05 agosto, 2007

 

Reforma agrária


Lei Barreto



http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Miguel_Morais_Barreto

http://reforma-agraria.blogs.sapo.pt/

Comments:
Por coincidência, estreou-se no circuito comercial o documentário Torre Bela na mesma semana em que faz 30 anos a Lei Barreto, que acabou com experiências como a dessa ocupação de uma herdade no Ribatejo, no 25 de Abril.

A entrevista que o DN publica nas páginas 4 e 5 com o autor da lei de contra-reforma agrária cunhada com o seu nome, António Barreto, é um óptimo complemento para o filme.

Tudo o que o documentário tem de cómico a 32 anos de distância - os diálogos sobre as "comperativas" (sic) e as discussões dos trabalhadores que não querem dar os seus "meios de produção", vulgo a sua enxada, ao colectivo - ganha contornos dramáticos nas palavras de António Barreto. O historiador conta com frontalidade como a ocupação das terras foi orquestrada pelo PCP, assim como a manipulação dos trabalhadores. Em algumas terras, para passar na estrada era preciso mostrar identificação perante os piquetes de ocupação.

E a quem não percebe muito bem o que diz Barreto basta ver o filme para ficar esclarecido. Torre Bela é uma espécie de arqueologia da tangente ao descalabro por que Portugal passou.

DN, 5-8-2007
 
"Não entendo porque ainda se paga indemnizações da Ref orma Agrária"

JOÃO CÉU E SILVA

António Barreto

Nasceu em 1942

É sociólogo e actualmente é investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Foi ministro da Agricultura e Pescas no I Governo Constitucional (1976-1978) no Governo liderado por Mário Soares

Investigador e autor de vários livros
A cinco dias de completar 30 anos sobre a aprovação da lei que ficou com o seu nome, o sociólogo relembra os dias quentes das ocupações de terras no Alentejo e o cenário político da revolução. Longe dos tempos de ministro, hoje documenta na televisão o retrato dos portugueses e escreve a sua coluna semanal na imprensa. Amarga, porque "tem um compromisso de escrever sobre o que não está bem"

Trinta anos após a aprovação da Lei Barreto, ainda acredita nela?

Revejo-me no conteúdo da lei, porque naquelas circunstâncias era o que eu julgava ser possível fazer e que devia ser feito. Ainda há pouco tempo estive a relê-la e revi-me no que lá estava, no espírito essencial da reforma e da alteração da estrutura da propriedade. É claro que hoje tenho uma visão crítica em relação ao que se passou à época.

E naquela altura acreditava na lei?

Completamente, mesmo que até então em toda a minha vida como sociólogo e político tenha estado do lado das reformas e do lado dos sem-poder. Só que as circunstâncias da História foram tais que o que tive de fazer parecia o contrário, houve até alguém que disse a brincar que era a primeira pessoa que estava a fazer uma reforma agrária para tirar a terra aos pobres e dar aos ricos.

Foi o que aconteceu?

Não creio que isso fosse verdade no sentido profundo, mas quando cheguei ao Governo o que encontrei foi a inversão total do que se passaria em condições normais para se fazer uma reforma agrária que distribuísse as terras dos grandes proprietários pelos pequenos agricultores e trabalhadores sem ela. Parecia que estava a fazer o contrário, mas o facto é que as terras já estavam nas mãos das UCP (unidades colectivas de produção), dos sindicatos e do Partido Comunista Português (PCP) - não vale a pena estarmos com eufemismos! - e havia que retirar-lhas para que se pudesse legalizar a situação criada e devolver aos proprietários as reservas a que tinham direito. Portanto, era preciso retirar as terras a quem já as tinha como se fosse um poder soberano. Evidentemente, a Reforma Agrária que eu gostaria de ter feito era a primeira e não esta.

Que era mais uma contra-reforma agrária?

Hoje, entendo que em Portugal se deu uma contra-revolução e foi preciso repor o rumo que a revolução tinha tomado. Em certo sentido, houve uma contra- -reforma agrária.

Até hoje pagam-se indemnizações. Porquê tanto tempo?

De vez em quando leio no jornal que o Estado pagou mais uma indemnização! Gostava de saber a razão, porque não me parece normal que 30 anos depois ainda estejamos nisto. É possível que haja gente que se aproveite.

Foi complicado tirar a terra a quem a estava a trabalhar?

Não. Eu tinha absoluta convicção e certeza de que não estava a tirar as terras aos verdadeiros agricultores, mas a uma espécie de cartel entre o PCP, os sindicatos e as direcções das UCP. Além disso, sabia que tinha o apoio eleitoral e político da maior parte dos trabalhadores do resto do País. Estamos a falar de dezenas de milhares de trabalhadores rurais para com os quais eu tinha de ter compreensão, mas, por outro lado, havia em Portugal mais uns milhares de trabalhadores que tinham votado nas eleições meses antes - contra uma votação muito reduzida no PCP - com um enorme voto no PS e no PSD.

Fala em compreensão porquê?

Porque eram homens e mulheres que não tinham outra solução para viver a não ser integrar as cooperativas. Não havia emprego privado, os proprietários tinham fugido, abandonado ou ficado sem terras e não iriam investir na região, por isso não havia emprego ou trabalho e a única solução era emigrar para a cidade ou para o estrangeiro ou, então, aderirem às cooperativas. Até porque nas UCP tinham o vencimento mensal garantido - que era coberto pelo sindicato, pelo ministério e recoberto pelo Banco de Portugal - e eles precisavam de educar os filhos, viver e sobreviver.

Mesmo assim avançou com a sua lei?

Não hesitei um segundo porque se o Alentejo fosse deixado conforme estava não haveria regime democrático que vingasse. O que se fez no Alentejo foi contra a própria lei que o PCP aprovara seis meses antes, e as cooperativas desrespeitaram o dispositivo legal para seguirem em frente.

O próprio PS propunha a Reforma Agrária no seu programa!

Mas deixou-se ultrapassar pelo PCP.

Quem é que lidera o processo de ocupação de terras, o PCP ou os camponeses?

É o PCP que lidera. Ainda não havia legislação para avançar com a Reforma Agrária, ainda não tinham tido lugar os acontecimentos do 11 de Março de 1975 nem o acelerar da Revolução de Abril e o PCP já tinha colocados no Alentejo muitos quadros e uma organização incomparavelmente mais poderosa que qualquer outro partido. Além de que são apoiados pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), onde há comunistas e soldados e oficiais de esquerda e de extrema-esquerda que estão muito activos na questão agrária. Muitas das ocupações são efectuadas com jipes e metralhadoras como se fosse uma ocupação militar.

Houve uma estratégia programada?

Os militares sabiam o que ia ser ocupado no dia seguinte e na próxima semana. Confirmei-o sete anos depois quando realizei e coordenei uma série de estudos sobre a Reforma Agrária e consultei os arquivos da Região Militar Sul. Havia relatórios enviados para os centros da Região Militar pelos sindicatos de trabalhadores agrícolas - nunca pelo PCP - em que listavam as herdades que seriam ocupadas e as horas, assinados por conhecidos membros do PCP. Militantes que enviavam também memorandos ao general Vasco Gonçalves sobre vários assuntos da agricultura.

Qual foi o papel de Vasco Gonçalves?

Com vontade própria, mas totalmente associado ao PCP. Ele não andava a reboque, tinha vontade própria, que era igual à do PCP. Até penso que em certos momentos Álvaro Cunhal queria moderar e deixou o primeiro-ministro e os militares correrem sozinhos. O PCP tinha de pensar no futuro, sempre foi uma organização com uma visão meticulosa da correlação de forças e quando se apercebia que corria riscos, travava.

Há uma altura em que há pouco para ocupar?

Havia ainda uma grande área no Ribatejo por ocupar, de grandes herdades. Se a correlação de forças tivesse permitido, teriam seguido pelo Ribatejo, Castelo Branco e Portalegre. Até às eleições de Abril de 1976 ainda se fizeram ocupações e o ministro Lopes Cardoso (PS) não as impediu.

Que determina a sua demissão?

Ele queria fazê-lo legalmente, ao contrário dos comunistas. Foi um erro estratégico fazerem-lhe a vida difícil, pois serão derrotados no Parlamento e no terreno. Faltou-lhes autocrítica, deixaram de ser ofensivos e passaram à resistência. No entanto, se o PCP deixasse de ser resistente, talvez vinte anos após não fosse o mais importante na Europa.

E a agricultura acabou no Alentejo...

Não é só no Alentejo, é no País, por causa da UE.

DN, 5-8-2007
 
Memória da revolução enquanto ela se fazia

JOSÉ MÁRIO SILVA

Os cinéfilos conhecem-no da televisão e de uma edição em DVD, mas o documentário Torre Bela, de Thomas Harlan - considerado por muitos o melhor filme sobre o PREC (Processo Revolucionário em Curso), dos vários que se fizeram em Portugal nos agitados anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 - nunca tinha sido exibido nos cinemas portugueses. Estreado em 1977 no Festival de Cannes, o filme conheceu várias versões, porque Harlan nunca deu a obra por terminada e foi sempre remontando, com o italiano Roberto Perpignani, as centenas de horas de filmagem em super 8.

Agora, o produtor de Torre Bela, Paulo Branco, cumpre finalmente o sonho de ver em cartaz este "documento que retrata uma época mas é intemporal". A cópia em vídeo, com cerca de 105 minutos (mais 20 do que a versão conhecida, em DVD, mas muito aquém de um dos director's cut perdidos, que chegava perto das quatro horas), "é o mais próximo que podemos chegar do que Harlan realmente queria", garante o patrão da Atalanta Filmes, sublinhando que o realizador nunca deixará de regressar, uma e outra vez, a estas imagens.

História de uma ocupação

O que torna Torre Bela um objecto fascinante é o seu carácter excepcional. Em primeiro lugar, porque teve muitos meios, técnicos e financeiros, além de bons contactos junto do movimento revolucionário (MFA), o que lhe permitiu prolongar o seu campo de acção no tempo (oito meses de rodagem) e no espaço (acesso a cenários supostamente fechados, como a sede da Polícia Militar). Excepcional ainda porque a realidade que descreve - o processo de ocupação de uma herdade pelo "povo trabalhador", a 23 de Abril de 1975 - escapou ao padrão das várias iniciativas de Reforma Agrária.

Aqui não estamos no Alentejo, dominado pelos comunistas e pelos seus projectos de UCP (Unidades Colectivas de Produção), mas no Ribatejo, feudo das correntes mais direitistas da sociedade portuguesa. A ocupação da herdade de Torre Bela - propriedade de D. Miguel de Bragança, Duque de Lafões, que é entrevistado no início do filme, com ar de enfado, a confessar não saber quantas pessoas trabalham para si - acontece à margem de qualquer tipo de estratégia partidária ou ideológica, mesmo se Camilo Mortágua, um dos ideólogos da LUAR (organização de extrema-esquerda), por lá aparece a querer conduzir as massas.

O que Harlan encontrou naquele imenso latifúndio, com os seus 1700 hectares transformados em reserva de caça, foi um raro microcosmos: trabalhadores rurais e homens proscritos, sem nada a perder, inventando para si mesmos uma utopia. A câmara capta tudo o que lhe passa à frente: os plenários caóticos, as discussões, as questiúnculas, as lideranças musculadas (Wilson, o cabecilha que rouba a palavra a toda a gente e se deixa toldar pela volúpia da mudança em curso), as resistências à lógica de partilha, os discursos de megafone, Zeca a cantar Grândola num dia de chuva, a relação com os militares (que incentivam a entrada no palácio, porque o povo "não pode ficar à espera" da lei) e toda a energia, todo o ímpeto e todas as contradições de um processo que estava, desde o início, condenado ao falhanço que as legendas finais confirmam (recuperação dos terrenos pelos Bragança).

Mais do que a nostalgia da revolução, Harlan fixa a amargura de uma experiência revolucionária em estado puro. Tão bela como precária, tão brutal como impossível. "É um dos mais fabulosos documentários da história do cinema", diz Paulo Branco. E a frase talvez seja menos exagerada do que parece à primeira vista.

DN, 5-8-2007
 
FELIZMENTE HOUVE UM MALUCO NA 'COMPRATIVA'

Ferreira Fernandes
jornalista
ferreira.fernandes@dn.pt

Portugal está em exibição. Há quem proteste pelos erros de casting em Torre Bela (realização colectiva, de cerca de dez milhões, passa no Cinema King, em Lisboa ). Mas não são os actores que são maus, a história é que é triste (e podia ser pior). Em todo o caso, é urgente ir ver, tal como é aconselhável abrir o envelope das análises. Sobretudo se são más.

Os meios técnicos são toscos mas Jean Rouch também filmava os bambaras do Mali com uma simples 35 mm. Comparando os níveis de desenvolvimento entre o Mali e a zona da Azambuja, em 1975, o máximo que se podia exigir era uma máquina de 36 mm, que nunca houve no mercado. Não liguem, pois, aos contre-plongés, ou falta deles, ou ao som, que mais parece de um sofisticado filme português. Em Torre Bela, o importante é a matéria bruta. E essa não falta.

Torre Bela é a história dos portugueses de cima e a história dos portugueses de baixo. Embora ambos voassem rasteirinho, havia um mundo a separá-los, não se tocavam - e esse não é o único paradoxo hegeliano que o filme mostra.

Os de cima são protagonizados só por Miguel de Bragança, o duque de Lafões. Tinha o olhar de desprezo que vestia bem com a sua pronúncia de desprezo. A herdade era tão grande que nem uma águia a via toda e, no entanto, dava trabalho a só 9 pessoas. Não sei donde vinha o orgulho do duque de Lafões. Ele é só cinco minutos de filme mas quem ficou por cá sabe que ele é que acabou por ganhar: hoje toda a gente fala como ele. Mas suspeito que ele não gostaria de saber que o acesso ao estatuto de beto seria tão generalizado.

Depois, há os portugueses de baixo. Nessa altura andavam aos grupos, era a moda. Se era no campo a moda chamava-se "comprativa". Mas antes deixem-me sublinhar o cenário: éramos tão pobres - vê-se no que vestíamos e comíamos - que até doía. A quem diz que não mudámos depois do 25 de Abril devia-se esfregar-lhe Torre Bela na cara.

O filme tem um herói. Chamam-lhe "maluco", mas é o único lúcido e moderno. Um rapazola canta-lhe a canção do bandido, que deve entregar a sua ferramenta à cooperativa: "Não é tua, não é minha, é da comprativa..." Mas o maluco agarra-se à sua ferramenta, uma tosca enxada. "Daqui a nada, o que eu visto e o que eu calço é da comprativa..." Ele topou, o maluco. Dois homens de boné e duas mulheres de lenço, encostadas ao umbral, ouvem o essencial da discussão que já animara a filosofia alemã no séc. XIX. Ali não há sonho. Só ronha, com que os pobres se armam para saber de que lado vai cair. Felizmente, caiu bem. Graças ao maluco.

DN, 12-8-2007
 
ERA UMA VEZ UM SONHO

SUSETE FRANCISCO

Wilson estava a chegar a Manique, no Ribatejo. Ia de Lisboa, libertado pelo 25 de Abril dos seis anos de prisão a que fora condenado por assaltar um banco. Garante que a ideia lhe surgiu pelo caminho: a estrada para chegar à pequena vila ribatejana corre a par com os muros da Torre Bela, a maior herdade da região. E, em pleno período revolucionário, o muro da quinta não escapou à ideia que varria o País: "A Terra a Quem a Trabalha." Wilson diz que leu a frase e soube o que ia fazer a seguir.

O que fez ficou registado para a posteridade no documentário Torre Bela, do alemão Thomas Harlan, actualmente em exibição no Cinema King, em Lisboa, um documento que retrata os oito meses de ocupação da propriedade que era então do duque de Lafões. Wilson reclama para si a paternidade da ocupação: chama-lhe "utopia" e chama-lhe sua. Os outros, rostos que vão surgindo também no ecrã, no filme do realizador alemão, não lhe negam a liderança. Mas reclamam o seu quinhão na história: "Deixei lá muito trabalho"; "Deixei lá muito suor." A passagem pela herdade não lhes mudou a vida. Mas se a Torre Bela não foi o futuro, ganhou o seu lugar no passado : "Para nós foi uma coisa nova, extraordinária."

À procura de trabalho

Todos garantem que só queriam um sustento, que as coisas se tinham resolvido de outra maneira se o duque não lhes tem recusado o trabalho que a enorme quinta permitia. "Eu nunca fui contra a Torre Bela nem os duques, eu era contra que aquela herdade não desse um bago de milho a ninguém", diz Rui Travassos, padeiro de Manique que deu o pão para os ocupantes, até estes terem o seu próprio forno e fazerem o pão na quinta.

Como ele, outros. Não queriam saber de política - queriam trabalho. Por isso, ocupados os terrenos, constituída a cooperativa da Torre Bela, muitos não gostaram do passo seguinte: a entrada no palácio é, ainda hoje, motivo de zangas e acusações. Joaquim Silva (ou da Ereira, como é conhecido na terra) ainda se exalta. "Revoltei-me muito, até fui para lá com uma espingarda, só não dei um tiro num [dos que entraram] porque não calhou... Nós íamos lá era para amanhar os terrenos."

Mas o filme também mostra os ocupantes a remexer os pertences que os duques deixaram. Que foram mexidos e remexidos é o mais que qualquer um reconhece. "O que tenho é meu, não tenho cá nada do duque", diz Maria Albertina, mulher de Joaquim, antes de acrescentar que o que lá havia foi para o uso comum. Recorda com desvelo um objecto em particular: "Costumo dizer ao meu filho que nasceu em berço de ouro: dormiu no berçário dos duques."

Mas o que fez furor entre os ocupantes foi outra coisa. "Havia um piano, toda a gente tocava naquele piano", diz Teresa Alves, hoje com 41 anos (na altura com nove, ia para a quinta com a avó). Uma recordação partilhada por Rui Travassos, mas já em versão de adultos: "As pessoas diziam por aí que tinham escavacado o piano a tiro. Uma vez peguei-me com uns tipos que disseram isso, levei-os lá só para lhes mostrar o piano."

A vida na herdade

Celestina Alexandre era a cozinheira. Com o marido, eram um dos casais que vivia na herdade. "Ficávamos cá fora, numa casinha particular [as casas dos empregados, no tempo do Duque]. Os solteirões ficavam no Palácio." O marido trabalhava no campo, ela na cozinha, as crianças de início andavam por ali, depois passou a haver uma creche. Celestina recorda que cozinhava para 30 a 40 pessoas. Ou mais, na época da apanha do milho "vinha muita, muita gente".

A cooperativa da Torre Bela instituiu por alguns meses um modo de vida a que ninguém estava habituado: há uma cena do documentário que o demonstra na perfeição, com um dos agricultores (conhecido como Chiné, já falecido) a resistir a entregar a enxada para uso comunitário. Mas há outros exemplos.

Na herdade, ninguém decidia por ninguém - ou a ideia era essa, há quem diga que, às tantas, "já havia patrões" - e tudo se discutia. E, em pleno Verão de 1975, até se discutiu porque é que os homens não ajudavam na cozinha. Houve mesmo uma decisão comunitária que impunha que toda a gente (ou seja, eles) levantasse e limpasse o prato quando terminava a refeição. Wilson zangou-se com o pai: a medida tinha acabado de ser aprovada, mas ao primeiro almoço que se seguiu João Filipe voltou a fazer o que sempre fizera e o que todos faziam - passar a tarefa à mulher. "Ele gostava muito dela, não estava era habituado a fazer isso", relembra.

Depois da Torre Bela

As razões pelas quais foram saindo da herdade, muitos antes da expulsão imposta pelos militares, já depois do 25 de Novembro, são as mais diversas e também elas um friso do que foi a Torre Bela. Joaquim da Ereira, "comunista ferrenho", saiu porque "não concordava com as ideias do Mortágua" [Camilo Mortágua, do movimento de esquerda LUAR, que Wilson chamou para ajudar à ocupação e à organização dos trabalhadores]. Maria do Rosário, que foi tesoureira, foi-se embora por causa dos boatos sobre "casos" na herdade. Celestina e João Alexandre foram à procura de melhor vida para França - foram, aliás, muitos os que o fizeram.

Arlindo Gomes, que era então da comissão administrativa da junta de freguesia (surge no documentário em acesa discussão com os cooperantes) tem uma explicação para isso. Diz que os ocupantes da herdade "tiveram algumas dificuldades de integração na população. A maior parte foi-se embora, emigraram." Do outro lado, entre quem morou na Torre Bela, há quem diga o mesmo. E, 32 anos depois, ainda se assiste a altercações, com os ocupantes qualificados como "essa cambada de gatunos que foram para lá roubar". "Nunca roubei nada a ninguém" é a resposta generalizada. E uma outra há que também se repete. O que fazem 30 anos a uma utopia? "Saudades..."

DN, 18-8-2007
 
"Fartámo-nos de levar porrada na Azambuja"

Imortalizada pelo documentário de Thomas Harlan, a história da Torre Bela tornou-se na mais conhecida ocupação de terras no Ribatejo, no pós 25 de Abril. Mas a herdade do Duque de Lafões não foi a única a ser ocupada no Verão de 75. A partir dali, os homens que lideravam a ocupação tentaram estendê-la a propriedades vizinhas, chamando as populações a participar. Foram tendo mais ou menos sucesso: Berinçal, Marquesa, Ameixoeira, chegou mesmo a formar-se uma união de cooperativas da região (ASAGRO). Até que o "movimento" chegou à Azambuja.

"Íamos morrendo lá" é a frase que repete quem esteve na Quinta da Bafoa - propriedade que também pertencia aos Lafões. "Fartámo-nos de levar porrada. Fizeram uma fila, uns de um lado, outros do outro, a darem-nos com as caixas que usavam para a apanha do tomate. E nós no meio deles. Se calha cair, tinha morrido", relembra Wilson. Joaquim da Ereira diz o mesmo: "Tivemos que fugir, se não tínhamos ficado lá."

A Quinta da Bafoa tinha uma especificidade em relação às propriedades ocupadas até então. Se a adesão dos camponeses à ocupação da Torre Bela se funda na falta de trabalho que havia na zona e na perspectiva de o vir a ter, no caso da herdade da Azambuja o cenário era muito diferente.

A quinta tinha sido alugada pelos Lafões a um empresário da região - não só as terras eram fonte de trabalho, como o tomate ali cultivado era depois vendido a uma fábrica local para fazer sumo. Trabalhadores de um e outro lado - no caso camponeses e operários - receavam, com a ocupação, perder a fonte de rendimentos. Resultado: estava-se em finais de Outubro de 75, os homens vindos da Torre Bela (e não só) foram recebidos com os sinos a tocar a rebate na Azambuja. Sinal de perigo iminente. Alguns dos trabalhadores da herdade e da fábrica juntaram-se para esperar quem lá vinha. E para os mandar de volta. À porrada.

DN, 18-8-2007
 
A ocupação acabou em nada, a casa em ruínas

Da casa imponente que aparece nas imagens do documentário sobre a Torre Bela resta hoje pouco mais que as paredes. As ervas tomaram conta da entrada, o tempo tomou conta dos tectos e do chão, que já vão abatendo em várias salas do palácio. A entrada da casa, que em 75 deslumbrou os camponeses que a ocuparam, é a imagem da ruína que atravessa o edifício, com o chão coberto de pedras e lixo.

Com excepção da traça, não há rasto da casa senhorial que se vê no filme de Harlan. Reconhecível só mesmo o que em tempos foi a cozinha e a zona de trabalho dos empregados - lá estão ainda os tanques para lavar a roupa, e um resto das bancadas do refeitório. E as lareiras de várias salas, sem os azulejos que ostentavam há 32 anos. É uma das frases que muito se ouve nas aldeias vizinhas da quinta, entre os que não concordaram com a ocupação: "Até os azulejos levaram."

Quem lá viveu garante que não. Que nada foi destruído, que a casa foi deixada intacta. Do outro lado, o argumento contrário: "As pessoas foram lá ver. Estava tudo destruído", diz Arlindo Gomes, à data membro da comissão administrativa da Junta de Freguesia. Olhando para o palácio um dado é certo. A casa esteve ao abandono, por ali passaram outras "ocupações": só isso explica o "Kurt Kobain" [músico dos Nirvana falecido em 1992] escrito nas paredes .

Sinais de recuperação só mesmo os telhados de um outro edifício próximo - são vários, a antiga casa do guarda, dos empregados, armazéns, a cavalariça. Luís Barreto, engenheiro que trabalha na propriedade, diz que na sociedade que hoje detém a Torre Bela se fala em recuperar a casa. Wilson considera inadmissível que esteja naquele estado: "Neste momento era mais bem ocupada que no tempo dos duques.

DN, 18-8-2007
 
De Sabu, o marinheiro, a Wilson, o ocupante

SUSETE FRANCISCO

"Aquela Avenida de Roma tem qualquer coisa para mim..." Quando falou com o DN, Wilson tinha estado há poucos dias na alameda lisboeta. Que é o mesmo que dizer entre as duas grandes histórias da sua vida. Uma - a ocupação da Torre Bela - está em exibição no Cinema King . Da outra já só resta a memória: o banco que assaltou nos anos 70 deu lugar a uma loja de artigos para bebé. "Ainda entrei para ver, a senhora perguntou-me se queria ajuda. Se ela soubesse..."

O que ela não sabia é uma história que, por si, dava um filme. Nascido em Manique do Intendente, Wilson Filipe foi para a Marinha aos 16 anos. Daí à guerra do Ultramar foi um passo. Mas diz que as complicações começaram no regresso: "Em 1971, tinha vindo de África, tive um acidente que me deixou com um traumatismo craniano. A partir daí fiquei mais inquieto, mais ruim... Principalmente quando bebia uns copos."

Os anos passados como militar são um entra e sai dos calabouços. "Houve uma altura em que me voltaram a mobilizar para a Guiné. Roubei um carro e fui preso. Tive que fazer umas asneiras para conseguir sair da Marinha." Quando de lá saiu trouxe a alcunha pela qual ainda hoje o tratam em Manique - Sabu. E mais nada, nem a vontade de voltar para a terra natal. Ficou por Lisboa, parava entre o Bairro Alto e o Intendente: "Entrei no mundo da prostituição."

Aos 23 anos, a Avenida de Roma. Wilson assalta a dependência de um banco. Diz que foi contratado, depois denunciado pela namorada de um dos contratantes - "tinha logo que acabar com ela naquela altura, com o saco de dinheiro do assalto lá em casa, e ela para se vingar...". Entre este episódio e a ocupação não tem dúvidas: "A Torre Bela foi o que me deixou mais satisfeito. Mas a maior aventura da minha vida foi o assalto ao banco. Tive medo." Cinco dias depois do assalto é preso no Bairro Alto. Acaba libertado logo após o 25 de Abril, tinha cumprido quatro anos de uma pena de seis.

O ano seguinte passa-o entre Lisboa e Manique, até ser escolhido para ir à capital tratar das questões da reforma agrária. Na cabeça leva o "A Terra a Quem a Trabalha" que lera escrito nas paredes da própria quinta. No regresso à vila ribatejana traz a solução: "Disseram-me que fizesse o mesmo que estavam a fazer no Alentejo." E assim fez.

Três décadas passadas, hoje vendedor de camiões, Wilson recorda com óbvia nostalgia o Verão de 75: "Nunca estive num sítio onde a democracia fosse tão intensa. Éramos uma família, tínhamos uma comuna extraordinária. " Com fim anunciado: "Não podia ter sido de outra maneira. A partir do momento em que a política virou [com o 25 de Novembro] ser amigo da Torre Bela não dava jeito." Nada que dê espaço a arrependimentos, diz este homem, descrito pelos seus conterrâneos com adjectivos tão antagónicos como "rufia" ou "idealista". "Voltava a fazer tudo igual. E se fosse com a juventude de hoje, a Torre Bela não parava."

DN, 18-8-2007
 
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