advogado e actual juiz, que afi rma que as duas profissões são “complementares e indispensáveis para se fazer
justiça”. Álvaro Carvalho salienta que a advocacia permite, contudo, “um contacto directo com o cliente e uma visão mais próxima da verdade material”.
O magistrado, com 67 anos de idade, trabalha na área desde 1969, primeiro no Ministério Público, depois, a partir de 1972, na advocacia, tendo, depois, ingressado na magistratura judicial, em 1985, área em que permanece até hoje.
“Acho fascinante a função de uma pessoa que pode ajudar a encontrar um grande equilíbrio entre o poder
legislativo e o cidadão submetido a ele”, sublinha.
Menos premeditada foi a mudança no rumo profi ssional de Viterbo do Rosário Rego, também com 67 anos. Foi juiz durante cinco anos em Cabo Verde e é advogado há
39. “Houve uma informação da PIDE” que participava ao regime de Salazar que “o indivíduo não
oferece idoneidade política”
e, por essa razão, não foi reconduzido na sua função, apesar de ser a magistratura a área
com que sempre mais se identifi cou.
O advogado considera que os magistrados sempre tiveram uma imagem de maior destaque e poder:
“O poder judicial era sempre utilizado como uma muleta. Quando o
governo pretendia dar a impressão de que um inquérito estava a ser conduzido com muita seriedade colocava lá um juiz. Dava
a impressão de que só os magistrados eram o garante
da independência e da idoneidade. Hoje assiste-se ainda a isso”.
Entre ambas as profi ssões, defendem os dois profi ssionais,
é essencial a cooperação.

RRP1, 14-5-2008
 
A justiça está a caminhar para um buraco negro

O estado da justiça em Portugal assemelha-se a um perigoso buraco negro que absorve quem lhe passa por perto. Já sabíamos que numerosos agentes da PSP trabalham em part-time como porteiros/seguranças de discotecas. Agora passamos a saber que há inspectores da Judiciária que arredondam o salário mensal fazendo uns favorzinhos (cedência de meios da PJ) à devassa da vida privada de cidadãos praticada por detectives privados.

No imperdoável caso Maddie, a incompetência e as lutas internas que dilaceram a polícia de investigação foram postas a nu e transmitidas em directo para toda a Europa. A maneira ardilosa como Vale e Azevedo tem trocado as voltas à justiça portuguesa apenas contribuiu para desprestigiar mais os tribunais. Sendo a competência do Ministério Público seriamente comprometida em casos célebres como o da "fruta" do "Apito Dourado", arquivado por notória inabilidade da acusação.

Já são muito poucos os portugueses que respeitam um sistema congestionado, que não consegue responder com qualidade e em tempo útil aos problemas dos cidadãos e empresas.

A justiça continua num caos. E não foram as mudanças dos códigos que a trouxeram à tona.

DN, 6-7-2008
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?