11 agosto, 2007

 

O festival que faltava


Credial, o da música popular


http://www.festivalcredial.com/

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Trinta mil no mais "popular" dos festivais

ISABEL LUCAS

Uma desgarrada desafinada e um bom meliante
Morais, "o preto", só é preto de alcunha. Não lhe perguntem porquê. É assim e pronto. Fatalidades. Como os calos que exibe nas mãos. Morais, "o preto", é o chamado "grande cromo". Ou, como se diz por ali, "um bom meliante", expressão sem a conotação depreciativa dos falares do Sul. Está sentado à sombra de um chapéu de sol, na margem do rio Lima, à espera de clientes para os quadriciclos a pedal que aluga para ir "desde a ponte até ao ribeirinho", uma distância que mede com um esticar de pescoço. Só no areal, que "não há licença para ir à vila", precisa o homem, alheio à desgarrada que um grupo de outros homens vai desafinando junto a uma barraca de bebidas.

"Só eu eu é que tenho licença", estica-se Morais, que não ouviu um dos outros gritar que "é preciso afinar as cordas do acordeão". Não há clientes, mas Morais não se queixa. Aproxima-se um fim- de-semana que promete em Ponte de Lima. E volta a apontar numa rápida rotação de pescoço. Desta vez para lá da ermida. Segue-se o movimento com o olhar e pára-se no palco montado ao fundo, toldo preto sobre base de ferro a disputar protagonismo com a cruz da pequena igreja. "Vai estar aí toda a gente." Não diz os nomes. Não lhe interessa. O que importa é o negócio que até nem é dele, "mas de um colega dos Rangers, de 61".

"Ainda outro dia ia tirando a orelha a um", diz. Um que quis fugir com o carrinho e foi apanhado a tempo, "ai dele". E o acordeão em fundo vai desafinando, mas é o único som que se ouve por perto. Outras músicas só na noite de hoje, tranportadas em camiões que hão-de seguir a mesma alameda da desgarrada e dos quadriciclos. É só seguir o pó e chega-se ao recinto onde tudo está montado para o primeiro Festival Nacional de Música Popular, o Festival Credial.

Enquanto no palco se faz o desenho das luzes, um grupo de raparigas distribui puffs para a tenda vip. A organização espera 30 mil pessoas para uma iniciativa inédita em Portugal. No meio da confusão, alguém grita pelo Toy. Foi o segundo falso alarme da tarde. Não chamavam pelo António, o da música, mas por um elemento da produção, loiro e de olhos azuis. O primeiro falso alarme foi quando se ouviu cantar "afinal havia outra" e a Mónica Sintra em causa era uma senhora não muito nova que, na esplanada, recebia massagens de um compenetrado homem de bigode.

DN, 10-8-2007
 
Nos ensaios com a mãe de Mónica Sintra

ISABEL LUCAS

Nos ensaios com a mãe de Mónica Sintra

Rostos e vozes na sombra de um dia que acabou na mais absoluta histeria
"Ai meu amor, ai meu amor, ai meu amor", grita a rapariga loira de saia cor de rosa, correndo em direcção ao palco. Não quer perder lugar na primeira fila de espectadores. É a primeira a entrar no recinto onde só lá mais para a noite cantará o seu ídolo, Tony Carreira. Antes ainda assistiu ao stand up de Eduardo Madeira, autodenominado o "desmoer" de jantares, que abriu o Festival Credial, ontem à noite, em Ponte de Lima.

Lola, 32 anos, do coro de Mónica Sintra, não viu a rapariga loira que desde o início da manhã esperou que as portas abrissem. Dentro do recinto reservado aos artistas, Lola alonga o olhar com um lápis preto em frente ao espelho de um dos camarins de madeira reservados aos artistas do Festival Credial. Lola ri, num sorriso teste. Daí a pouco, Lola entoará umas notas teste e todos os testes acabam aí. Não há ensaio para quem sabe reconhecer uma música ao primeiro acorde. Lola vai ser a primeira a pisar o palco. Será uma sombra tão brilhante quanto aquela com que agora ilumina as pálpebras. Lola pinta-se para a festa, como canta a canção de Ruth Marlene, a segunda das protagonistas de uma noite que encerra com Tony Carreira. Lola pinta-se ao som dos testes de Ruth Marlene mas não há sinal de Ruth Marlene no palco. Por enquanto, tudo é mentira, ensaio.

Lola vai entoando uma melodia imperceptível até ser interrompida por Maria João Correia. É mãe e manager de Mónica Sintra desde que a filha começou nos espectáculos, "já lá vão 12 anos". Recado rápido e volta à mesa onde continua a passar cheques. Aqui, a norma é pagar ao staff após cada espectáculo. Maria João assina e em frente tem o alinhamento do espectáculo da filha. Vai assistir, como sempre. Desta vez com "um bocadinho de nervos", confessa. "Isto é um evento grande, importante e há sempre o receio de que algo corra mal." Para precaver imprevistos, mandou a comitiva dois dias antes e trouxe com ela a roupa que Mónica lhe encomendou. "É sempre ela que escolhe, mas acabo por ter uma palavra.". "Ela", que ainda não veio. "Está a voar. Vem agora dos Açores e há-de chegar daqui a pouco ao Porto. É assim, sempre a correr".

O telemóvel toca. "Deve ser a Mónica." Era. Pede para baixarem o som da bateria e o do baixo. Últimas instruções antes de chegar ao recinto, numa altura em que o sol já vai dando tréguas e um homem curvado sobre a bengala, depois de muito hesitar, pergunta ao segurança do recinto o que tem de fazer para ver "aquilo". E aquilo para já, é um entra e sai de carros e vogais soltas, sopradas a microfone, ecoando muito para lá das fronteiras do que há-de ser o festival.

Por agora, o sol põe-se e escuta-se Djavan. São quase oito horas, as portas vão abrir e a partir daí as notas serão outras. Até domingo à noite.

DN, 11-8-2007
 
Oito mil em liturgia por Tony Carreira

ISABEL LUCAS (Texto) e PAULO JORGE MAGALHÃES (Fotos)

Depois do concerto, não faltou o 'beija-mão' que o músico nunca recusa
"Mais uma madrugada", primeiras palavras de um refrão, autobiográfico como muitos outros refrões. Passa das duas e meia da manhã e centenas de pessoas perfilam-se para cumprimentar Tony Carreira. Antes, cantaram os parabéns ao irmão mais velho do cantor, José, membro do staff Carreira, e cantam num coro tão afinado quanto permite o cansaço e a ansiedade. Porque se as bocas cantam, os olhos não se desviam do objectivo: a porta do camarim de onde há-de sair o artista. Alguns dos que esperam estão em Ponte de Lima, à porta do recinto que recebe o primeiro festival de música popular, desde as sete da manhã, mas nada os demove de um beijo, um abraço, um aperto de mão apertado. São homens e mulheres de todas as idades, crianças de colo, idosos.

O artista sai e recebe-os um a um, numa fila ordeira comandada pelos seguranças da comitiva que evitam abusos, ou seja, um abraço mais apertado, um beijo mais caloroso. "É outra noite que acaba", como diz o mesmo refrão, a primeira de um festival que teve em Tony Carreira a grande estrela.

Se dúvidas houvesse em relação, bastaria ter acompanhado só um pouco dos bastidores. Tony Carreira chegou tarde. Já Mónica Sintra saíra do palco, cerca das onze da noite, e Ruth Marlene subia as escadas para o segundo concerto sem que nenhuma luz se focasse nela. Os microfones e as câmaras rodeavam o autor de Eterno Vagabundo. Microfones e câmaras desligados, sublinhe-se.

T-shirt azul, jeans e uma postura informal, o artista tentava justificar a razão pela qual não dava entrevistas, não fazia comentários e nem permitia a captura de imagens a não ser nos três primeiros minutos do espectáculo. Nada mais. À sua volta, vigilantes, os seguranças garantiam que ninguém infringisse as regras. Todos também de jeans, também de T-shirts, desta vez pretas se lia "Tony Carreira, a vida que eu escolhi." Frase de canção espécie de mandamento para uma causa maior, lema que o cantor vai repetindo em palco durante a última actuação da primeira noite do festival de Ponte de Lima.

Tony Carreira tenta justificar o que poucos parecem entender, mas ordens são ordens, palavra forte que a comitiva substitui por um "respeitem o pedido", até que o artista, justificado, entra no camarim, onde já se vincam, com vinco bem vincado, as calças que escolheu para ir ao palco.

Enquanto Ruth Marlene canta, Tony Carreira descontrai. Uma descontracção que só a vigilância do staff oprime. Cá fora, feita a escolha da indumentária, conversa, bebe água, fuma um cigarro, ri. Um elemento da produção diz que ele está feliz, que faz 23 anos de casado. A mulher está com ele, tão vigilante quanto o mais dedicado dos seguranças. A azáfama à volta tem agora outros protagonistas; os que zelam para que nada falhe em mais um espectáculo de Tony Carreira, o homem que encheu o Pavilhão Atlântico. Maria José, a assessora de imprensa, é uma das mais solicitadas. Está apostada e que nenhum dos jornalistas fure o zelo e, para lá do palco, a cada pausa de Ruth Marlene, grita-se "Tony, Tony". Tony ouve com a expressão de quem ignora. Sabe que é por ele que espera a maioria das oito mil pessoas que ali estão.

Falta pouco. O artista desaparece e o espaço à volta do camarim esvazia-se. Silencia-se. Só para só se ouvirem as notas de um músico, isolado, sentado num banco, a lançar notas de jazz.

São horas. O homem entra. Fato branco, camisa de um azul brilhante. Sabe que é por ele que todos gritam e por ele que todos se calam até soarem as notas da primeira música. Na primeira fila há mulheres de olhos fechados e mãos em pose de oração; crianças recém-despertas de um sono agitado que batem palmas de olhos esbugalhados; adolescentes de braços no ar. Todos sabem de cor letras que entoam num coro único, ora gritado, outra vezes sussurrado. Se Tony Carreira se calasse, a cantiga continuaria, numa espécie de liturgia que vista de fora é em si mesma um espectáculo, outro espectáculo, como o beija-mão final a que o músico nunca se recusa, "como sempre/ depois da multidão", termina o tal refrão".

DN, 12-8-2007
 
Família Carreira em litígio com a organização

ISABEL LUCAS

Os dois cantores, Tony e Mickael, acusam o festival de não defender os artistas
Noite fria em Ponte de Lima. No palco, Mickael Carreira leva à histeria uma plateia de fãs. São sobretudo raparigas, adolescentes que vibram com letras que falam de amor e ciúme, cantadas por um rapaz de um metro e noventa, jeans rasgados, camisa aberta no peito, ténis e cinto castanho com vistosa fivela "DG". Mickael Carreira canta, sabedor do efeito que tem sobre um público feminino muito jovem. Canta e dança numa coreografia sem erros, mas ignorando a tensão que se vive nos bastidores. E tudo por causa da imagem.

"A produção deste festival não foi capaz de garantir a segurança dos artistas que convidou", declarou ao DN Maria José Ribeiro, assessora de imprensa de Tony e Mickael Carreira. Com estas palavras quer justificar a razão pela qual não foi permitida a captura de qualquer imagem destes dois artistas, a não ser durante os três minutos em palco a que a lei obriga. A declaração surgiu depois dos protestos de alguns repórteres de imagem que foram retirados da frente do palco quando filmavam e fotografavam a canção núme- ro cinco do alinhamento do espectáculo, aquela que havia sido designada pelo staff do artista como de livre acesso. Os repórteres não gostaram do excesso de zelo por parte dos seguranças da produção que os mandaram sair três minutos após a primeira nota e antes que a canção terminasse. Maria José Ribeiro garante que essa foi uma decisão da produção e não da comitiva de Mickael Carreira, que fez deslocar para o local segurança própria. As instruções que estes tinham era para só mandar a retirada no fim de Deixa- -me Ser Feliz.

A assessora acabava, dessa forma, por explicar aquilo que na noite anterior o próprio Tony Carreira não quis confessar durante uma conversa informal com a imprensa. "Não permitimos imagens porque não sentimos que a produção esteja a proteger os interesses dos artistas presentes nem o tipo de música que eles representam", precisou a assessora que adiantou ainda ter pedido aconselhamento jurídico sobre a melhor forma de proceder nestas circunstâncias.

Um dos motivos do desagrado tem a ver com a utilização do adjectivo "pimba" para designar o género musical que compôs o cartaz do festival que terminou ontem. Na opinião de Maria José Ribeiro, a produção, da responsabilidade da produtora Elec3city, quando promoveu o festival, poderia ter sensibilizado os órgãos de comunicação para não usar esse tipo de terminologia.

Tony e Mickael Carreira foram os únicos entre os nove artistas presentes que não falaram à comunicação social nem se disponibilizaram para imagens. Sempre sob escolta e apertada segurança - sobretudo Mickael Carreira, que só saiu do camarim que lhe foi destinado para entrar em palco e dar beijos e autógrafos à longa fila de fãs que o esperava no fim do concerto -, os músicos restrigiram-se às actuações, as duas mais longas e as que encerraram as duas primeiras noites do festival. Tudo sem que o público, que não encheu o recinto, se apercebesse do lití-gio com a organização.

Um litígio a que João Quintela, produtor executivo do festival, tenta não dar muita importância. "É uma estratégia", declarou ao DN. Segundo o produtor, Tony e Mickael Carreira "não gostaram de se ver associados a este cartaz que, no entanto, já conheciam desde o início do ano", prosseguiu, numa reacção ao silêncio a que se votaram os dois artistas e às exigências que impuseram à comunicação social. Quanto à falta de empenho na promoção, João Quintela limitou-se a dizer: "Não posso impedir os jornalistas de escreverem o que quiserem. Se eles decidem classificar esta música como 'pimba' o que é que posso fazer? Não foi a designação que escolhemos para o festival. Chamamos-lhe Festival de Música Popular Portuguesa; quisemos fugir ao preconceito. Mais do que isso, seria impossível!"

DN,13-8-2007
 
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