06 outubro, 2007

 

Novo tratado da União Europeia (UE)


ou de Lisboa




http://www.consilium.europa.eu/cms3_fo/showPage.asp?id=1317&lang=pt&mode=g

http://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_Europeia

http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=262468&idselect=9&idCanal=9&p=200

Comments:
Durão «saúda» Tratado Reformador

2007/10/05 | 16:41

Presidente da Comissão destaca maior «eficiência na tomada de decisões»

O presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, saudou esta sexta-feira o «resultado positivo» do grupo técnico que preparou o texto do novo tratado da União Europeia (UE), hoje divulgado na Internet pela presidência portuguesa, refere a Lusa.

«Saúdo o resultado positivo do trabalho sobre o Tratado Reformador feito pelo do grupo de peritos jurídicos», disse José Manuel Durão Barroso, num comunicado hoje divulgado em Bruxelas.

«A proposta de tratado hoje divulgada traduz para forma legal o acordo político atingido em Junho, sendo uma solução equilibrada que mostra que houve progresso numa série de questões importantes», considerou ainda, salientando que os objectivos traçados pela Comissão foram atingidos.

Para o chefe do executivo europeu, o novo tratado irá dotar a UE de uma maior «eficiência na tomada de decisões» e de mais coerência na política externa.

Durão Barroso disse ainda acreditar ser possível um acordo político na Conselho informal de Lisboa, nos próximos dias 18 e 19, pondo assim fim a uma crise que dura já há dois anos, depois do «chumbo» da Constituição Europeia pelos eleitores franceses e holandeses, em referendo.

A adopção do Tratado de Lisboa, como ficará conhecido, é uma das prioridades traçadas pela presidência portuguesa da UE, a terceira desde que Portugal aderiu ao bloco europeu, em 1986, e que termina a 31 de Dezembro.

A presidência portuguesa do Conselho Europeu disponibilizou hoje na Internet o projecto do Tratado Reformador da União Europeia, a debater pelos 27 na Cimeira informal Chefes de Estado e de Governo, dias 18 e 19, em Lisboa.

O texto - para já em inglês e francês, mas que será disponibilizado nas 23 línguas oficiais da União Europeia (UE) - pode ser consultado no endereço do Conselho da UE (http://www.consilium.europa.eu/cms3_fo/showPage.asp?id=1317&lang=pt&mode=g).

O novo tratado vai substituir a falhada Constituição Europeia, rejeitada em referendos por franceses e holandeses, em 2005.

PD
 
Tratado Reformador ilegível para os cidadãos


LUÍS NAVES
A presidência portuguesa da União Europeia divulgou ontem o projecto do novo Tratado Reformador, que modifica a estrutura institucional da União e altera o equilíbrio de poderes entre os Estados. A nova versão recupera o essencial do Tratado Constitucional chumbado em referendo na França e Holanda, embora os líderes europeus considerem o actual documento menos federalista. Foram também acomodadas exigências britânicas e polacas, num texto quase ilegível para leigos.

O Tratado Reformador resulta de quatro anos de negociação e de um trabalho técnico final coordenado pelos portugueses. O documento será primeiro objecto de discussão dos líderes da UE e, em princípio, aprovado na próxima cimeira informal de Lisboa, dia 18, que marcará o encerramento da Conferência Intergovernamental (CIG) de revisão do Tratado de Nice (2000).

O documento terá de ser ratificado pelos 27 até 2009, só então entrando em vigor. São alargadas as áreas políticas onde haverá votações por maioria qualificada e esta última regra ficou diferente da prevista no Tratado em vigor na UE (Nice), tornando mais difícil para um pequeno grupo de países o bloqueio de decisões da maioria.

Estão previstas outras alterações. Será mais fácil organizar as chamadas cooperações reforçadas, onde um grupo de países avança com uma determinada política, ( por exemplo, defesa) e desaparece a estrutura por pilares, o que na prática significa que os Estados membros tomarão decisões por maioria qualificada nas áreas de justiça e cooperação policial.

Na conclusão deste tratado, Portugal obedeceu a um mandato negociado no Conselho Europeu de Junho, onde ficou acordado que o Reino Unido teria direito a excluir-se de certas partes do documento, nomeadamente do capítulo da Carta dos Direitos Fundamentais e de certos pontos da área da justiça. Os negociadores conseguiram acomodar estas exigências e alargaram à Polónia a exclusão da aplicação da Carta de Direitos Fundamentais, que em jargão comunitário se chama um opting out.

Os dirigentes europeus sublinham que o Tratado Reformador não tem carácter constitucional e que preserva mais soberania para os Estados do que o seu antecessor fracassado, informalmente chamado Constituição Europeia. Alguns dos símbolos (hino, bandeira) e o controverso preâmbulo desapareceram; mantém-se o direito de petição de um milhão de europeus; e não há ambições de reunir todos os tratados num único documento. Isto deu origem a um texto jurídico muito complexo, de leitura apenas possível para especialistas.

As versões do documento nas diversas línguas estão disponíveis na internet, a partir do site da presidência, em www.eu.2007.pt.

DN, 6-10-2007
 
Tratado de Lisboa assinado
a 13 de Dezembro

Após o espumante da última madrugada, os líderes da
UE retomaram, esta manhã, os trabalhos do Conselho Europeu.
As questões ligadas à política externa estão ao alto da agenda
da reunião. Kosovo, Médio Oriente e a Globalização são
os temas centrais.
Às primeiras horas da madrugada, José Sócrates e Durão Barroso
anunciaram um “acordo histórico”: o Tratado de Lisboa
tinha sido aprovado quando faltavam 15 minutos para a uma
da manhã.
O Primeiro-ministro português considerou que esta foi uma
“vitória da Europa”, que sai desta Cimeira “mais forte”.
“Com este acordo, a Europa mostra que o projecto europeu
está em desenvolvimento e que tem confiança no futuro”.
Sócrates agradeceu a todos os que se empenharam para que
fosse conseguido este acordo e agradeceu, especialmente, ao
presidente da Comissão Europeia pela colaboração essencial.
Já Durão Barroso disse que estar “extremamente feliz por
termos conseguimos chegar
a este acordo”.
O presidente da Comissão
Europeia, visivelmente
emocionado, felicitou
José Sócrates e toda a
presidência portuguesa,
não esquecendo o mandato
deixado pelos alemães.
Entretanto, o Primeiroministro
português deixou
já alguns pormenores
sobre o novo documento:
entra em vigor a 1 de
Janeiro de 2009 e o novo
Alto Representante da
Política Externa vai ser
nomeado com o acordo do
Parlamento e não só da
Comissão.
Quanto à ratificação do documento, Sócrates repetiu que só
será tomada uma decisão definitiva sobre como será feita em
Portugal, depois do Tratado ser assinado a 13 de Dezembro.
Mantém-se, assim, em aberto a questão do referendo.

Imprensa Internacional

Por José Bastos

"Uma vitória para a Europa" é este o título que mais se repete
em muitos jornais do velho continente depois da aprovação
do tratado reformador europeu em Lisboa.
"Sucesso completo, chefes de Estado e de Governo da União
Europeia chegaram a acordo sobre a reforma geral da Comunidade
o que deixou a chanceler Angela Merkel muito satisfeita"
escreve o DER SPIEGEL.
Já o TAGESPIEGEL alude a "um grande triunfo para a Europa"
e afirma que com "a aprovação do tratado de Lisboa, a União
Europeia tem uma nova base".
Na Grã-Bretanha, os eurocépticos voltam à carga nos jornais.
O THE TIMES antecipa "tumultos parlamentares idênticos aos
que tiveram lugar à volta de Maastrich, há 15 anos".
O THE GUARDIAN escreve que "um desafiador Gordon Brown
compromete a Grã-Bretanha ao novo tratado reformador
europeu". O jornal sugere que "Brown contrariou a maioria
das sondagens, a oposição, sindicatos e todos os eurocépticos
para, irrevogavelmente, implicar o Reino Unido num processo
de maior integração europeia".
Este dado é o que mais desagrada ao jornal mais vendido no
país, o THE SUN, com tiragens de mais de 5 milhões de
exemplares. O jornal acusa Brown de ter "usado um jantar
em Lisboa com mais 26 líderes europeus para associar o Reino
Unido a uma constituição europeia sem um referendo dos
eleitores britânicos". O THE SUN diz ter sido "um acto de
traição de Gordon Brown que o irá perseguir até ao fim dos
seus dias na política".
Em Espanha, o EL MUNDO sublinha que "os líderes da União
Europeia alcançam em Lisboa um acordo que substituirá o
projecto de constituição europeia recusado há dois anos na
França e Holanda".
O ABC escreve que "a União Europeia consegue uma acordo
histórico depois de seis anos de negociações”. O jornal conservador
espanhol escreve que “foi a presidência portuguesa
a salvar o tratado ao oferecer mais um lugar de eurodeputado
à Itália".

RRP1, 19-10-2007
 
Sócrates aponta vantagens
do novo Tratado

José Sócrates defende a utilidade do novo Tratado
Reformador para os portugueses.
Na conferência final do Conselho Europeu, realizado no Parque
das Nações em Lisboa, o Primeiro-ministro reafirma que
o Tratado “é útil para a Europa, ele dá mais força às instituições
europeias”.
De acordo com o presidente em exercício da União Europeia,
“a Europa fica mais apetrechada para responder aos desafios
que tem pela frente, quer ao nível interno da decisão, mas
também ao nível externo”.
Sócrates está fortemente convencido que “os interesses de
Portugal se defendem melhor ao nível europeu e que o interesse
de Portugal é também o interesse da Europa e, quanto
mais forte estiver a Europa, mais defendido e mais forte
estará Portugal”.
Método de ratificação divide opiniões
Como ratificar o Tratado Reformador, depois do acordo
alcançado esta madrugada? É esta a questão do momento e
foi assunto do Destaque do Meio-Dia, na antena da Renascença.
Os partidos com assento parlamentar não se entendem sobre
a questão e o Primeiro-ministro, por seu lado, não esclarece
qual será a decisão do Governo português, remetendo expor
a sua opinião para depois do dia 13 de Dezembro, data da
assinatura do Tratado.
A verdade é que em Portugal procedeu-se a uma Revisão
Constitucional para permitir a realização de um referendo à
“defunta” Constituição Europeia e este facto é lembrado a
cada momento, sobretudo pela esquerda parlamentar.
Esta manhã, na Assembleia da República, a esquerda parlamentar
saiu em defesa da realização da consulta aos portugueses.
A nova liderança do PSD de Luís Filipe Meneses, é contrária à
realização de um referendo, e o líder social-democrata vai
levar o assunto a Conselho Nacional.
A posição contrária à consulta é explicada por Menezes pelo
facto de haver “todas as razões para acelerar a ratificação
do Tratado, à escala de toda a Europa”.
“A democratização e a abertura para a participação dos cidadãos
na vida da União Europeia não se resolve exclusivamente
ou principalmente por um mês de debate à volta de um
referendo a realizar por um estado-membro. Existem outros
caminhos que podem levar a uma maior participação dos
cidadãos” – esclareceu
Com larga experiência no plano europeu - foi comissário - o
socialista António Vitorino diz que discutir a questão do referendo
é ofuscar o acordo alcançado na última madrugada.
Vitorino não coloca, no entanto, de lado a possibilidade do
parlamento aprovar o Tratado Reformador.
Também ouvido no Destaque do Meio-Dia, o eurodeputado
social-democrata Silva Peneda diz que deve ser muito bem
explicada aos portugueses a decisão, pois recorda que foi
feita uma revisão constitucional para possibilitar um referendo
ao tratado.
Já Fausto Quadros, professor de Direito da Universidade de
Lisboa e especialista em questões da integração, não considera
fundamental que os portugueses se pronunciem através
de referendo e lembra que o acordo alcançado em Lisboa
representa 90% do que estava vertido na proposta de Constituição.
Fausto Quadros considera, ainda, que o acordo dá um
novo fôlego anímico à integração europeia.

RRP1, 19-10-2007
 
A imagem que projectamos

EDITORIAL

Não foi preciso esperar nem um dia inteiro. As reacções ao acordo alcançado pelos 27, que abre a porta ao Tratado de Lisboa, aí estão, vindas de Pequim, de Moscovo e de Brasília. Das três capitais chega o reconhecimento do fortalecimento interno da União Europeia (UE) com este tratado, bem como o elogio generalizado à dupla germano-lusitana neste ano de 2007.

A rápida passagem da "reflexão" estéril e inútil ao acordo político, arrancado a ferros por Angela Merkel em Junho, e traduzido no texto do tratado, negociado até ao último pormenor por José Sócrates, menos de quatro meses depois, só provoca admiração e surpresa nas citadas potências emergentes. Da Rússia chegam mesmo ecos de preocupação adicional pelo facto de o texto acordado conter a novidade de consagrar a criação de uma política energética comum, unificando, assim, 27 políticas dispersas a nível nacional. Para a Rússia, lidar com um só cliente em nome de 500 milhões de consumidores não é o mesmo que estabelecer acordos vantajosos com parceiros nacionais bem menos poderosos.

Não há nada como olharmos a imagem que sobre os outros projectamos. Os aplausos vindos da China e do Brasil são um sinal de realpolitik. Ao criar um desenho institucional mais ágil e mais coeso, a UE elevou já as expectativas. Espera-se dela uma maior capacidade de intervenção num mundo globalizado.

É claro que falta a ratificação nos 27 países da UE. Em cada um deles se tirarão as lições do anterior processo fracassado de acordo com as suas leis, os equilíbrios políticos e as pressões da rua.

Mas está claro aos olhos de todos, mesmo de cidadãos mais alheados destas altas políticas, que um segundo chumbo, o deste Tratado Reformador de Lisboa, produziria uma monumental gargalhada à escala mundial. E o protagonismo da União Europeia, nesse mundo global, seria pouco mais do que motivo de embaraço. Para todos.

Por isso, França e Alemanha já disseram querer ratificar o tratado nos seus países até Dezembro, pela via da aprovação parlamentar. Um caminho que a maioria dos 27 seguirá. Para evitar surpresas desagradáveis.

Essa será a questão mais discutida pela oposição nas próximas semanas em Portugal. Independentemente da decisão que o Governo anunciar lá para o fim do ano ir ou não ao encontro das promessas feitas no passado, o acordo conseguido no primeiro dia da cimeira em Lisboa é uma grande vitória para a diplomacia portuguesa. E deve ser reconhecida.

"Porreiro, pá", segredou Sócrates a Barroso

PATRÍCIA VIEGAS

Os bastidores de uma cimeira informal com este tipo de envergadura têm sempre histórias para contar. Os protagonistas variam, desde os líderes dos 27, até à organização ou à segurança. O DN dá conta de alguns episódios.

A descontracção de Sócrates

Numa altura em que ainda estavam ligados os microfones na sala da conferência de imprensa da presidência, quando ao início da madrugada foi anunciado acordo sobre o tratado, Sócrates voltou-se para Barroso e exclamou descontraído: "Porreiro, pá!". Os jornalistas estrangeiros precisaram da ajuda dos colegas portugueses para tentar perceber qual a melhor forma de traduzir aquela expressão. À chegada para o último dia da cimeira, no início da manhã de ontem, Sócrates disse que "foi uma noite bem passada".

O chamamento do rio Tejo

Alguns dos participantes da cimeira de Lisboa não resistiram a fazer um passeio à beira do rio Tejo. O chefe do Estado francês, Nicolas Sarkozy, foi um deles. No dia a seguir ao anúncio oficial do seu divórcio, o líder da França, ainda de aliança, resolveu ir arejar, antes de entrar no Pavilhão Atlântico para participar no encerramento da cimeira. Sarkozy decidiu contornar a segurança e apreciar, ainda que por breves momentos, a vista sobre o rio Tejo. O mesmo fez a vice-presidente da Comissão Europeia, Margot Wallstrom, na quinta-feira à tarde, depois de sair do almoço do PSE no Pavilhão de Portugal.

O espumante da vitória

Os chefes do Estado e do Governo e os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE brindaram ao nascimento do novo tratado reformador com espumante Murganheira. Abraços, apertos de mão e sorrisos compunham a moldura da vitória.


E DEPOIS DE LISBOA?

Joaquim Aguiar
politólogo

Sarkozy teve a ideia: se o tratado se chamar simplificado, renovador ou reformador, em vez de se chamar constitucional, já será possível ratificá-lo em Parlamento e não terá de se convocar o povo referendário. Para sublinhar o carácter instrumental (e não fundacional) do Tratado de Lisboa, os responsáveis franceses, italianos, polacos e ingleses sublinharam que os respectivos interesses nacionais foram devidamente acautelados. Zapatero recomendou que se apoie o novo Presidente da União Europeia (substitui as presidências semestrais, é eleito pelo Conselho Europeu por dois anos e meio, renovável uma vez), Sarkozy escolheu nomes para as presidências da União e da Comissão, Sócrates quer fundir o tratado em bronze (tanto trabalho, durante tanto tempo, é para durar muito), remeteu a questão da entrada da Turquia para uma comissão de sábios e todos esperam que as decisões por maioria qualificada (pelo menos 55% dos Estados e 65% da população) sejam operacionais. Só se esqueceram da política: nas ruas de Lisboa e de Paris protesta-se, o petróleo atinge os 90 dólares por barril, o euro perde competitividade nos mercados que transaccionam em dólar, o vazio estratégico da Europa, por um lado, e as afirmações nacionalistas, por outro lado, persistem. O espaço político europeu parece o espaço aéreo: rotas em altitudes diferentes escondem a crise, o problema só aparece quando tem de se aterrar - demasiado tarde para corrigir as trajectórias de cada um.


SUCESSO CAPITALIZÁVEL

António Costa Pinto
historiador e politólogo

Aconteceu. A cimeira foi um sucesso para a Presidência portuguesa, graças sobretudo ao esforço da senhora Merkel. Ganhou sobretudo a Europa que ficará com alguns mecanismos de funcionamento mais adequados ao significativo alargamento dos últimos anos. Após a aprovação deste tratado não serão de esperar novos impulsos reformadores, sobretudo porque foi a solução encontrada para um falhanço e não um acto voluntarista dos dirigentes políticos europeus.

As novidades mais importantes serão no método de decisão, finalmente mais democrático e com menos efeitos paralisantes, que a regra da unanimidade impunha. Os poderes acrescidos do "senhor política externa" não deverão impressionar grande coisa e a maior proporcionalidade no número de deputados ao Parlamento Europeu também não vai dar legitimidade acrescida à instituição. Se tudo correr bem, Sócrates vai capitalizar a vitória, e Portugal fica associado a um Tratado importante da União Europeia. Maioria absoluta, vitórias europeias, governo a funcionar, oposição em debate interno. Não se pode dizer que a coisa corra mal para Sócrates. Poderia até continuar as reformas sem alienar apoio eleitoral, mas o objectivo de uma nova maioria absoluta talvez as limite.


Barroso e Blair: a nova dupla da Europa?

A União Europeia tem três presidentes (Conselho, Comissão e Parlamento), mas com o novo tratado a presidência fixa dará à primeira destas três figuras poderes importantes, que poderão entrar em choque com os largos poderes da segunda personalidade. A corrida para preencher estes cargos, em 2009, já começou.

O Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, está bem colocado para um segundo mandato (2009-2014), e já deu a entender o seu interesse, sem o declarar abertamente. Para conseguir mais cinco anos à frente da comissão, Barroso tem a seu favor o bom desempenho durante as negociações do orçamento europeu e, agora, do Tratado de Lisboa.

O eventual segundo mandato dependerá da vitória do centro-direita nas eleições europeias de 2009 (um grande se), pois o Presidente da Comissão Europeia será eleito pelo novo parlamento, que neste momento tem maioria do PPE (centro-direita), mas sem maioria absoluta. Tudo dependerá também do apoio de Angela Merkel, Nicolas Sarkozy e Gordon Brown. E, claro, que não haja oposição da Espanha e Itália.

Por outro lado, a eleição do futuro Presidente do Conselho é uma novidade no sistema da UE. Nos meios europeus fala-se em duas personalidades fortes, Tony Blair e Jean-Claude Juncker. A opção por qualquer um destes dois políticos seria uma mensagem inequívoca de que os líderes europeus querem ter uma presidência fixa influente nos trabalhos.

Blair, da área do centro-esquerda, foi um dos mais poderosos chefes de Governo britânicos e Juncker, de centro-direita, é uma das mais prestigiadas figuras da cena política comunitária. A opção esquerda-direita não se deverá colocar nesta escolha, apesar de tudo. Claro que contará a ponderação de votos e a direita, neste momento, domina o Conselho Europeu. Mas, nesta escolha, será mais importante a direcção que se pretende imprimir ao projecto europeu.

L. N. e VIRGINIA MAYO


Líderes querem que UE olhe agora para o futuro

LUÍS NAVES e PATRÍCIA VIEGAS

"Ninguém na Europa está mais disponível para discutir novas instituições", explicou ontem o primeiro-ministro José Sócrates, no fim da histórica cimeira informal que se realizou na capital portuguesa e que serviu para aprovar o novo tratado da UE. Concluído este capítulo, os dirigentes europeus querem agora concentrar-se em temas que "preocupam as pessoas", como refere documento da Comissão Europeia.

Isto significa políticas que permitam enfrentar os desafios da globalização, que possam responder às alterações climáticas, iniciativas na área da energia e na reforma do próprio orçamento comunitário. A ideia foi, aliás, referida por vários dirigentes europeus, incluindo Gordon Brown, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. O debate institucional era virado para o interior da UE, o próximo será dirigido para o exterior, "enfrentar totalmente a agenda da globalização", afirmou o primeiro-ministro britânico, que referiu prioridades como emprego ou ambiente.

A Europa quer "liderar o debate sobre a globalização", explicou Sócrates, sublinhando os aspectos de inovação e de educação deste desafio. A presidência portuguesa irá finalizar até Dezembro uma declaração sobre globalização, a apresentar ao Conselho Europeu. No debate de ontem, a Comissão também introduziu uma ideia, a chamada dimensão externa da Estratégia de Lisboa, que prevê a liderança da UE na definição de instituições internacionais ou de políticas globais. A segurança dos mercados financeiros ou as mudanças climáticas são dois temas considerados cruciais neste contexto. Para o Presidente da Comissão, Durão Barroso, a UE "deve proteger os seus cidadãos" dos efeitos da globalização, "mas sem ser proteccionista".

No plano do ambiente, os europeus querem chegar a um acordo global, em 2009, sobre o caminho a seguir depois de o Protocolo de Quioto expirar em 2012. Quioto diz respeito à limitação global das emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamente dióxido de carbono, uma área onde a Europa tem assumido posições mais ousadas do que outros blocos económicos.

Durão Barroso revelou em Lisboa que a Comissão Europeia apresenta em Janeiro uma proposta aos Estados membros, que visa definir o contributo de cada país para concretizar os objectivos definidos pelo Conselho Europeu em Março, relativos à redução de emissões de dióxido de carbono (quebra de 20% até 2020). A UE acredita na possibilidade de solucionar o problema das alterações climáticas, no quadro das Nações Unidas, ao contrário da Administração dos EUA.

A insistência europeia numa política comum de energia tem provocado reacções pouco favoráveis da Rússia e o tema deverá tornar-se um dos eixos centrais da relação da UE com Moscovo.

Ainda no contexto da necessidade de olhar em frente, Sócrates revelou que aceitou a proposta de Sarkozy, no sentido de criar um grupo de sábios para discutir o futuro do projecto europeu, pretendendo apresentar, também em Dezembro, uma proposta sobre o mandato desse mesmo grupo. Sarkozy quer que discutam os limites geográfico da UE. Mas Sócrates preferiu não precisar detalhes.

DN, 20-10-2007
 
A VÃ GLÓRIA DE BAPTIZAR

Alberto Gonçalves
sociólogo
albertog@netcabo.pt

Gostei muito da cobertura televisiva às negociações do Tratado Europeu. Antes do acordo, achei enternecedor ver os jornalistas indígenas e o funcionário público Esteves Martins denunciarem os torpes obstáculos que poderiam impedir a sua concretização: os deputados da Itália, os gémeos da Polónia, o alfabeto da Bulgária, etc. Depois do acordo, a alegria foi proporcional ao tom repugnado das denúncias.

Que importa o facto de ninguém compreender boa parte do que ali se acertou? Que importa a previsível ractificação à revelia democrática? Que importam os gémeos polacos? Importa que temos tratado e que o tratado é de Lisboa. No fundo, esse era o objectivo de todo o frenesim: baptizar a coisa. Um deslize e a coisa acabaria chamada de Liubliana. Onde fica Liubliana? Mistério. Lisboa nós conhecemos. Lisboa é nossa. O Tratado, em larga medida, também. O Tratado de Lisboa, apetece lembrar. O Tratado de Lisboa, apetece repetir. É assim como uma "Expo 98" ou um "Euro 2004", só que com duração indeterminada e se Deus quiser infinita. A glória deve andar muito próxima disto, e o modesto "Porreiro, pá" com que o eng. Sócrates comentou a saga apenas engrandece o seu principal herói.

DN, 21-10-2007
 
O NOVO TRATADO EUROPEU: TRIPLA VITÓRIA

Diogo Freitas do Amaral
Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros
Ex-presidente da Assembleia Geral da ONU

Na madrugada da passada sexta-feira, 19 de Outubro, ocorreu em Lisboa um facto histórico: os chefes de Estado ou de governo dos 27 países membros da União Europeia aprovaram, por unanimidade, o texto do novo tratado europeu que lhes tinha sido proposto em Julho pela presidência portuguesa, com pequenas alterações, aliás habituais neste tipo de procedimentos.

O facto em si é, na realidade, um facto histórico: não só porque põe termo à maior crise institucional que a integração europeia conheceu desde o seu início (1957), mas também porque o novo tratado vai substituir e integrar todos os anteriores que marcaram as etapas da construção europeia (tratados de Roma, de Maastricht, de Nice, etc.) e por coincidência a sua aprovação ocorre no ano e que comemoramos o 50.º aniversário do Tratado de Roma, que deu início à concretização do projecto de unidade europeia.

Há na aprovação deste novo texto institucional europeu uma tripla vitória, que cumpre sublinhar.

Uma vitória para Portugal

Em primeiro lugar, há uma clara e nítida vitória para Portugal, uma vez que foi a presidência portuguesa da UE que propôs o texto do tratado, que conduziu as respectivas negociações e que, nos últimos dias e nas últimas horas, encontrou soluções satisfatórias aceitáveis por todos os países (e não foram poucos) que tinham problemas a resolver.

A vitória da presidência portuguesa, reforçada mais ainda por ter sido obtida em Lisboa, tem um nome e tem um rosto - o do primeiro-ministro, eng. José Sócrates. Foi ele que, mais de um ano antes, tomou as necessárias (e por vezes difíceis) decisões preparatórias; foi ele que superintendeu activamente na actuação de todos os ministros do seu Governo antes e durante a presidência; foi ele que contribuiu decisivamente (em termos que não devem ser revelados por enquanto) para o êxito do último Conselho Europeu da presidência alemã, em Junho deste ano; foi ele que, com determinação e simpatia, conseguiu convencer os presidentes ou primeiros-ministros mais recalcitrantes; foi ele que coordenou a intervenção coadjuvante, mas preciosa, de Sarkozy, Merkel e Brown junto dos restantes países; e foi ele, enfim, que durante a cimeira, em Lisboa, pela noite fora, definiu onde era possível ceder e onde era preciso dizer não. Arriscou muito; e, portanto, ganhou muito. Já era um grande primeiro-ministro cá dentro; passou a sê-lo também lá fora.

Mas, como toda a gente compreende, um processo destes é um trabalho colectivo. Três nomes foram já, muito justamente, elogiados em público: o do dr. Durão Barroso, como presidente da Comissão Europeia; o do dr. Luís Amado, como ministro dos Negócios Estrangeiros; e o do dr. Manuel Lobo Antunes, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Há, porém, mais alguns nomes que entendo não deverem ser esquecidos: o do anterior secretário de Estado Fernando Neves, que orientou muito bem todos os trabalhos preparatórios da presidência portuguesa em 2005-2006; o do dr. Nuno Brito, diplomata de grandes méritos, que é desde 2005 o director-geral dos Assuntos Comunitários, em Lisboa; o do excelente embaixador de Portugal, junto da União Europeia, Álvaro Mendonça e Moura, que foi, antes e durante a presidência portuguesa, the right man in the right place; e, por último, os de todos quantos - no ministério, em Bruxelas, nas capitais dos países membros e na missão especial criada para apoio à presidência portuguesa, coordenada pelo dr. Jaime Leitão, também diplomata de carreira - contribuíram empenhadamente para o êxito de Portugal.

Todos estão de parabéns.

Uma vitória para a Europa

A aprovação do novo tratado constitui, indubitavelmente, uma grande vitória para a Europa. Porque põe fim a uma grave e longa crise institucional; porque institui mecanismos de decisão mais eficazes para uma União Europeia com 27 membros (e, amanhã, talvez 30), substituindo as regras ultrapassadas da Europa dos Quinze; e porque permitirá, a partir da entrada em vigor do tratado, que a Europa resolva melhor e mais depressa os seus problemas internos e, simultaneamente, possa falar com mais peso para o exterior, isto é, para o mundo. A Europa tem de ser, cada vez mais, a voz do bom-senso na perturbada fase em que se encontra a comunidade internacional. Tem agora todos os meios e instrumentos de que precisa para isso. Oxalá saiba fazê-lo com lucidez, firmeza e plena autonomia de decisão.

Uma vitória para o mundo

A nova União Europeia, que nasceu agora em Lisboa, é indispensável ao mundo inteiro. E não foi por acaso que, ao ser conhecida a notícia de sexta-feira passada, logo se manifestaram com regozijo o Brasil, a Rússia, a China e a Índia.

Quem, como eu, tiver experiência das Nações Unidas (e em particular da sua Assembleia Geral) sabe bem com que respeito, silêncio e geral aceitação são ouvidas, em regra, as declarações proferidas em nome da União Europeia - isto é, em nome de cerca de 500 milhões de pessoas.

A Europa deve ao mundo o seu "saber de experiência feito", como dizia Camões. Não pode negar essa mais-valia a ninguém.

E o mundo precisa da Europa, por causa da enorme capacidade de diálogo que esta tem face a todos os povos e a todas as culturas. Se alguém pode e deve trabalhar pala "aliança das civilizações", e portanto contra a "guerra das civilizações", é em primeiro lugar a União Europeia. Todos lhe agradecerão.

O Tratado de Lisboa

Para um homem da minha geração - que ainda sentiu os horrores da Segunda Guerra Mundial, que conheceu a ditadura, que sofreu com as vidas e oportunidades perdidas nas guerras do Ultramar, que receou o holocausto nuclear tornado possível pela "guerra fria", que vibrou com o Tratado de Roma rumo a uma Europa Unida, e que chorou de alegria com a queda do muro de Berlim -, o novo Tratado Europeu cai como uma espécie de bênção dos céus.

Que ele vá ficar para a História com a designação oficial de "Tratado de Lisboa", e seja assinado na capital do nosso país e no Mosteiros dos Jerónimos (símbolo do universalismo português e europeu) , é motivo de particular satisfação e orgulho. Espero que na cerimónia solene da assinatura alguém se lembre de incluir o Hino à Alegria de Beethoven.


Tratado Reformador permite pena de morte

JOÃO PEDRO HENRIQUES

O Tratado Reformador permite afinal a pena de morte nalgumas circunstâncias (tempo de guerra).

Esta possibilidade contradiz declarações expressas da UE. A mais recente foi da presidência portuguesa, para assinalar o Dia Mundial contra a Pena de Morte (10 de Outubro). "A União Europeia reitera a sua oposição de longa data à pena de morte em quaisquer circunstâncias."

Tudo está relacionado com a Carta dos Direitos Fundamentais, cujos princípios são "reconhecidos" no tratado (excepto para o Reino Unido e a Polónia, que não a subscrevem). O artigo 2.º é claríssimo: "Ninguém pode ser condenado à pena de morte, nem executado."

A carta retoma, em parte, a CEDH (Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais), do Conselho da Europa. E assim como foram recuperados artigos da CEDH, também foram recuperadas "anotações" interpretativas, o que foi feito pelo presidium da Convenção Europeia (estrutura que preparou a reconfiguração institucional da UE que resultou agora no Tratado Reformador).

Estas "anotações" dizem que a "morte não é considerada como infligida em violação" do artigo que proíbe a pena capital se ocorrer em determinadas circunstâncias: "para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra a violência ilegal"; "para efectuar uma detenção regular ou para impedir a evasão de uma pessoa regularmente detida"; para "reprimir, de acordo com a lei, uma revolta ou uma insurreição". E também admite que "um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte para actos cometidos em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra". As "anotações" não têm valor jurídico. Contudo, o artigo 6.º do Tratado determina que os "princípios" consagrados na carta devem ser "interpretados" tendo-as "na devida conta".

O eurodeputado português Miguel Portas (Bloco de Esquerda) já levou esta questão ao Parlamento Europeu. Em 10 de Outubro recordou o facto de, nesse mesmo dia, Sócrates e Durão terem discursado contra a pena capital: "Com que autoridade, se patrocinam um tratado que a admite, agora pela porta do cavalo?"

Nenhum país da UE permite a pena capital. A Espanha admite excepções em tempo de guerra. Na Polónia têm-se tentado restaurá-la. O Presidente Lech Kaczynski já apelou à UE para que reveja a sua política.

O protocolo 13 da CEDH impõe o fim da pena capital "em todas as circunstâncias". Espanha, Itália, Letónia e Polónia ainda não o ratificaram, apesar dos apelos de Durão Barroso.

O DN tentou, em vão, obter um comentário da presidência portuguesa da UE.

DN, 22-10-2007
 
O TRATADO DE LISBOA CONTADO ÀS CRIANÇAS E AO POVO

Pedro Lomba
jurista
pedro.lomba@eui.eu

Era uma vez uma associação de Estados chamada União Europeia a que Portugal tem presidido no segundo semestre de 2007. Segundo as regras da associação, não muito diferentes das de um condomínio residencial, a administração rodava de vez em quando entre os seus membros, de modo que qualquer Estado, mesmo destituído de tamanho ou peso, assumia ciclicamente essas funções. O primeiro- -ministro de Portugal, um tal de José Sócrates, andava eufórico com a experiência. Pela primeira vez reunia-se com altas personagens da política europeia. Queria brilhar neste seu novo papel de líder da Europa e estava disposto a fazer tudo o que fosse necessário para cumprir o guião que lhe puseram à frente.

A associação União Europeia atravessava uma fase difícil. Nos últimos anos tinham entrado novos membros do Leste, alguns turbulentos como a Polónia, e o grupo estava agitado com as mudanças de funcionamento que eram necessárias para incorporar toda a gente. Depois, alguns povos da Europa tinham rejeitado há uns anos em referendo um texto jurídico pomposamente intitulado Constituição Europeia. O fracasso da Constituição nunca foi bem digerido. O sentimento oficial era de crise, de falta de rumo, de impasse.

Então, alguém teve uma ideia: fazer um tratado que incorporasse 90% da Constituição falhada, mantendo o que já existia e introduzindo algumas inovações: um presidente fixo em vez da regra das presidências rotativas, uma comissão mais pequena, um ministro dos Negócios Estrangeiros e um método de votação que preservava o poder dos Estados grandes, ao mesmo tempo que penalizava os estados médios (como Portugal). O tratado foi concluído sem particular demora ou divergência. De imediato instalou-se a euforia. Portugal oferecia, com generosidade, a uma Europa doente um novo tratado unificador e um líder messiânico: o nosso José Sócrates. A "Nova Europa" nascia em Lisboa.

No meio da festa, no circo de felicitações, no exercício de relações públicas em que a União Europeia se tem tornado, quase ninguém parou para reflectir sobre o tratado que se chamará, para nosso orgulho vazio, Tratado de Lisboa. Pois, era uma vez um tratado largamente dispensável, que pouco inova em relação aos tratados anteriores, que onde inova criará novos e sérios problemas (já se vê o conflito entre o futuro presidente permanente e o presidente da Comissão Europeia), que prejudica os interesses de Portugal e que não resolve nenhum dos problemas críticos da União Europeia: a estagnação social e económica, o afastamento das populações, o défice de legitimidade e de democracia.Mas o ambiente geral era de alegria. Como no interior do Titanic antes de bater no icebergue.



A ARTE DO POSSÍVEL

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Se a política é a arte do possível, o Tratado de Lisboa é exemplar. Da Constituição Europeia, como instrumento vigoroso da utopia federalista, até à versão light e indolor de um Tratado simplificado, que fugisse ao escrutínio do cidadão europeu e limasse as asperezas das negociações difíceis, sem ilusões nem utopia, vai todo um caminho de pragmático conformismo.

Quando o bloco soviético se desfez - já lá vão mais de 15 anos - interrogo-me se os euro-burocratas se aperceberam do que, então, se podia e devia esperar da Europa? O mundo desorganizou-se, a ordem internacional vigente mostrou-se desadequada, os conflitos retomaram uma matriz regional, étnica, religiosa, o poder fragmentou-se como se precedesse uma nova Idade Média.

Enquanto os Estados Unidos tentavam assumir a liderança com os resultados conhecidos, a Europa na sua versão jurídica e burocrática discutia em circuito fechado e procedia à sua tarefa preferida, de tudo regulamentar, desde a proibição das colheres de pau até à extinção dos "jaquinzinhos". A 11 de Setembro de 2001, data em que verdadeiramente começou o século XXI, sob o signo da incerteza e da insegurança, o modo como a UE lidou com esta nova realidade ficou patente nas posições dos seus mais importantes Estados membros. Posições que reflectiam alianças seculares sobre as quais cada um construíra a sua independência e se defendera do vizinho do lado.

Ficou claro que a Europa é uma coisa e a UE outra. Que é fácil fazer uma união económica entre países com interesses comuns, mas difícil fazer uma união política entre países com histórias bem diferentes. A UE regulamentou mas não conseguiu criar políticas consistentes em matéria de segurança comum ou relações externas. A tentativa de uma Constituição europeia, os recuos, os insucessos e a resposta dos cidadãos aos referendos colocou a euroburocracia e os responsáveis máximos num impasse de impotência e descrédito.

O alargamento extemporâneo foi como que uma fuga em frente, fragilizando a base de sustentação de uma construção complexa e difícil, descaracterizando o pouco que poderia constituir um núcleo de valores partilhados.

Até ao fim, e apesar deste comum sentimento, a "mercearia" impôs-se. Entre os grandes, porque nenhum se podia dar ao luxo de ficar para trás. Entre os pequenos, porque todos precisavam de uma aparência de boa negociação, senão mesmo de vitória, para salvar a face.

Afinal, é ao governo da sua mercearia que cada um se candidata e é na sua mercearia que cada um de nós vive e vota. É o desemprego, a pobreza, o mau funcionamento do sector público, as insuficiências dos sistemas de saúde ou de educação da nossa mercearia que nos atingem e afligem.

O Tratado de Lisboa (a existir que seja de Lisboa...) é a versão possível e formal dessa unidade política, cumprindo o imperativo de pôr fim a um impasse que desgastou a imagem da UE e a distanciou, ainda mais, dos seus cidadãos. E também por isso, o Tratado é inócuo, porque reflecte estas circunstâncias. Duvido que tenha consequências sérias. Se assim for, será alterado, revogado, posto em causa pelos "Senhores", poucos e sempre os mesmos, que nunca perderam de vista os interesses dos seus países e não precisam de fundos.

Até porque, entretanto, o mundo mudou de vez e ainda não sabemos como vai ficar. Nesta nova conjuntura mundial emergem quatro novos poderes: Brasil, Rússia, Índia e China, pondo termo ao modelo único da hegemonia americana pós-Guerra Fria. É o BRIC.

O Brasil e a Índia são democracias mais ou menos funcionais, nacionalistas e com fortes poderes económicos. A China é um Estado de partido único e capitalismo autoritário e a Rússia, detentora de grande poder energético, é um país politicamente fechado com um capitalismo igualmente autoritário, ambos com crescente força e atracção noutras áreas do mundo. Modelos todos eles contrários ao que, quer os Estados Unidos, quer a Europa, têm tentado impor como paradigma.

É por isso que, entre o Tratado e o BRIC, vou ficar de olho no último. Não é eurocepticismo, é lucidez. E oxalá me engane.

DN; 25-10-2007
 
OS TRÊS RISCOS

António Vitorino
jurista

Não surpreenderá o leitor que este artigo verse o Tratado de Lisboa. O acordo alcançado em Lisboa na semana passada põe fim a um ciclo de intenso debate institucional na União Europeia na própria noite em que se fechou o Tratado de Nice, em Dezembro de 2000.

Há que saudar o sucesso da presidência portuguesa, tanto dos seus responsáveis políticos como dos diplomatas envolvidos. Foi o triunfo do método e da perseverança, não isenta de arrojo. Ainda me lembro do cepticismo com que os "meios europeus" de Bruxelas receberam as palavras do primeiro-ministro José Sócrates na noite do Conselho de Junho que aprovou o mandato quando anunciou que a intenção era ter o acordo final já no Conselho informal de Outubro.

Pois bem, ele aí está, o acordo que culmina a mais curta Conferência Intergovernamental da história da União. É verdade que tal se fica a dever porque se trabalhou com base no Tratado Constitucional e num mandato detalhado aprovado durante a presidência alemã. Mas só quem não está familiarizado com estas coisas europeias é que pode ignorar que a recta final é sempre a mais difícil porque é aí que cada país avalia o equilíbrio global do acordo e... se não estiver contente pode criar reais dificuldades!

Desta feita as coisas também se passaram assim. E o Tratado de Lisboa honra o perfil das três sucessivas presidências portuguesas da União.

Há contudo que não subestimar três riscos com que nos iremos confrontar no período de ratificação que se iniciará após a assinatura do Tratado previsto para 13 de Dezembro em Lisboa.

O primeiro risco é que a controvérsia sobre a forma de aprovação do Tratado acabe por diluir o conteúdo e as inovações do próprio Tratado. Decidir da forma de aprovação é sem dúvida uma questão importante. Mas parece-me avisado que Portugal postergue essa decisão para um momento posterior à assinatura do Tratado. A visibilidade que lhe advém de exercer a presidência acabaria por fazer da decisão portuguesa (que se quer livre e apenas em função dos nossos interesses como Estado) uma peça relevante do debate sobre a forma de aprovação noutros países. Evitar essa instrumentalização significa reforçar a nossa capacidade própria de decisão. E adoptá-la sem tibieza, assumindo todas as suas implicações na vida política interna.

O segundo risco tem a ver com a ilegibilidade do novo Tratado. Com efeito, o Tratado Constitucional teria decerto muitos defeitos, mas ao assentar numa preocupação de codificação dos tratados existentes fazendo-os convergir para um texto único, o defunto Tratado Constitucional era susceptível de uma leitura mais fácil e corrida. Ora a decisão tomada no mandato de Junho de abandonar a vocação constitucional do Tratado, mantendo a existência de dois tratados (o Tratado da União e o Tratado sobre o Funcionamento da União), com remissões recíprocas, e adoptando a técnica legislativa de emendas pontuais aos Tratados vigentes, tudo resulta numa dificuldade acrescida de leitura (e de compreensão) pelos não especialistas. O retorno à técnica clássica de redacção dos Tratados vai exigir um esforço de informação e de comunicação acrescido, desde logo pela publicação de um texto suficientemente claro e preciso sobre as inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa. E isto independentemente da forma de ratificação que venha a ser escolhida entre nós.

Este esforço de informação faz parte também da resposta ao terceiro risco: o da deturpação do conteúdo real do Tratado. Vozes apocalípticas logo vieram dizer que vinha aí o directório das grandes potências europeias, que se tratava de impor o federalismo à força, que a Comissão iria definhar, que se estava a "militarizar" a Europa, inclusive que se estaria a fazer reentrar a pena de morte por via da Carta dos Direitos Fundamentais! Estas reacções típicas de especialistas em sound bites contam com a complexidade do Tratado como aliada, sabendo que a desmontagem destes "fantasmas" exigirá sempre tempo e muita pedagogia até que se possa repor a verdade ou delimitar a exacta dimensão das críticas assim formuladas.

Não será possível virmos a ter um debate racional sobre o Tratado?

DN, 26-10-2007
 
ACORDAR, PARA FAZER O QUÊ?

António Perez Metelo
Redactor principal

Um presidente do Conselho Europeu, José Sócrates, empolgado na defesa do acordo que acaba de ser alcançado, incitou os críticos do novo Tratado de Lisboa a acordarem e reconhecerem o impacto mundial que ele já teve pelo mundo fora.

Tipicamente, de Washington, nem uma palavra. Os Estados Unidos da América sempre olharam com cepticismo, senão mesmo com apreensão, os sucessivos passos que a CEE, primeiro, e a UE, em seguida, têm dado no sentido quer do seu alargamento quer do seu aprofundamento. São conhecidas as posições públicas de grandes nomes do mundo da economia teórica ou dos grandes negócios nos EUA a vaticinarem o fracasso inevitável do euro, por exemplo. Ao ponto de Alan Greenspan, no seu novo livro, reconhecer o seu erro e louvar a caminhada da moeda única europeia como uma grande história de sucesso. O silêncio da hiperpotência mundial espelha o desconforto da antevisão de que os EUA vão ter de concertar mais as suas posições na cena mundial com os europeus, seus aliados, mas não necessariamente seus seguidores.

As potências emergentes, ao contrário, vêem na construção de uma Europa forte um precioso aliado para a reforma de todas as instituições multilaterais a nível global. Uma reforma que lhes conceda um lugar à altura do papel que já estão em condições de desempenhar num mundo multipolar. A China, a Rússia, o Brasil, a Índia contam já hoje, sobretudo depois da intervenção no Iraque, com o contrapeso estratégico de uma Europa que todos eles gostariam de ver mais unida e actuante na cena mundial.

Internamente - sobre este ponto parece haver unanimidade -, a UE recria as suas instituições de forma a acomodar aqueles que, num futuro previsível, lhe vão bater à porta. Nos Balcãs Ocidentais há seis potenciais candidatos à entrada, somados à Turquia e à Ucrânia e a mais um ou outro potencial aderente, anunciam um alargamento, ao longo das próximas duas décadas, da UE a mais um bom terço dos seus membros actuais e a uns 40% adicionais na população englobada pelos mesmos direitos e deveres.

Mas essa é a perspectiva a longo prazo. De imediato, o Tratado de Lisboa tem de servir para a UE tomar decisões difíceis: fazer convergir as políticas energéticas nacionais e construir, neste campo, uma parceria estratégica com a Rússia; harmonizar as políticas nacionais de imigração e estabilizar as relações económicas, políticas e sociais com os vizinhos do Sul; fortalecer as componentes da segurança e da defesa, para reforçar a luta contra o terrorismo jihadista, dentro e fora das suas fronteiras; intervir a uma só voz na mediação de conflitos agudos, sejam eles a Palestina, o armamento nuclear do Irão ou a secessão do Kosovo.

Para tudo isto, é preciso que o Tratado de Lisboa seja ratificado em 2008. Como cada país entender que lhe convém. Desde que os 500 milhões de cidadãos, espalhados por realidades nacionais muito diferenciadas, saibam bem para que é que vale a pena estar acordados.

DN, 26-10-2007
 
ACORDAR, PARA FAZER O QUÊ?

António Perez Metelo
Redactor principal

Um presidente do Conselho Europeu, José Sócrates, empolgado na defesa do acordo que acaba de ser alcançado, incitou os críticos do novo Tratado de Lisboa a acordarem e reconhecerem o impacto mundial que ele já teve pelo mundo fora.

Tipicamente, de Washington, nem uma palavra. Os Estados Unidos da América sempre olharam com cepticismo, senão mesmo com apreensão, os sucessivos passos que a CEE, primeiro, e a UE, em seguida, têm dado no sentido quer do seu alargamento quer do seu aprofundamento. São conhecidas as posições públicas de grandes nomes do mundo da economia teórica ou dos grandes negócios nos EUA a vaticinarem o fracasso inevitável do euro, por exemplo. Ao ponto de Alan Greenspan, no seu novo livro, reconhecer o seu erro e louvar a caminhada da moeda única europeia como uma grande história de sucesso. O silêncio da hiperpotência mundial espelha o desconforto da antevisão de que os EUA vão ter de concertar mais as suas posições na cena mundial com os europeus, seus aliados, mas não necessariamente seus seguidores.

As potências emergentes, ao contrário, vêem na construção de uma Europa forte um precioso aliado para a reforma de todas as instituições multilaterais a nível global. Uma reforma que lhes conceda um lugar à altura do papel que já estão em condições de desempenhar num mundo multipolar. A China, a Rússia, o Brasil, a Índia contam já hoje, sobretudo depois da intervenção no Iraque, com o contrapeso estratégico de uma Europa que todos eles gostariam de ver mais unida e actuante na cena mundial.

Internamente - sobre este ponto parece haver unanimidade -, a UE recria as suas instituições de forma a acomodar aqueles que, num futuro previsível, lhe vão bater à porta. Nos Balcãs Ocidentais há seis potenciais candidatos à entrada, somados à Turquia e à Ucrânia e a mais um ou outro potencial aderente, anunciam um alargamento, ao longo das próximas duas décadas, da UE a mais um bom terço dos seus membros actuais e a uns 40% adicionais na população englobada pelos mesmos direitos e deveres.

Mas essa é a perspectiva a longo prazo. De imediato, o Tratado de Lisboa tem de servir para a UE tomar decisões difíceis: fazer convergir as políticas energéticas nacionais e construir, neste campo, uma parceria estratégica com a Rússia; harmonizar as políticas nacionais de imigração e estabilizar as relações económicas, políticas e sociais com os vizinhos do Sul; fortalecer as componentes da segurança e da defesa, para reforçar a luta contra o terrorismo jihadista, dentro e fora das suas fronteiras; intervir a uma só voz na mediação de conflitos agudos, sejam eles a Palestina, o armamento nuclear do Irão ou a secessão do Kosovo.

Para tudo isto, é preciso que o Tratado de Lisboa seja ratificado em 2008. Como cada país entender que lhe convém. Desde que os 500 milhões de cidadãos, espalhados por realidades nacionais muito diferenciadas, saibam bem para que é que vale a pena estar acordados.

DN, 26-10-2007
 
UM PASSO ATRÁS, DOIS EM FRENTE?

Manuel Maria Carrilho

Ao inventar-se como forma política, a Europa criou, ao longo dos últimos 50 anos - nas políticas, nas instituições e nos procedimentos -, o seu próprio labirinto, tão perturbador quanto sedutor. É por isso que, como no labirinto da mitologia clássica, às vezes precisamos de um "fio de Ariana" para o percorrer em todas as suas singularidades e para o avaliar em todo o seu potencial. É o que tentaremos encontrar.

A inspiração elitista

O tratado reformador, acordado em Lisboa, conseguiu ultrapassar o impasse criado pelo "não" dos povos francês e holandês nos referendos de 2005. Mas se o conseguiu, fê-lo apelando ao mais testado expediente da história da União Europeia: o recurso ao seu elitismo genético, sem o qual - é bom ter isto presente - ela provavelmente nunca teria sequer visto a luz do dia.

Pode-se gostar ou não gostar, mas as coisas são como são: a União Europeia é o resultado do empenho de uma minoria de políticos inconformistas, experientes e visionários. Ela é o fruto da contínua inovação política das suas elites, que contudo vivem desde o seu início divididas entre duas inspirações que se confrontam: o vanguardismo voluntarista, por um lado, e o realismo pragmático, por outro.

O tratado constitucional rejeitado em 2005 reflectia a primeira dessas orientações, em Lisboa ganhou claramente a segunda. Mas são vitórias e derrotas sempre parciais e relativas, quase cúmplices, uma vez que a Europa se tem na verdade construído misturando elementos daquelas duas inspirações, num sofisticado jogo de forças que, acima de tudo, aposta na preservação da originalidade da sua própria forma política.

Ou seja: a Europa não é nem será um Estado, não é nem será uma federação de Estados. Ela é, e só pode continuar a ser, uma singular União de Estados, uma forma política nova e inovadora que baqueará sempre que for submetida ao espartilho das formas políticas tradicionais, seja no que se refere à soberania ou à cidadania, seja no que diz respeito à representatividade ou à legitimidade.

Porque, hoje, a soberania não é absoluta mas operatória, a cidadania não é uma evidência mas uma interrogação, a representatividade ganhou em extensão o que perdeu em vigor e a legitimidade tornou-se mais frágil ao procurar ser mais transitiva.

A diferença europeia

É que os conceitos também têm, como tudo, uma história. Uma história que se liga a outras histórias, dos povos e das instituições, da tecnologia e das culturas, entre tantas mais.

Por isso, falar da Europa a partir de noções dos séculos XIX ou XX é realmente uma pura perda de tempo, tão frequente como inútil. Mais, é passar inteiramente ao lado de alguns aspectos decisivos do caso europeu, de que destaco apenas três.

Em primeiro lugar, o facto de, com o alargamento, e apesar do tão badalado "impasse" dos últimos anos, a União Europeia ter - ao contrário do que se temia, e ainda se diz - acelerado significativamente os timings dos seus processos de decisão (exemplificando: a duração média dos procedimentos legislativos caiu de 18 para menos de 12 meses, e a percentagem de textos adoptados à primeira leitura subiu de 21 para 64).

Em seguido lugar, o facto de a Europa nascer e viver de valores próprios e diferenciadores, tão importantes como os que se referem ao emprego ou à segurança, à cultura ou à religião, à igualdade ou à imigração, à mobilidade ou ao uso da força nas relações internacionais. Estes valores são os que definem as principais expectativas e opções políticas dos cidadãos: a Europa partilha-os na sua diversidade interna, e assume-os em contra ponto com os valores dominantes noutras áreas do globo, por exemplo, nos Estados Unidos da América ou no Oriente.

Em terceiro lugar, o facto de a construção europeia assentar, desde o seu início, na adopção de um método completamente sui generis - o método comunitário - e na explícita preferência por regras e normas obtidas por laboriosos consensos, que permitem ultrapassar, sem a abolir, a soberania dos Estados.

Passos de gigante

A Europa inventou-se assim. Por isso, o balanço da União Europeia não deve fazer-se nunca à luz dos episódios político-mediáticos mais ou menos circunstanciais, mas sempre na perspectiva e à escala da história.

E a essa escala o balanço é impressionante, os passos dados foram realmente passos de gigante. Encontramos de resto aqui a razão que faz com que, hoje, um dos principais problemas políticos da União Europeia seja o da assimilação, o da metabolização do seu enorme capital de "adquiridos", por parte dos cidadãos da União.

Assim, se alguma viragem profunda se espera do tratado acordado em Lisboa, é, por um lado, que ele previna as fugas em frente com que tantas vezes se procurou iludir os problemas e compensar a falta de uma visão estratégica. E, por outro lado, que ele clarifique não só o modo como a Europa vai responder política, económica e culturalmente ao mundo globalizado, mas também a forma como vai agora falar com os seus cidadãos.

A presidência portuguesa soube preparar e executar com talento o passo que se impunha, no sentido da difícil mas indispensável desconstitucionalização do problema criado pelo "não" dos referendos de 2005. O tratado de Lisboa ultrapassou o impasse institucional, tornando finalmente possível propor e debater as políticas de que a União Europeia tão urgentemente carece, em domínios como, por exemplo, a regulação dos mercados ou a produtividade, a imigração ou a investigação.

O que agora se impõe é repor a União Europeia na linha da sua complexa, mas eficaz, inspiração utópica, capaz de responder aos imensos desafios que tem pela frente: seja ao nível das políticas concretas, seja no plano da legitimidade democrática.

O que fica, pois, aberto, é saber se o hábil passo atrás que se deu em Lisboa se esgota na sua jubilação pontual, ou se ele antecipa, segundo a consagrada fórmula política, dois passos em frente.

DN, 5-11-2007
 
INVENTAR UM POVO A Europa no labirinto - II

Manuel Maria Carrilho

Os cidadãos europeus têm sido pouco sensíveis à crise da União Europeia, de que tanto se falou nos últimos tempos.

Esta indiferença resulta naturalmente do facto de a "crise" não se traduzir em dificuldades perceptíveis, em bloqueios visíveis para a generalidade das pessoas. Como já referi no meu texto de ontem, o timing das decisões até se acelerou, o que diz muito sobre os equívocos da situação. E o facto de o processo ainda se prolongar até 2009, de o novo quadro decisional só entrar em vigor em 2014, e de haver cláusulas de excepção até 2017, vai tudo no mesmo sentido.
A urgência das políticas

Em Portugal viveu-se este processo com a inquietação adolescente de quem se preocupa sobretudo com a garantia da sua mesada. E os dez milhões de euros diários que, na linha do que acontece desde 1986, continuarão a chegar justificam certamente esse estado de espírito…

Diga-se o que se disser, o que se passa é que hoje, na Europa dos 27, todos os povos definem a sua identidade nacional através da "sua" referência à Europa. A Europa não está lá fora, em Bruxelas, ela está dentro da cabeça de todos os europeus, e foi aí sem dúvida que as fronteiras mais profundamente se esbateram.

É por isso que o desafio europeu do século XXI começa agora, com a passagem aos actos - isto é, às políticas comuns efectivas - de tudo aquilo que o Tratado de Lisboa viabilizou: mais decisões por maioria qualificada, nova calibragem do peso dos diversos países, alto representante dos Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, personalização e mais estabilidade da presidência do Conselho, reforço do Parlamento Europeu.

Políticas que são urgentes se se pretende que a Europa tenha uma voz, e um papel, na globalização em curso. Políticas que implicam reformulações profundas nos domínios económico e financeiro e na estratégia diplomática da União Europeia. Mas também políticas que contribuam para que se caminhe no sentido de introduzir um novo factor na globalização, o da dimensão cultural entendida como a chave de uma efectiva compreensão entre os povos, que atenue o fosso civilizacional que o fim das distâncias físicas tão rápida e cruamente tem revelado existir no mundo.

O triplo impasse

A Europa precisa por isso, e justamente para responder aos desafios globais que hoje enfrenta, de estimular a constituição de um verdadeiro espaço público europeu.

Um espaço público que permita um maior conhecimento dos seus povos entre si, das suas histórias e das suas ambições actuais, que estimule projectos comuns e a multiplicação de contactos, nomeadamente nas áreas de maior criatividade, que consolide uma esfera própria de opinião pública e que robusteça a legitimidade política dos seus governantes e decisores.

Os europeus vivem hoje sob uma nova forma de soberania, que deixa "nas mãos" de Bruxelas muito do que até há pouco estava na alçada dos governos nacionais. Ora, reside aqui a origem do tão falado "défice democrático" da União Europeia: na multiplicação das decisões e de órgãos, de orientações e de escolhas, que escapam à vontade - e mesmo ao conhecimento - dos seus cidadãos.

Tudo se passa como se a UE vivesse num paradoxo permanente, em que a eficácia normativa e a legitimidade política não conseguissem nenhuma fórmula de convergência, criando-se assim - como diagnosticou Pascal Lamy (antigo comissário europeu e actual presidente da Organização Mundial do Comércio) - um ponto cego na construção europeia, que acaba por se manifestar num triplo impasse: de resultados, de projecto e de espaço público de representação e debate.

Referendo e povo europeu

É neste quadro geral que a questão do referendo adquire todo o seu significado político: nacional, europeu e mundial.

Também aqui se foi buscar a solução do problema ao elitismo genético da UE, estabelecendo-se um compromisso para, nos limites do possível, a ratificação do tratado aprovado em Lisboa se fazer por via parlamentar.

Essa questão é naturalmente tanto mais sensível quanto mais ela choca com compromissos prévios explicitamente assumidos pelos governantes em funções - e são vários os líderes que se encontram nesta difícil situação.

Essa questão é também tanto mais perigosa quanto mais ela parece desafiar os direitos dos cidadãos, que - como recentemente o mostrava um importante estudo comparativo sobre o assunto, envolvendo dezasseis países - desejam cada vez mais oportunidades de participação política, independentemente da confiança que os sistemas políticos lhes mereçam.

Todas as sondagens o dizem: a maioria dos europeus desejam referendar o novo tratado da União Europeia. Mas também aqui a Europa, se não quer cair nas armadilhas do passado - e não deve fazê-lo -, tem de inovar e de estar à altura da originalidade da sua forma política.

Isso exigiria que o novo tratado fosse referendado, não numa lógica de maior ou menor conveniência nacional, mas numa estratégia de forte afirmação cosmopolita, capaz de apostar numa nova identidade global e num efectivo poder democrático transnacional.

O que o referendo deveria pois, ser, era um acto decisivo para o futuro da Europa, contribuindo para a instituição do "povo europeu" como entidade política. E uma convocação referendária de todos os países da União Europeia para um momento de decisão simultânea sobre o seu futuro comum, teria esse poder e esse efeito: o da invenção do povo que tanto tem faltado à Europa.

Nesta perspectiva, o novo tratado deveria ser referendado no mesmo dia em todos os 27 países da União. Uma tal opção teria, a meu ver, três grandes vantagens: a de impedir a contaminação da consulta popular europeia por temas nacionais. A de atenuar o défice democrático cada vez mais fortemente sentido e denunciado pelos cidadãos europeus. E a de contribuir para a instituição política do "povo europeu".

Povo singular é certo, mas sem o qual - como se viu, nos últimos anos, em todos os planos e em inúmeras situações - a Europa continuará aquém das suas reais possibilidades e das suas naturais expectativas.

DN, 6-11-2007
 
O que muda com o novo acordo?

O novo Tratado Reformador da União Europeia , assinado
esta quinta-feira em Lisboa, só deverá começar a ser
aplicado depois de 2009.
Se todos os Estados-membros ratificarem o documento, a
Europa passa a ter a partir de 2009 um Presidente com um
mandato de dois anos e meio, renovável por uma vez.
As presidências rotativas acabam tal como as conhecemos
até hoje e haverá, também, um ministro dos Negócios
Estrangeiros, embora com outra designação.
Com o objectivo de ser mais eficaz, a Comissão Europeia é
reduzida. A partir de 2014 deixará de haver um representante
de cada país e o presidente é eleito pelos eurodeputados,
sobre proposta do Conselho, tendo em conta os resultados
das eleições para o Parlamento Europeu.
O número máximo de eurodeputados é fixado em 750 mais
um, lugar que fica atribuído à Itália.
Portugal terá um total de 22 representantes, menos dois que
actualmente.
O Parlamento Europeu vê reforçados os poderes legislativos,
que divide com o Conselho de Ministros.
No processo de decisão no Conselho, o direito de veto é restringido.
A maioria qualificada é alargada a 40 áreas, nomeadamente,
imigração e relações externas.
O sistema de votação é simplificado, mas os grandes países
vêem reforçado o seu peso relativo.
Até agora, apenas está previsto a Irlanda realizar um referendo
ao novo Tratado Reformador, isto apesar de várias
formações políticas de vários países reclamarem consultas
populares.
A questão “referendo sim ou não” continua a ser motivo de
muita polémica ao ponto de em Bruxelas já se pedir à Presidência
Portuguesa que, antes de passar a pasta, esclareça o
que deve ser feito.
O socialista alemão Jo Leinen, presidente da comissão de
Assuntos Constitucionais do Parlamento Europeu, diz que o
Governo de Lisboa deve tomar uma posição clara e rápida
sobre a matéria.
O democrata-cristão alemão Elmar Brok vai mais longe e,
além de defender que a Presidência Portuguesa deve dar o
bom exemplo neste processo, avisa que, se o Governo de
José Sócrates avançar com um referendo, “arrisca destruir os
êxitos alcançados até aqui”.

Mil polícias garantem segurança

Os serviços de informações mantiveram o “nível 3” de
ameaça neste dia da assinatura do Tratado Reformador, nos
Jerónimos. A zona de Belém tem estado condicionada ao
trânsito
Na operação de hoje estão empenhados mil polícias, de todos
os departamentos, com destaque para todas as unidades
especiais: a segurança pessoal, o GOE, o Corpo de Intervenção,
o Centro de Inactivação de Engenhos Explosivos, além
do Trânsito, que uma vez mais terá um papel decisivo.
Os pontos mais sensíveis serão o Aeroporto, o itinerário entre
este e a zona de Belém, todo o perímetro daquela zona da
cidade – entre o Centro Cultural de Belém e o Museu dos
Coches – e ainda os hotéis das poucas comitivas que optaram
por passar uma noite em Lisboa.
No ar, a PSP volta a ter um posto de comando móvel instalado
num helicóptero cedido pela Empresa de Meios Aéreos.
A chamada “esterilização de instalações” que hoje têm sido
utilizadas pelos chefes de Estado teve duas vertentes: uma
específica para as vulnerabilidades electrónicas; outra para
as substâncias explosivas.
As autoridades fizeram primeiro a despistagem de mecanismos
electrónicos, que servissem, por exemplo, para escutas
ou outras intercepções ilegais.
Depois, já com o espaço livre de eventuais detonações à distância,
seguiu-se a procura de substâncias explosivas com
sensores de odores ou cães da PSP, treinados para a detecção
de explosivos.
Finalizada a vistoria, o espaço em causa foi selado, e a partir
daí só lá pôde entrar quem estivesse acreditado, e mesmo
assim, sempre acompanhado.

Entrada ao som de Leão

Os líderes da União Europeia, que assinam hoje o Tratado
de Lisboa, já se encontram nos Claustros do Mosteiro
dos Jerónimos, onde entraram ao som de uma música de
Rodrigo Leão.
A cerimónia, que será aberta com uma intervenção do primeiro-
ministro português, José Sócrates, deverá atrasar-se
cerca de 25 minutos, devido à chegada tardia aos Jerónimos
de alguns chefes de Estado e de Governo dos 27.

A mancha do “happy end”

Ângela Silva

Lisboa está hoje engalanada para acolher a assinatura do
Novo Tratado Europeu.
Para José Sócrates é o “happy end” de um semestre em
cheio em que Portugal, e sobretudo o Primeiro-ministro
português, estiveram em destaque na cena europeia.
Um sucesso, dizem os socialistas e poucos contestarão.
Pena é que não se aproveite esta conjuntura única para
fazer aquilo que já foi feito na esmagadora maioria dos
países da União, ou seja, para consultar os eleitores sobre
o futuro da Europa.
Há quase dez anos que os dois maiores partidos portugueses
embalam os eleitores com a vaga ideia de que mais
dia, menos dia, nos irão consultar sobre a Europa. PS e
PSD prometeram, na última campanha eleitoral que ouviriam
os portugueses em referendo sobre o futuro da
União, mas ambos meteram, aparentemente, a promessa
na gaveta.
Ontem, em Estrasburgo, José Sócrates foi vaiado por um
grupo de eurodeputados que exigia um referendo ao Tratado,
mas o Governo português continua fechado em
copas sobre se quer ou não referendar este Tratado de
Lisboa. Fala-se de compromissos que Sócrates terá assumido
com os seus parceiros europeus para que não haja referendo.
Mas é bom não esquecer que, antes desses compromissos,
o Primeiro-ministro já se tinha comprometido com
os eleitores portugueses, e é penoso ver como as garantias
dadas ao cidadão comum não valem um euro perante o
calculismo dos governos europeus.
Percebe-se o medo de ver a consulta aos cidadãos estragar
a festa. O “Não” seria uma mancha no Tratado de Lisboa,
mas não há maior mancha do que ter uma classe política
que muda de convicções como quem muda de camisa.
Durão Barroso prometeu referendar a Europa quando era
líder do PSD, José Sócrates repetiu a promessa quando se
candidatou a Primeiro-ministro e nenhum deles se pode vir
agora desculpar com Cavaco Silva. O Presidente é coerente,
porque sempre foi contra o referendo. Durão e Sócrates
é que se arriscam a ficar para a História como dois
líderes exímios em prometerem e não cumprirem.

Documento permite “nova aventura
europeia”, diz Sócrates

José Sócrates está confiante que o Tratado de Lisboa
permitirá "finalmente" à Europa vencer o seu impasse político
e institucional e lançar-se num novo momento da aventura
europeia. No discurso de assinatura do Tratado de Lisboa, o
detentor da Presidência da União Europeia lembrou que “a
superação desse impasse começou quando, enfrentando dúvidas
e incertezas, o trio das presidências [da UE] - alemã, portuguesa
e eslovena - assumiu como prioridade a elaboração de
um novo Tratado", disse, antes de elogiar a acção desenvolvida
pela chefe do Governo alemão, Angela Merkel, pelo presidente
da Comissão Europeia, Durão Barroso, e pelo presidente
do Parlamento Europeu, Hans-Gert Pottering.
Na perspectiva do presidente em exercício da UE, o Tratado
de Lisboa responderá a um desafio considerado central, o da
cidadania europeia, já que "reconhece o valor jurídico pleno"
da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
De acordo com José Sócrates, este texto reafirma o compromisso
da UE com os valores de identidade do projecto europeu,
a legalidade democrática, o respeito pelos direitos fundamentais,
as liberdades comunitárias, a igualdade de oportunidades,
a solidariedade Lisboa não representará o fim da história
da UE, porque "haverá sempre mais história para escrever".
"Mas este Tratado é um novo momento na aventura europeia e
do futuro europeu. E encaramos esse futuro com o ânimo de
sempre: seguros dos nossos valores, confiantes no nosso projecto,
reforçados na nossa União", sublinhou.

Segredos de um acordo

Maria João Rodrigues, uma das conselheiras de José
Sócrates para a Presidência Portuguesa da União Europeia,
revela os bastidores de um Tratado que foi difícil de conseguir.
Em declarações à Renascença, a antiga ministra de António
Guterres explica que a Polónia chegou a pôr em perigo o acordo
para a assinatura deste Tratado Reformador.
Aquando da Cimeira da União Europeia, realizada no Pavilhão
Atlântico, o Chefe do Governo de Varsóvia chegou mesmo a
pedir o adiamento das negociações.
Maria João Rodrigues recorda que “o Governo polaco tornou o
caminho tão difícil, que fomos postos perante a possibilidade
de adiar essa Cimeira”.
O argumento passava pela realização próxima de eleições
naquele país, mas “nós mantivemos tudo na data prevista,
fizemos pressão para que a decisão fosse tomada ali… e o
resultado está à vista”, explica.

RRP1, 13-12-2007
 
Tratado nasce no Mosteiro

O novo Tratado que define o funcionamento da União
Europeia foi assinado ao fim da manhã pelos líderes dos 27
países membros, nos Claustros do Mosteiro dos Jerónimos,
em Lisboa.
A assinatura do Tratado de Lisboa começou às 12h25 e terminou
às 12h50, com o representante do Reino Unido, o ministro
dos Negócios Estrangeiros, David Miliband, a ser o último
a assinar o documento.
Ao som de uma música do compositor português Rodrigo
Leão, o acto formal de assinatura do Tratado Reformador da
UE começou logo após as intervenções de abertura da cerimónia
dos presidentes das principais instituições da EU, ou
seja, após a intervenção do presidente do Parlamento Europeu,
o alemão Hans-Gert Poettering, que foi o terceiro a
discursar depois do primeiro-ministro português José Sócrates
e do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso.
Foram, depois, chamados (por ordem alfabética dos países)
os líderes dos “27”.
O primeiro-ministro belga cessante, Guy Verhofstadt, e o seu
ministro dos Negócios Estrangeiros, Karel de Gucht, foram os
primeiros a ser chamados e a assinar o Tratado de Lisboa.
A delegação de Portugal
foi a 21.ª a ser
chamada, tendo o
primeiro-ministro
José Sócrates e o seu
ministro dos Negócios
Estrangeiros, Luís
Amado, assinado o
Tratado de Lisboa às
12h45.
Os dois dirigentes
portugueses foram depois brindados com uma prolongada
salva de palmas dos restantes líderes da UE e dos convidados
presentes nos Claustros dos Jerónimos.
A assinatura do Tratado de Lisboa foi seguida a par e passo
por um batalhão de fotógrafos e operadores de câmaras de
TV e transmitida em directo por algumas das mais conhecidas
estações de televisão do mundo inteiro.
Documento permite “nova aventura europeia”
José Sócrates está confiante que o Tratado de Lisboa permitirá
à Europa vencer o seu impasse político e institucional e
lançar-se num novo momento da aventura europeia.
"A superação desse impasse começou quando, enfrentando
dúvidas e incertezas, o trio das presidências [da UE] - alemã,
portuguesa e eslovena - assumiu como prioridade a elaboração
de um novo Tratado", disse no discurso de assinatura.
Depois elogiou a acção desenvolvida pela chefe do Governo
alemão, Angela Merkel, pelo presidente da Comissão Europeia,
Durão Barroso, e pelo presidente do Parlamento Europeu,
Hans-Gert Pottering.
Na perspectiva do presidente em exercício da UE, o Tratado
de Lisboa responderá a um desafio considerado central, o da
cidadania europeia, já que
"reconhece o valor jurídico
pleno" da Carta dos Direitos
Fundamentais da UE.
De acordo com José Sócrates,
este texto reafirma o compromisso
da UE com os valores de
identidade do projecto europeu,
a legalidade democrática,
o respeito pelos direitos fundamentais,
as liberdades comunitárias,
a igualdade de oportunidades
e a solidariedade. Para o
Primeiro-ministro, o Tratado de
Lisboa não representará o fim
da história da UE, porque
"haverá sempre mais história
para escrever".
O Primeiro-ministro disse que este "Tratado é um novo
momento na aventura europeia e do futuro europeu. E encaramos
esse futuro com o ânimo de sempre: seguros dos nossos
valores, confiantes no nosso projecto, reforçados na nossa
União".
“Nasce uma Nova Europa"
O presidente da Comissão Europeia considera que a assinatura
do Tratado de Lisboa marca o "nascimento de uma nova
Europa" alargada a 27 Estados.
O chefe do executivo comunitário recordou os seis anos de
debate que foram necessários até se chegar ao Tratado de
Lisboa e felicitou a "contribuição excepcional" da Presidência
Alemã da UE (primeiro semestre de 2007), assim como a
"determinação e competência" da Presidência Portuguesa.
(segundo semestre).
Para o presidente da Comissão Europeia, o novo texto
"reforça" a capacidade da UE de agir e alcançar os objectivos
que definir (…) e também irá reforçar a democracia e o
método comunitário [de tomada de decisões], dando mais
competências ao Parlamento Europeu".

RRP1, 13-12-2007
 
Cavaco alerta para
custos de um fracasso

O Presidente da República adverte para o “preço elevadíssimo”
a pagar pela União Europeia, caso fracasse a ratificação
do Tratado de Lisboa por parte dos 27 Estadosmembros.
“Desperdiçar a oportunidade que o Tratado de Lisboa representa
constituiria um preço elevadíssimo para a União Europeia”,
alertou Cavaco Silva, na tradicional cerimónia de cumprimentos
de Ano Novo pelo Corpo Diplomático acreditado
em Lisboa, que decorreu esta manhã no Palácio Nacional de
Queluz.
A assinatura do Tratado de Lisboa, que substituiu a fracassada
Constituição Europeia - rejeitada em referendo na França
e na Holanda - foi o resultado que o Presidente da República
destacou do exercício semestral da terceira presidência portuguesa
da União, que terminou no dia 31.
O novo Tratado europeu já foi ratificado na Hungria, por via
parlamentar, opção que deverá ser adoptada pelos restantes
26 Estados membros, à excepção da Irlanda que tem de submeter
a ratificação do documento a referendo, por imperativos
constitucionais.
O Governo de Lisboa deverá anunciar em breve a sua decisão
sobre a forma de ratificação do documento em Portugal. Se
optar pelo referendo, a última palavra será do Presidente da
República, a quem compete convocar ou não a consulta
popular, de acordo com a Constituição portuguesa.

Nova advertência da presidência eslovena

O presidente em exercício da
União Europeia, o Primeiroministro
da Eslovénia, voltou
hoje a alertar o Governo português
de que a realização de um
referendo ao novo Tratado terá
também impacto noutros países.
Esta foi a avaliação, em jeito de aviso, feita hoje pelo Primeiro-
ministro da Eslovénia, que assume agora a Presidência
da UE, quando confrontado com a hipótese de Portugal decidir
submeter o Tratado Lisboa a consulta popular.
O Primeiro-ministro esloveno acrescenta que, ao tomar tal
decisão, o Governo do país em causa não pode estar apenas a
pensar na dimensão doméstica da questão, ressalvando, no
entanto, que a decisão cabe ao Governo português.
Depois de ontem ter reagido de forma mais negativa a esta
possibilidade de referendo, hoje o responsável esloveno foi
menos taxativo e mostrou-se confiante de que mesmo que
Portugal realize um referendo, os resultados serão positivos.
Depois do chumbo do projecto de Constituição, os líderes da
UE optaram por um tratado menos ambicioso, a pensar na
necessidade de evitar a realização de um referendo. Por isso,
um referendo num país cuja capital deu nome ao novo documento
pode ter um efeito de contágio a outros países, onde
o desenlace de semelhante consulta é tudo menos certo.
José Sócrates deverá anunciar, amanhã, no Parlamento, o
fim do seu tabu, uma revelação aguardada com expectativa
fora de portas. A última decisão será do Presidente da República
portuguesa, a quem compete convocar o referendo.
A Directora Adjunta de Informação da Renascença, Graça
Franco, considera que Cavaco Silva gostaria que esta questão
do Tratado de Lisboa fosse encerrada rapidamente e através
da ratificação parlamentar.
Por um lado, Sócrates, junto dos seus parceiros europeus,
pode mostrar créditos e dizer que tem com os portugueses
um pacto eleitoral que o obriga a fazer um referendo.
Se quiser ir por essa via, o Primeiro-ministro mostra que não
há risco nenhum, porque o maior partido da oposição já se
manifestou a favor da ratificação parlamentar e está obrigado
a fazer, no caso de referendo, campanha pelo "Sim". Também
o PP já disse que quer o referendo e fará campanha pelo
"Sim".
Por estes motivos, Graça Franco acredita que não há o menor
risco do Tratado não passar em Portugal.

RRP1, 8-1-2008
 
A DÚVIDA

Adriano Moreira
professor universitário

A principal dúvida que manifestam os responsáveis pelo que se procura que venha a ser o Tratado de Lisboa, que visa organizar uma governança europeia considerada urgente sobretudo para enfrentar o alargamento, diz respeito à opção pelo método de ratificação do texto.

Promessas, feitas numa conjuntura em que o recurso ao referendo parecia o modelo mais apetecido para afirmação da legitimidade, estão de novo a ser avaliadas com evocação quer da mudança dos tempos, quer da afirmada mudança da natureza do texto, mais seguramente pelo facto de a chamada Constituição, cujos autores se tomaram por convencionais constituintes, ter sido rejeitada pelo voto popular em França e na Holanda.

Esta rejeição foi repetidamente explicada pelos partidários dos convencionais com base no facto de o texto ser excessivamente complexo para o entendimento dos cidadãos, e, quanto aos princípios, porque não pode julgar-se a democracia representativa, que aponta para a ratificação pelos parlamentos, menos legitimadora e menos confiável do que o recurso à democracia directa.

Quanto à passada recusa popular da ratificação é credível que a orientação do voto tenha sido determinada sobretudo pela insatisfação em relação à política interna dos governos, manifestando deste modo o desagrado, mas não parece fora de propósito lembrar a distância que se tem verificado entre os eleitorados e a distante governança sedeada na lonjura de Bruxelas.

Neste debate, que de certo se vai animar à medida que se aproxima o fim do tempo das hesitações, perde-se talvez a lembrança daquilo que parece ser a principal questão do importantíssimo processo: que os interessados, que são os eleitores, tenham informação suficiente para compreender o que está em causa, no que respeita ao seu país, à sua Europa, à sua vida, ao seu trabalho, ao resto dos seus dias, ao futuro dos seus filhos.

Não são porém dificuldades de entender o texto organizado por técnicos versados nas complexidades e minúcias dos acordos e compromissos que justificam a opção entre parlamento e referendo.

A tradicional política furtiva, desenvolvida à margem da intervenção dos eleitorados nacionais e dos respectivos parlamentos, não resulta da complexidade dos textos normativos, para o entendimento e desenvolvimento dos quais os próprios governos vão continuar a recorrer a assessorias várias e a lidar com desencontradas interpretações judiciais, para além de as instituições europeias terem de reinventar os usos e costumes que harmonizam as competências, as tradições e as pretensões. Do que se trata, como acontece em todos os processos internos de eleição e mudança, é de seriar os problemas, de avaliar os interesses, de oferecer respostas, uma pregação pública de que todo o corpo de responsáveis políticos, que dependeram de eleições, têm possivelmente mais experiência do que necessitariam. Não parece haver memória de embaraços eleitorais que tenham sido causados pela meditação sobre a complexidade jurídica dos textos em que virão a ser compendiadas as respostas.

Aquilo que está em causa não é, em qualquer dos métodos, uma aula de interpretação jurídica ao cuidado dos doutos, é uma pública demonstração dos interesses em causa, dos riscos comparados do conservadorismo e da reforma, dos pontos fortes e fracos averiguados para um auditório que algumas vezes também terá mais experiência do que necessita de exercícios semelhantes. A legitimidade parlamentar não é inferior à legitimidade do referendo, estando a escolha dependente de muitas circunstâncias, entre elas os compromissos assumidos pelas formações políticas. Mas nenhuma destas pode dispensar-se, em tempo suficiente, e neste tema finalmente, de explicar ao eleitorado que interesses nacionais e europeus, que tabela de desafios, que prospectiva do mundo, e de vida vivida de cada um, levam a pedir a adesão a uma mudança proposta. O eleitorado tem experiência e sabedoria demonstradas para compreender isto. Não tem experiência e sabedoria que lhe permitam compreender a política furtiva que tem caracterizado o trajecto europeu.

DN, 27-11-2007
 
Tratado de Lisboa: uma ferramenta operacional

A Europa tem agora as mãos livres para se dedicar à questão central de definir o seu novo papel num mundo globalizado", afirmou ontem Angela Merkel, no Parlamento alemão. Esta é a questão central daqui para a frente, aberta pelo conjunto de reformas institucionais constantes do Tratado Reformador de Lisboa - que hoje vai ser assinado -, destinadas a arrumar uma casa que vai acomodar mais de três dezenas de inquilinos. Os tratados de Maastricht, Amesterdão e Nice foram fazendo obras parciais de reabilitação do edifício institucional, sem atingir a coerência operativa a mais longo prazo.

Pode argumentar-se que em Lisboa se vai dar um salto em frente com o mesmo alcance do falecido Tratado Constitucional, sem os símbolos próprios de poderes soberanos. O que não o reduz, como pretendem aqueles que advogam uma ratificação rápida e em força, a uma caixa de ferramentas operacional, sem a dignidade e a dimensão suficientes que justifiquem consultas referendárias.

O ponto polémico deste Tratado está na necessidade da sua entrada em vigor rapidamente para aumentar a coerência da projecção externa da União Europeia, o que faz com que não se consiga livrar da suspeição de os povos da Europa, se fossem consultados, poderem negar-lhe o apoio unânime. Por isso, provavelmente, vencerá o sentido prático da ratificação generalizada pela via parlamentar.

DN, 13-12-2007
 
O TRATADO REFORMADOR A QUEM O TRABALHA!

António Perez Metelo
Redactor principal

O Tratado Reformador da União Europeia, que a nomenclatura política nacional se envaidece em chamar Tratado de Lisboa, deverá saldar-se no aumento da democraticidade das instituições da União e no reforço dos direitos e do poder de intervenção política dos cidadãos europeus e dos seus parlamentos nacionais. Ao criar regras de funcionamento mais simples e ágeis numa UE a 27, torna-a mais eficaz e capaz de desempenhar um papel de maior relevo no mundo. Este é o mantra que enumera a bondade intrínseca deste compromisso político surgido, surpreendentemente, do fracasso do Tratado Constitucional.

Tudo isto não me parece simples propaganda. É mesmo plausível, à luz de realizações passadas ao longo dos últimos 50 anos neste Velho Continente, que, à partida, as análises mais rebuscadas votavam ao fracasso sem apelo e que, ao fim e ao cabo, se revelaram mais bem sucedidas do que os seus defensores imaginariam ser possível. O caso mais visível para o cidadão comum é o euro. A sua estabilidade e capacidade de implantação no concerto quase sempre desafinado das divisas a nível mundial é, hoje, um instrumento de afirmação política e financeira da UE à escala global.

Tudo isto será estupendo, mas convém não esquecer que este Tratado favorece aqueles que mais se mobilizam na partilha de soberania em cada vez mais sectores, com o fim de ganhar escala e potenciar poder negocial perante outras potências regionais ou emergentes. Portugal está espartilhado entre uma especialização produtiva que ainda não é do tipo da dos seus parceiros europeus mais avançados e uma estrutura de custos dos seus factores de produção que condenam à deslocalização e ao fecho as indústrias tradicionais não reestruturadas. Sair deste aperto é a tarefa central, por muitos e bons anos, da política económica dos governos deste país.

Para encurtar o período de reconversão produtiva, o País dispõe das verbas generosas do QREN, o próximo quadro comunitário de apoio. Mas vai ser necessário definir com precisão os interesses vitais, que uma globalização descontrolada continuará a pôr em causa. A Comissão Europeia tem de ser mobilizada contra práticas inaceitáveis a nível social, ambiental e cambial por parte de quem, em todas a latitudes, pretende ser tratado como igual.

O Tratado de Lisboa não ajuda quem se deita à sua sombra. Reciprocidade no acesso aos mercados e redução continuada de distorções cambiais de preços e de custos sociais e ambientais não assumidos têm de ser reivindicadas pela UE à escala global. Se o não forem, a voz única da Europa, capaz de a projectar como força a ser tida em conta, não nos serve para grande coisa... Mais aprofundamento da construção europeia e defesa mais afirmativa do interesse nacional, caso a caso, é a chave para fazer com que o Tratado de Lisboa seja bom para o País, que o viu nascer.

DN, 14-12-2007
 
IDENTIDADE E MUDANÇA

António Vitorino
jurista

A decisão de aprovar o Tratado de Lisboa por via parlamentar provocou, naturalmente, uma forte reacção crítica da parte daqueles sectores que são contra o próprio Tratado.

Compreende-se que contando o Tratado, à partida, com o voto favorável do PS, do PSD e do CDS, os seus opositores reencaminhem para a via referendária a esperança de impedir a sua entrada em vigor.

Claro que representando aqueles três partidos cerca de 90% dos eleitores e à luz das sondagens que indiciam um apoio muito vasto na opinião pública quer ao projecto europeu quer ao próprio Tratado de Lisboa, pode-se dizer sem grande margem de erro que quem pretende um referendo não acalenta verdadeiramente a esperança de que o voto popular viesse de facto a inviabilizar o Tratado.

Percebe-se, pois, que a defesa do referendo correspondia ao objectivo de protelar o processo de aprovação do Tratado de Lisboa em Portugal e assim dar alento a todos os que noutros países se opõem à sua aprovação e reivindicam a realização de referendos.

Do mesmo modo o recurso a um referendo acalentaria a expectativa de vulnerabilizar a legitimidade do Tratado no caso - aliás provável - de acabarem por acorrer às urnas menos de 50% dos portugueses, à semelhança do que sucedeu em todos os três referendos já realizados entre nós, inclusive naqueles casos em que o assunto provocava uma polarização mais relevante na sociedade portuguesa, como no referendo sobre o aborto.

Em Espanha, o referendo sobre o Tratado Constitucional registou cerca de 70% de votos favoráveis mas apenas 38% de participação.

Por isso a argumentação dos críticos da aprovação parlamentar assenta na alegada violação de um compromisso eleitoral. O que suscita a questão da identidade entre o defunto Tratado Constitucional (em relação ao qual se reportava especificamente o compromisso eleitoral) e o novo Tratado de Lisboa.

Ora, a principal diferença entre os dois consiste precisamente na sua natureza essencial.

O Tratado Constitucional tinha uma ambição refundadora da própria União Europeia. Substituía os tratados anteriores em bloco por um novo texto único que, em cerca de dois terços, retomava as normas já actualmente em vigor, muitas delas mesmo desde o originário Tratado de Roma. Mas, porque se alterava o seu enquadramento qualitativo, passando a explicitar-se uma natureza constitucional à escala europeia, o Tratado Constitucional pressupunha uma renovação da legitimidade do conjunto do projecto europeu, recolocando-se à votação, fosse por via referendária fosse por via parlamentar, todas as normas do acervo comunitário.

Esta ambição constitucional, esta dimensão refundadora foi, aliás, um dos principais argumentos usados contra a sua aprovação, quer naqueles países que fizeram referendos negativos (França e Holanda) quer entre nós. Nessa ambição constitucional os seus críticos identificavam uma opção federalista ou um rumo de construção de um "superestado" europeu que almejaria substituir, a prazo, as soberanias nacionais.

Eliminada a ambição constitucional no Tratado de Lisboa, deixada cair a vontade de refundação da União expressa num Tratado único auto-intitulado de Constitucional, compreende-se mal que quem tão veementemente criticou tais opções venha agora silenciar esta diferença ou degradar a sua importância em nome do objectivo de defender a submissão do Tratado de Lisboa a um referendo popular.

No que à substância das políticas diz respeito o Tratado de Lisboa também apresenta alguns traços relevantes que o diferenciam do Tratado Constitucional, quer no que diz respeito às condições de aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais e das regras jurídicas do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (incluindo as regras sobre o espaço Schengen) quer no que diz respeito à política externa e de segurança comum.

Por contraste, o principal traço de identidade entre os dois tratados traduz-se nas inovações introduzidas na arquitectura institucional da União pelo Tratado Constitucional e que foram no essencial, embora com adaptações, retomadas no Tratado de Lisboa.

DN, 11-1-2008
 
JULGAMENTO

António Vitorino
jurista

A questão que John Kennedy colocava aos americanos no início dos anos 60 ("não perguntes o que é que a América pode fazer por ti, mas antes o que é que podes fazer pela América") é a questão que os europeus normalmente não se colocam sobre a Europa. Provavelmente não o fazem por diversas e, até nalguns casos, boas razões.

Mas em certa medida essa omissão corresponde à certeza de que se a União Europeia existe é decerto porque ela tem algo a dar aos europeus.

De forma mais explícita ou mais implícita, directa ou indirectamente, nestes 50 anos, os europeus foram integrando a construção política europeia numa narrativa que fazia apelo aos valores da paz, da consolidação da democracia e da promoção da prosperidade. Estes três valores genéticos explicam a continuidade do projecto europeu e a sua originalidade, que continua a ser um quebra-cabeças para os teóricos dos modelos políticos consolidados, bem como a sua força atractiva, consumada ao longo de sucessivos alargamentos.

A crise provocada pela rejeição em França e na Holanda do Tratado Constitucional europeu evidenciou que os europeus começavam a interrogar-se sobre se o projecto de integração ainda estaria à altura de responder às exigências daqueles três valores centrais num mundo global e em acelerada transformação.

O período de incerteza desencadeado pelo impasse constitucional permitiu, contudo, colocar estas dúvidas em perspectiva. Nem o Tratado Constitucional podia, por si só, ser responsabilizado por tamanha incerteza, nem o vazio criado pelo impasse foi preenchido por uma visão alternativa que deslocasse o centro de gravidade das soluções possíveis da incontornável necessidade de relançar o processo de integração por via da alteração dos Tratados.

É neste ponto que regressamos a Lisboa e ao Tratado que leva o nome da capital de Portugal.

Só os juristas (e mesmo assim apenas os mais fanáticos) é que acreditam que o que está na lei (ou nos Tratados…) está no mundo. Mas quando se trata de discutir o sentido de uma comunidade de países e de povos assente no direito, numa ordem jurídica própria e em regras de concertação de diferentes interesses entre Estados pela via do diálogo e da negociação num quadro institucional próprio, o regresso à base das bases, aos Tratados, é incontornável.

Por isso, a questão central não é a de saber se este Tratado de Lisboa é o melhor tratado do mundo. Mas antes, talvez mais modestamente, a de saber se este novo Tratado europeu é melhor que os anteriores.

E nesta avaliação, hoje tal como no passado, a pergunta dominante será ainda a de saber o que é que esta Europa, assim afirmada e progressivamente construída, pode dar aos europeus. Ora, sabendo que os tratados não mudam o mundo, aquela pergunta traduz-se em saber o que é que este Tratado de Lisboa pode permitir aos europeus que lhes seja dado a partir dele e com base nele.

Vistas as coisas deste modo, a resposta, sendo complexa nas suas especificidades, é no fundo simples. Este Tratado de Lisboa dá aos europeus, às instituições da União e aos seus Estados membros as bases incontornáveis para desenvolver um conjunto de políticas que nos permitam enfrentar melhor o mundo em que vivemos. Assim como recria um quadro de funcionamento que se pretende mais eficaz, mais ágil, mais transparente e sujeito a um controlo e a uma efectiva responsabilização democrática.

Contudo, um tratado, na frieza das suas regras e até na ambiguidade de algumas das suas soluções, não substitui a vida, a dinâmica da luta política a partir de diferentes visões das políticas a prosseguir e desenvolvida no quadro estabilizado das instituições previstas no tratado.

Ora é aqui, na vida sob a égide do Tratado de Lisboa, que tem cabimento a segunda parte da questão de John Kennedy: o que é que os europeus podem fazer pela Europa?

Sem prejuízo de voltarmos ao tema e para começo de conversa, uma coisa é muito clara: o que desde logo podemos fazer pela Europa é considerarmos como nosso dever cívico conhecer, nas suas grandes linhas, o Tratado de Lisboa. Porque só o conhecendo o poderemos efectivamente julgar.

DN, 18-4-2008
 
Crise internacional apressou Tratado de Lisboa

SUSETE FRANCISCO

PS, PSD e CDS aprovaram ontem Tratado de Lisboa

A Assembleia da República aprovou ontem o Tratado de Lisboa por uma expressiva maioria, com PS, PSD e CDS unidos no voto a favor do documento. PCP, BE e PEV votaram contra, apontando a perda de soberania nacional como o mal maior de um texto que dizem ser um "passo atrás" na construção europeia.

Num debate aberto pelo primeiro-ministro, acabou por ser a declaração de encerramento, a cargo do ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), a ditar a novidade da discussão. Luís Amado disse ontem no Parlamento o que nenhum responsável do Executivo tinha ainda afirmado de forma tão clara: "Estamos à beira de uma crise internacional muito grave". E disse mais - defendeu que este cenário contribuiu para a decisão dos líderes europeus de ratificar o Tratado nos parlamentos nacionais e não através de referendo. "Este cenário de crise mundial foi um argumento que pesou, quer na preparação dos compromissos que levaram ao Tratado, quer em relação à forma como os dirigentes políticos decidiram ratificar o processo pela via parlamentar e o mais rapidamente possível", referiu o ministro dos Negócios Estrangeiros.

"Num contexto de crise, os dirigentes europeus sentiram a responsabilidade de encontrar uma saída rápida para o impasse político na União", acrescentou Luís Amado, definindo os contornos desse contexto: "Uma crise com natureza e dimensão difíceis, com conflitos em várias partes do mundo. E uma crise financeira com um quadro muito complexo."

O Tratado e o 25 de Abril

Durante o debate, José Sócrates não poupou nos elogios ao Tratado, subscrito pelos 27 Estados-membros da União Europeia (UE) a 13 de Dezembro, durante a presidência portuguesa. "O Parlamento, casa da democracia, irá aprovar o Tratado de Lisboa hoje [ontem], antevéspera do 25 de Abril. Julgo que esta é uma forma particularmente feliz de comemorar a revolução democrática", referiu o líder do Executivo. Uma referência que não caiu bem nos partidos à esquerda do PS. "Do 25 de Abril resultou uma Constituição que define como princípio fundamental a soberania nacional", contrapôs o líder do PCP, Jerónimo de Sousa. Francisco Louçã também não deixou o assunto em branco: "Senhor primeiro-ministro convido-o a deixar ao 25 de Abril o que é do 25 de Abril".

Ratificação e soberania

A forma de ratificação do Tratado - pela via parlamentar e não por referendo - e a perda de soberania foram os dois grandes focos de divergência. Mas não entre os maiores partidos. PS e PSD partilham o entendimento de que o Tratado é um passo em frente para a Europa: "Este é um dia marcante para Portugal", referiu o líder parlamentar laranja, Santana Lopes.

PS e PSD não se mostraram unânimes num único ponto. Enquanto Sócrates se afirmou confiante que os portugueses estão bem informados, Santana considerou que tem "havido algum défice na difusão" do Tratado. O social-democrata Mário David anunciou uma proposta legislativa - o PSD vai propor a inclusão, no nono ano de escolaridade, de um "conteúdo curricular obrigatório" sobre a UE.

No CDS, apesar do voto a favor, foi notório o menor entusiasmo com o Tratado. "Satisfatório" foi como o classificou Paulo Portas, destacando o recuo no "projecto federalista" do tratado constitucional (bloqueado pelos nãos da Holanda e França). Mas o CDS manteve uma divergência de peso: "É um erro enorme que não se faça um referendo".

Mas foi à esquerda do PS que esta crítica tomou maior dimensão. "Nunca se esqueça que a soberania é do povo e que o povo há-de pedir a reposição dessa soberania", considerou Jerónimo de Sousa. O líder comunista defendeu também que Portugal "transfere para Bruxelas a gestão dos recursos biológicos marinhos". Uma questão que seria também levantada por Heloísa Apolónia, do PEV, com Sócrates a desmentir: o Tratado "não faz mais do que afirmar a actual competência da UE neste domínio." A perda de soberania seria ainda um tema focado pelo socialista Vitalino Canas: "Os poderes que são transferidos para as instituições da UE não se perdem, apenas se transformam: passam a ser exercidos em comum".

Num debate que pouco passou pela política partidária nacional, a excepção veio do BE. Francisco Loução evocou a ideia de fusão entre PS e PSD defendida por José Miguel Júdice. Sócrates respondeu: "Há uma crise no PSD e a culpa é do PS. Para esta esquerda, tudo é culpa do PS."

DN, 24-4-2008
 
AS POLÍTICAS NO TRATADO DE LISBOA

António Vitorino
jurista

A aprovação parlamentar do Tratado de Lisboa abre o caminho a que Portugal seja o nono país da União a concluir o processo de ratificação.

Em anterior escrito deixei claro que um Tratado, por si só, não muda o mundo. Mas o Tratado de Lisboa permite responder a duas questões centrais do futuro da União: que políticas beneficiarão de um novo impulso e que dinâmica gerará o novo quadro institucional.

Vejamos hoje as inovações do Tratado de Lisboa que giram em torno de quatro grandes áreas políticas.

Desde logo a política externa e de segurança, com especial relevo para a cooperação estruturada no domínio da defesa. Neste capítulo, além da alteração institucional que decorre da criação de um Alto Representante que simultaneamente preside ao Conselho das Relações Exteriores e que é vice-presidente da Comissão coordenador das relações externas em geral (comércio, desenvolvimento, ajuda humanitária etc.), a opção fundamental do Tratado de Lisboa é a de conferir à União uma coerência acrescida tanto no campo da acção político-diplomática como no domínio do relacionamento económico e financeiro com países terceiros.

Esta inovação assenta na circunstância de hoje a União ser o maior doador de ajuda ao desenvolvimento à escala internacional, além de representar o maior mercado interno regional, mas tal peso enquanto potência económica e civil não encontra correspondência na capacidade de intervenção política e diplomática.

A natureza de potência civil será, com o Tratado de Lisboa, complementada com uma componente de segurança e militar, permitindo assim prolongar a acção da política externa no específico domínio da resolução das crises internacionais e da segurança em sentido lato.

O modelo de cooperação estruturada em matérias de defesa (agência de armamentos, interoperabilidade de equipamentos, participação voluntária dos Estados em função de critérios de capacidade militar, partilha de equipamentos e desenvolvimento de sinergias em termos de projecção de forças e de emprego operacional conjunto, em coerência com as obrigações decorrentes da participação na Aliança Atlântica) apresenta-se como particularmente exigente e será, sem dúvida, um dos terrenos de eleição do desenvolvimento do projecto de integração europeia. Aos países que dele fizerem parte serão colocadas opções importantes em termos da organização e funcionamento das suas forças armadas.

O Tratado de Lisboa inova também na definição das bases legais necessárias à definição de uma política europeia de imigração (admissão de imigrantes legais e integração desses imigrantes nas sociedades de acolhimento) e no reforço da cooperação policial e judiciária na luta contra o terrorismo e o crime organizado transnacional, incluindo a criminalidade financeira.

Já no que concerne à política energética, o Tratado de Lisboa recolhe o essencial das inovações do defunto tratado constitucional, clarificando regras de solidariedade em termos de aprovisionamento e colocando especial ênfase nos ganhos de eficiência energética, tudo isto enquadrado na estratégia europeia de resposta às alterações climáticas.

Finalmente, no plano das políticas sociais, o Tratado de Lisboa clarifica os fundamentos do modelo económico europeu, definido como de economia social de mercado, retoma o objectivo do pleno emprego e consagra uma base legal que permitirá conciliar o acesso dos cidadãos aos serviços públicos com a lógica da liberalização dos mercados e com as regras de concorrência vigentes no mercado interno. A que acresce que a consagração da Carta dos Direitos Fundamentais, com a mesma força jurídica dos Tratados, consolida o reconhecimento, no mesmo plano de igualdade e de dignidade, dos clássicos direitos civis e políticos e dos direitos económicos e sociais, bem como alguns direitos ditos de quarta geração (como por exemplo os que têm a ver com o progresso da medicina e das biotecnologias).

Convenhamos que não são poucos os desafios que o Tratado de Lisboa coloca no plano das políticas da União. Assim haja a vontade de os utilizar plenamente!

DN, 25-4-2008
 
A Europa resistirá ao 'não' da Irlanda

É irónico que seja o país que mais ganhou com o processo de construção europeia a pôr agora em causa o Tratado de Lisboa. Este "não" irlandês reflecte sobretudo razões de política interna, como muitas vezes tem acontecido nos referendos sobre a Europa. Mas é também um claro sintoma do afastamento entre os cidadãos e a aliança de políticos e burocratas que rege os destinos da UE a 27. Até pela abstenção que se verificou - votou apenas um milhão de pessoas. O que quer dizer que o projecto europeu é ainda muito mal percebido, mesmo por povos que lucraram, e muito, com a sua existência. E isso é mau.

Quando aderiram à então CEE, os irlandeses eram pobres. Seguiram-se décadas de prosperidade, com a boa aplicação dos fundos e a forte aposta na educação e na atracção do investimento externo. O resultado foi brilhante. Mas o Tigre Celta mostrou-se agora mal-agradecido. Felizmente, a Europa está habituada a ultrapassar estes percalços, como se explica nas páginas 4 e 5. E tudo indica que, após o susto inicial, a UE continuará a desenvolver-se. Nem podiam, os outros 26 países que dela dependem, aliás, ficar reféns de um milhão de votos de protesto por razões pouco claras.

DN, 14-6-2008
 
Sócrates assume "derrota pessoal"

JOÃO PEDRO HENRIQUES e PATRÍCIA VIEGAS

Ratificação. Governo e PSD defendem que o processo deve continuar apesar do chumbo irlandês

"Com certeza é uma derrota pessoal para mim. É uma derrota para mim e para todos aqueles que se empenharam no Tratado de Lisboa e no projecto europeu. Todos [os líderes europeus] estarão tão desapontados quanto eu estou neste momento."

Falando na Figueira da Foz, ontem, José Sócrates reagiu assim ao 'não' irlandês ao Tratado de Lisboa. "Este resultado provoca um profundo desapontamento a mim e a todos aqueles que lutam por uma Europa mais forte, que ultrapasse a crise institucional e se afirme no mundo e dê um sinal de confiança à sua economia e ao seu futuro", acrescentou.

Sócrates salientou, no entanto, que o projecto europeu "precisa de avançar" e que o tratado é "essencial para que avance". "Não quero minimizar este resultado. É preciso encontrar uma solução que responda e resolva o problema", disse, insistindo na ideia de que deve avançar a ratificação noutros países.

No mesmo sentido falou, ao DN, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Manuel Lobo Antunes, admitindo uma repetição, mais tarde, do referendo - mas ressalvando que a decisão pertence ao Governo irlandês: "Temos o exemplo do Tratado de Nice, a situação é a mesma. O Tratado de Lisboa não está morto."

A recém-eleita líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, considerou estar-se perante uma "situação preocupante" e um "contratempo sério" na construção europeia. Mas, segundo acrescentou, o processo de ratificação "deverá continuar nos outros países".

Para a dirigente social-democrata, o "chumbo" e a elevada abstenção não significa que a Irlanda "não queira fazer parte da construção europeia", significa antes "que muitos aspectos e pontos [do Tratado] foram mal esclarecidos e entendidos". "Vamos serenamente esperar ultrapassar esta fase desanimadora."

Para o PCP, que falou através da eurodeputada Ilda Figueiredo, a situação é exactamente a oposta: o referendo "mandou para o caixote do lixo da história" o Tratado, uma "autêntica burla política, por tentar ressuscitar a Constituição Europeia que a França e a Holanda já tinham rejeitado".

O mesmo considerou Miguel Portas, do Bloco de Esquerda: o "Tratado de Lisboa acabou de morrer" e a palavra sobre o futuro da Europa deve ser devolvida a todos os cidadãos.

Já Paulo Portas, líder do CDS/PP, disse que agora "provavelmente terão que se negociar excepções ou alterações em função deste resultado". "A construção europeia não pode ser feita por decreto, não é um processo automático, tem que contar com os povos, não pode ser feito sem eles nem contra eles. Há uma dificuldade, é preciso ultrapassá-la com inteligência."

DN, 14-6-2008
 
ANGÚSTIA ATÉ À HORA DO CHÁ

Alexandra Carreira
Em Dublim

Tratado de Lisboa. A Irlanda rejeitou o Tratado de Lisboa em referendo e lançou a Europa de novo na incerteza. Apesar de o voto ter sido na quinta- -feira, só ontem, à hora do chá, é que foram divulgados os resultados oficiais: 53,4% de votos contra o texto assinado pelos 27, na capital portuguesa, em Dezembro. A maioria dos líderes da UE declarou que o tratado não morreu e que os outros 26 países devem ratificá-lo. 18 já o fizeram. Faltam oito. O caminho a seguir será delineado no Conselho Europeu dos dias 19 e 20. A Irlanda, apelidada de Tigre Celta pelo desenvolvimento económico, foi a única a referendar o tratado, por imposição da sua Constituição.

Resultados oficiais só foram divulgados por volta das 17.00

A contagem começa à 9.00. As primeiras notícias de que a RTÉ - televisão pública da Irlanda - dizia que "o tratado pode estar em perigo" começam a circular via SMS. Pelas 10.00, os primeiros resultados mostravam que com 10% dos votos contados, nenhuma circunscrição dava a vitória ao "Sim" no referendo ao Tratado de Lisboa.

No centro de contagem de votos de Dublim, em Ballsbridge, a máquina paralela montada pelos partidos em torno dos funcionários que desdobram os boletins retirados das urnas, permite ter uma imagem relativamente clara daquele que acabaria por ser o resultado - e, quiçá, do futuro do Tratado de Lisboa. Abre a urna, retira os boletins aos molhos, desdobra, junta em montinhos de "Sim" e de "Não". Na frente, a preencher tabelas estão uma espécie de "olheiros" dos partidos. Com atenção aos quadrados onde os eleitores tinham de colocar a cruz, em cima a do "Sim", por baixo a do "Não". É através deste estratagema que saem as primeiras projecções do dia.

Em barulho e cores de fundo, estão os apoiantes do "Não", também dentro do centro de contagens. Vestidos com camisolas encarnadas e autocolantes, como se ainda se tratasse de fazer comício. Sempre que deles se aproxima uma câmara de televisão, vêem-se saltos e gritos de guerra pelo "Não" a Lisboa. Mais quietos e espalhados pelos cantos do centro de congressos transformado para a contagem de votos, alguns representantes do "Sim". Eurodeputados, políticos nacionais. Meio sem reacção, só quando entra no pavilhão Declan Ganley, uma espécie de figura nacional pelo "Não", líder do movimento Libertas, se ouvem murmúrios abafados dos derrotados. "Lá vai ele como se fosse o vencedor de uma qualquer eleição", diz um assistente de um político do Fianna Fáil, o partido do Governo.

Ainda a meio da manhã, "é cedo para confirmar, mas se quer apostar em dinheiro, então, diria que sim, o "Não" é a melhor aposta". Resignado, Eoin Ryan, deputado no Parlamento Europeu, entrevistado pelo DN há uma semana atrás, diz-se "desapontado". A "reviravolta" de que falava há dias não se confirmou: "As pessoas preferiram acreditar nas mentiras".

A festa dos apoiantes do "Não" começou. "O povo irlandês decidiu na sua infinita sabedoria", diz Declan Ganley, à chegada a Ballsbridge, de mão dada com a mulher, sorridente, numa entrada a fazer lembrar o protocolo eleitoral americano. Contra todas as expectativas, mais de metade dos eleitores foram às urnas e deixaram os líderes irlandeses sem poder desculpar-se com a abstenção - ao contrário do que tinha acontecido com o escrutínio de 2001 ao Tratado de Nice, em que pouco mais de 30% dos irlandeses tinha votado.

"Agora, Brian Cowen, que é um homem capaz, tem um mandato muito forte da parte do povo irlandês para voltar a Bruxelas e renegociar este tratado", diz Ganley ao DN, envolvido por uma mancha de gente de vermelho que dá vivas aos resultados que, pouco antes, foram confirmados por fonte da Comissão Europeia, em Bruxelas.

Que fazer agora ao Tratado de Lisboa, que foi assinado em compromisso pelos 27 líderes em Lisboa, em Dezembro do ano passado? É a pergunta do dia. É a pergunta do mês, aliás, e, talvez mesmo, a pergunta para o resto do ano. "Isto era o plano B", lamenta Ryan, que leva a mão à cabeça. Os sinais de decepção e interrogação são evidentes naqueles que, adeptos do "Sim", vão passando pelo centro de contagem.

Para já, um novo referendo está fora de questão e "não está nos planos" do Governo liderado por Brian Cowen, anuncia ao início da tarde o ministro das Finanças, também em Ballsbridge, no exterior do centro de contagem, depois de ter sido expulso à força de gritaria por parte dos apoiantes do "Não". Numa reedição da música do grupo 2Unlimitted dos anos oitenta que dizia No, no, there's no limit, os que festejam já a rejeição anunciada do Tratado cantarolam No, no, there's no Lisbon.

A verdade é que ninguém acreditava, nem em Dublin, nem em Bruxelas, que três milhões poderiam mesmo neutralizar o futuro institucional de quase quinhentos milhões de europeus. "Nós sabíamos que ia ser muito difícil, mas nunca pensámos que este referendo ia dar a vitória ao 'Não'", confessa Ryan, para quem "vai ser muito complicado voltar à Europa e explicar porque é que os irlandeses votaram desta forma". Nada nem ninguém apaga os semblantes carregados dos líderes irlandeses. Um atrás do outro, reagem e repetem-se também. "É a vontade do povo", dizem, mas não coincide com a vontade da classe política que, apesar disso, terá de ser a primeira a ensaiar uma espécie de Plano C para o futuro institucional da União a 27.

Além de um problema para resolver em Bruxelas, perante os 26 colegas dos Estados membros, Cowen tem outro para dar conta dentro de portas. A esmagadora maioria dos políticos democraticamente eleitos no país votaram no "Sim" e envolveram-se numa campanha insonsa para promover o Tratado de Lisboa. O resultado não deixa margem para dúvidas, nem para desculpas, o "Não" ganhou com uma maioria clara, o que deixa o Executivo irlandês com um futuro problemático em termos de representação política no país. A deixa foi logo aproveitada pela cara mais conhecida do Sinn Féin em questões europeias, Mary Lou Macdonald. Ainda sem resultados oficiais, a eurodeputada da esquerda europeia convidou Brian Cowen a equacionar o futuro à frente do país.

"Eu não confiei no Governo, nem nos outros partidos, para me dizerem o que era melhor", diz um dos voluntários do movimento Cóir, do "Não".

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DN, 14-6-2008
 
ANGÚSTIA ATÉ À HORA DO CHÁ

Alexandra Carreira
Em Dublim

Tratado de Lisboa. A Irlanda rejeitou o Tratado de Lisboa em referendo e lançou a Europa de novo na incerteza. Apesar de o voto ter sido na quinta- -feira, só ontem, à hora do chá, é que foram divulgados os resultados oficiais: 53,4% de votos contra o texto assinado pelos 27, na capital portuguesa, em Dezembro. A maioria dos líderes da UE declarou que o tratado não morreu e que os outros 26 países devem ratificá-lo. 18 já o fizeram. Faltam oito. O caminho a seguir será delineado no Conselho Europeu dos dias 19 e 20. A Irlanda, apelidada de Tigre Celta pelo desenvolvimento económico, foi a única a referendar o tratado, por imposição da sua Constituição.

Resultados oficiais só foram divulgados por volta das 17.00

A contagem começa à 9.00. As primeiras notícias de que a RTÉ - televisão pública da Irlanda - dizia que "o tratado pode estar em perigo" começam a circular via SMS. Pelas 10.00, os primeiros resultados mostravam que com 10% dos votos contados, nenhuma circunscrição dava a vitória ao "Sim" no referendo ao Tratado de Lisboa.

No centro de contagem de votos de Dublim, em Ballsbridge, a máquina paralela montada pelos partidos em torno dos funcionários que desdobram os boletins retirados das urnas, permite ter uma imagem relativamente clara daquele que acabaria por ser o resultado - e, quiçá, do futuro do Tratado de Lisboa. Abre a urna, retira os boletins aos molhos, desdobra, junta em montinhos de "Sim" e de "Não". Na frente, a preencher tabelas estão uma espécie de "olheiros" dos partidos. Com atenção aos quadrados onde os eleitores tinham de colocar a cruz, em cima a do "Sim", por baixo a do "Não". É através deste estratagema que saem as primeiras projecções do dia.

Em barulho e cores de fundo, estão os apoiantes do "Não", também dentro do centro de contagens. Vestidos com camisolas encarnadas e autocolantes, como se ainda se tratasse de fazer comício. Sempre que deles se aproxima uma câmara de televisão, vêem-se saltos e gritos de guerra pelo "Não" a Lisboa. Mais quietos e espalhados pelos cantos do centro de congressos transformado para a contagem de votos, alguns representantes do "Sim". Eurodeputados, políticos nacionais. Meio sem reacção, só quando entra no pavilhão Declan Ganley, uma espécie de figura nacional pelo "Não", líder do movimento Libertas, se ouvem murmúrios abafados dos derrotados. "Lá vai ele como se fosse o vencedor de uma qualquer eleição", diz um assistente de um político do Fianna Fáil, o partido do Governo.

Ainda a meio da manhã, "é cedo para confirmar, mas se quer apostar em dinheiro, então, diria que sim, o "Não" é a melhor aposta". Resignado, Eoin Ryan, deputado no Parlamento Europeu, entrevistado pelo DN há uma semana atrás, diz-se "desapontado". A "reviravolta" de que falava há dias não se confirmou: "As pessoas preferiram acreditar nas mentiras".

A festa dos apoiantes do "Não" começou. "O povo irlandês decidiu na sua infinita sabedoria", diz Declan Ganley, à chegada a Ballsbridge, de mão dada com a mulher, sorridente, numa entrada a fazer lembrar o protocolo eleitoral americano. Contra todas as expectativas, mais de metade dos eleitores foram às urnas e deixaram os líderes irlandeses sem poder desculpar-se com a abstenção - ao contrário do que tinha acontecido com o escrutínio de 2001 ao Tratado de Nice, em que pouco mais de 30% dos irlandeses tinha votado.

"Agora, Brian Cowen, que é um homem capaz, tem um mandato muito forte da parte do povo irlandês para voltar a Bruxelas e renegociar este tratado", diz Ganley ao DN, envolvido por uma mancha de gente de vermelho que dá vivas aos resultados que, pouco antes, foram confirmados por fonte da Comissão Europeia, em Bruxelas.

Que fazer agora ao Tratado de Lisboa, que foi assinado em compromisso pelos 27 líderes em Lisboa, em Dezembro do ano passado? É a pergunta do dia. É a pergunta do mês, aliás, e, talvez mesmo, a pergunta para o resto do ano. "Isto era o plano B", lamenta Ryan, que leva a mão à cabeça. Os sinais de decepção e interrogação são evidentes naqueles que, adeptos do "Sim", vão passando pelo centro de contagem.

Para já, um novo referendo está fora de questão e "não está nos planos" do Governo liderado por Brian Cowen, anuncia ao início da tarde o ministro das Finanças, também em Ballsbridge, no exterior do centro de contagem, depois de ter sido expulso à força de gritaria por parte dos apoiantes do "Não". Numa reedição da música do grupo 2Unlimitted dos anos oitenta que dizia No, no, there's no limit, os que festejam já a rejeição anunciada do Tratado cantarolam No, no, there's no Lisbon.

A verdade é que ninguém acreditava, nem em Dublin, nem em Bruxelas, que três milhões poderiam mesmo neutralizar o futuro institucional de quase quinhentos milhões de europeus. "Nós sabíamos que ia ser muito difícil, mas nunca pensámos que este referendo ia dar a vitória ao 'Não'", confessa Ryan, para quem "vai ser muito complicado voltar à Europa e explicar porque é que os irlandeses votaram desta forma". Nada nem ninguém apaga os semblantes carregados dos líderes irlandeses. Um atrás do outro, reagem e repetem-se também. "É a vontade do povo", dizem, mas não coincide com a vontade da classe política que, apesar disso, terá de ser a primeira a ensaiar uma espécie de Plano C para o futuro institucional da União a 27.

Além de um problema para resolver em Bruxelas, perante os 26 colegas dos Estados membros, Cowen tem outro para dar conta dentro de portas. A esmagadora maioria dos políticos democraticamente eleitos no país votaram no "Sim" e envolveram-se numa campanha insonsa para promover o Tratado de Lisboa. O resultado não deixa margem para dúvidas, nem para desculpas, o "Não" ganhou com uma maioria clara, o que deixa o Executivo irlandês com um futuro problemático em termos de representação política no país. A deixa foi logo aproveitada pela cara mais conhecida do Sinn Féin em questões europeias, Mary Lou Macdonald. Ainda sem resultados oficiais, a eurodeputada da esquerda europeia convidou Brian Cowen a equacionar o futuro à frente do país.

"Eu não confiei no Governo, nem nos outros partidos, para me dizerem o que era melhor", diz um dos voluntários do movimento Cóir, do "Não".

EDIÇÃO COMPLETA EM PAPEL

DN, 14-6-2008
 
A ilha verde que adora livros

LEONÍDIO PAULO FERREIRA
Tigre Celta

Entraram em 1973, aquando do primeiro alargamento da Comunidade Económica Europeia (CEE), e faziam figura de parentes pobres perante os dois outros novos membros, a Dinamarca e o Reino Unido. Mas em apenas três décadas e meia os irlandeses tornaram-se um enorme caso de sucesso. A economia chegou nos anos 90 a crescer 10% por cento e em regra rondou os 7% ao ano. Graças a uma forte aposta da educação de qualidade e ao domínio do inglês pela população, o chamado "Tigre Celta" atraiu imensos investimentos de empresas de alta tecnologia, sobretudo oriundas desses Estados Unidos onde vivem hoje 40 milhões de descendentes de irlandeses (houve uma enorme vaga de emigração no século XIX, por causa da praga que atingiu a batata e deixou o país mergulhado na fome). Um bom exemplo das empresas estrangeiras a acreditarem no dinamismo da Irlanda é a Microsoft de Bill Gates, que escolheu Dublim para o seu quartel-general na Europa. E de país beneficiário das ajudas financeiras da CEE, e depois da União Europeia (UE), a Irlanda transformou-se num contribuinte líquido e o seu rendimento por habitante supera hoje claramente a média da UE a 27.

País de Joyce

Dublim adora James Joyce, o mais famoso dos escritores irlandeses, a tal ponto que todos os anos celebra a 16 de Junho o Bloomsday. É uma data em que milhares de pessoas se vestem como nas primeiras décadas do século XX, numa homenagem a Ulisses, o grande romance que Joyce publicou em 1922. Mas exemplo das injustiças em que a história do Nobel é fértil, o autor de Ulisses e de Dublinenses nunca venceu o mais prestigiado dos prémios literários mundiais. Um galardão, contudo, que foi atribuído a quatro outros irlandeses, um feito enorme para um país com pouco mais de quatro milhões de habitantes. O poeta Seamus Heaney recebeu o prémio em 1995. Antes dele já o tinham ganho Samuel Beckett, George Bernard Shaw e William Butler Yeats. Todos escreviam em inglês (no caso de Beckett igualmente em francês), mas os irlandeses também se orgulham do gaélico, a sua segunda língua oficial, de origem celta. E são um povo de grandes consumidores de jornais e de livros.

Música de Bono

O U2 são o maior fenómeno musical irlandês, graças a êxitos como Sunday, Blooody Sunday, mas também à personalidade do líder, Bono. De seu verdadeiro nome Paul David Hewson, e nascido em Dublin em 1960, o vocalista dos U2 começou por ser um campeão da causa dos republicanos norte-irlandeses para se assumir hoje sobretudo como um porta-voz dos direitos humanos e de África. Com mais de 170 milhões de discos vendidos em todo o mundo, o grupo tem mesmo assim a distinta companhia no panorama musical do país de nomes como Enya (75 milhões de discos) ou Van Morrison (55 milhões). Para não falar tam-bém de Sinéad O'Connor, dos Cranberries ou dos Corrs. E na dança, o grupo Riverdance é outro caso de sucesso internacional, ainda por cima apostando na música tradicional da ilha verde.

Adorada Guinness

Do bar Oxygen tem-se a mais ampla vista da velha Dublin. Fica no topo do edifício da Guinness, uma antiga fábrica convertida em museu hipertecnológico. Uma cerveja mítica, popular no mundo inteiro, que se produz desde o século XVIII e que se distingue pela sua cor negra. Dizem as más línguas que é feita com água do Liffey, o rio que atravessa Dublim, mas a fama nunca prejudicou a marca, apreciada quase de forma religiosa pelos irlandeses.

Católicos a sério

Graças a São Patrício (Saint Patrick para os irlandeses e para as suas numerosas comunidades nos Estados Unidos ou na Austrália, mas também Naomh Pádraig, em gaélico ), a Irlanda tornou-se cristã no século V. Depois, com a conquista pelos ingleses, a ilha resistiu sempre ao avanço do protestantismo e manteve-se fiel ao Papa. Com a guerra pela independência, tornou-se evidente que o lado republicano seria esmagadoramente formado por católicos (como Michael Collins ou Eamon De Vallera), enquanto os protestantes se mantiveram na sua maioria fiéis à Coroa Britânica. Descendentes sobretudo de escoceses, esses irlandeses protestantes conseguiram em 1921 que o Norte (Ulster) se mantivesse ligado a Londres, enquanto o resto da ilha conquistava a independência. A unidade nacional continua a ser um sonho irlandês por realizar, agora por via pacífica desde os Acordos da Sexta-Feira Santa (1998) que trouxeram o fim da luta terrorista do IRA na Irlanda do Norte.

Whiskey especial

Das muitas imagens de marca da Irlanda, desde os duendes verdes ao célebre trevo, vale a pena destacar o whiskey (sim, com "ey" para o distinguir do "y" solitário do whisky escocês). E a marca mais famosa de Dublim é a Jameson's (A Bushmill's produz-se a Norte). Verdadeiro mito é que são as três destilações que tornam o whiskey único, pois a maioria dos whiskys descoceses também o fazem.

Senhoras presidentes

A par de Malta, a Irlanda é o país europeu mais restritivo no acesso ao aborto. Uma consequência do peso histórico da igreja católica neste pequeno país cujo tamanho é dois terços o de Portugal. Mas se as feministas irlandesas protestam contra a limitação dos direitos das mulheres (e o facto de muita gente ter de ir à Inglaterra para abortar), a ironia completa é que a República da Irlanda não só tem uma presidente, Mary McAleese, como o seu antecessor foi outra mulher, Mary Robinson.

DN, 14-6-2008
 
Tratado de Lisboa vítima da armadilha da unanimidade

O "não" no referendo irlandês veio demonstrar que a construção da União Europeia foi apanhada na sua própria armadilha, a da unanimidade.

Um dos objectivos do Tratado de Lisboa é simplificar os processos de decisão com maioria qualificada em vez da praticamente impossível unanimidade numa Europa com 27 países e 500 milhões de habitantes. Ironicamente, a condição sine qua non para que este Tratado Reformador possa entrar em vigor é que todos os países o ratifiquem, isto é, a unanimidade. Como os líderes já sabiam que não seria uma tarefa fácil, acordaram fazê-lo pela via parlamentar, em vez de seguir a convocatória de referendos, o que levou ao fracasso da primeira Constituição Europeia, após as negativas francesa e holandesa. Por tanto, a consulta popular que tinha de ser celebrada de forma obrigatória na Irlanda, por razões constitucionais, transformou-se na grande prova de fogo da construção da Europa.

A 13 de Junho, seis meses exactos após o dia 13 de Dezembro - data em que os líderes europeus festejavam com satisfação o acordo alcançado no momento histórico que se viveu no Mosteiro dos Jerónimos - a sorte virou-se para o lado dos eurocépticos.

O processo de ratificação do Tratado sofreu um duro golpe que fez tremer a progressão política do continente. Desde o primeiro-ministro irlandês, Brian Cowen, até ao português, José Sócrates, ou o espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, sem esquecer o próprio presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, todos coincidiram em afirmar que a União Europeia não pode cair numa segunda crise institucional. Têm razão quando dizem que o referendo irlandês, em que foram chamados a votar perto de três milhões de eleitores, não pode - nem deve - ser representativo de uma Europa alargada, com 500 milhões de habitantes.

Porém, os nossos líderes também não podem esquecer que a Europa que querem construir é a Europa dos povos e dos cidadãos. Muitos dos que votaram "não" na Irlanda fizeram-no porque não perceberam o conteúdo do Tratado de Lisboa. A Europa não se pode construir sem as suas pessoas. Ironias do destino, cabe à França, país que rejeitou a fracassada Constituição, assumir a presidência rotativa e impedir que a União Europeia entre numa nova crise.

DN, 21-6-2008
 
Nem foi só um incidente nem a Europa acabou

Os dirigentes europeus tentaram, este fim-de-semana, em Bruxelas, resolver a crise provocada pelo "não" irlandês ao Tratado de Lisboa, apagando como podiam um fogo que eles próprios ajudaram a atear. Abdicando, por razões óbvias, de métodos mais brutais, decidiram então seguir um caminho que mistura a táctica da avestruz e a máxima de qualquer estudante em conflito com a aquisição de conhecimentos: adiar para amanhã (novo referendo na Irlanda em 2009, coincindindo com as eleições para o Parlamento Europeu) o que não pode ser resolvido hoje.

A presidência francesa tem, assim, um sinal de partida bem diferente do que Sarkozy imaginaria para um semestre com uma agenda gigantesca e, em parte, "lírica". E até um subitamente nostálgico Berlusconi, regressado aos Conselhos Europeus após uma breve travessia pelo deserto da oposição (que durou apenas dois anos e meio), se queixa de que, sem Blair, Aznar e Chirac, a alta Europa carece de brilho, "perdeu personalidade, protagonismo e deu passos atrás".

É claro que, em Itália, os críticos não deixaram de incentivá-lo a pôr antes ordem na coligação que chefia. Umberto Bossi, o líder da Liga Norte, cujos partidários festejaram ruidosamente o resultado do referendo irlandês, apressara-se a declarar morto o Tratado de Lisboa. E só não enterrado porque, convencido por Berlusconi, daria entretanto o dito por não dito. Nestes termos: "Se o Reino Unido não o tivesse aprovado agora, seria um tratado morto, mas, tendo-o feito, está vivo e julgo que nós próprios também o aprovaremos."

O "não" dos irlandeses ao Tratado de Lisboa provocou de imediato duas reacções diferentes no resto da União Europeia. A primeira, mais ou menos oficial, tentava desvalorizar o desaire, explicando que se tratou apenas de "um incidente". Nem uma catástrofe, nem o sinal de um impasse: um mero incidente numa caminhada irresistível para o sucesso. A segunda, periodicamente debitada, era taxativa: "A Europa acabou". Descontado o evidente exagero de uma e outra, não deixa de ser sintomática a oposição entre a euforia dos líderes na noite em que aprovaram o texto que sucedeu ao Tratado Constitucional (chumbado por referendos em França e Holanda, muito mais do que simples "incidentes") e o cepticismo de que dão mostras os liderados nas poucas vezes em que chamados a pronunciar-se. Com um abismo destes, não convém dizer-se "porreiro, pá" antes de tempo.

DN, 21-6-2008
 
ALGUÉM NOTOU?

Vasco Graça Moura
escritor

Não se dispõe de indicadores que não sejam impressionistas, mas a sensação com que se fica é a de que grande parte da opinião pública europeia reagiu com um misto de simpatia e indiferença ao "não" saído do referendo irlandês. Com simpatia, por ser difícil enjeitar a legitimidade e a clareza do posicionamento do eleitorado nessa consulta directa; com indiferença, por não haver sinal de grandes preocupações quanto ao futuro da Europa num conjunto de populações nacionais cada vez mais desmotivadas e alheadas em relação a ela.

Não será pois exagerado dizer-se que um hipotético "sim" irlandês não tinha esteios axiológicos ou políticos significativos no âmbito geral de uma União em que muito poucos se mostram convencidos de que o Tratado de Lisboa corresponda a uma necessidade premente.

Já nem é preciso falar do passe de ilusionismo que o Tratado representa em relação à Constituição abortada, acrobacia que mais não fez do que, por um lado, acentuar o divórcio e a desconfiança crescentes entre os cidadãos e as instituições da União Europeia e, por outro, confirmar as veleidades de formação de um directório de patente hegemonia franco-alemã para a Europa.

O que aconteceu na Irlanda deve ser pensado no plano dos princípios, sem necessidade de se extrapolar de umas questões para outras (referendo ou não referendo, países que ratificaram o Tratado ou países que o não fizeram), ao sabor dos diferentes ordenamentos constitucionais, das conjunturas políticas e dos interesses em presença.

Se a constituição irlandesa exige o referendo, a UE não pode penalizar a Irlanda, nem por realizá-lo, nem pelo resultado verificado, assim como não pode sancionar outros países em que o desfecho do processo de aprovação, por hipótese, venha a ser identicamente negativo. E a UE muito menos pode avançar para soluções parcelares de reconfiguração institucional. Tem de encontrar uma saída de outra natureza.

O problema é que já não basta a equiparação da legitimidade da aprovação parlamentar à legitimidade referendária, mesmo que tal equiparação fosse correcta na matéria e, no limite, ocorre um paradoxo que poderia enunciar-se assim: se toda a gente pensa que o Tratado de Lisboa chumbaria num referendo europeu, essa convicção torna-se um indicador político de desconfiança incontornável e por isso mesmo deixou entretanto de haver condições para o Tratado entrar em vigor a menos que tal referendo se faça. A Irlanda não fez mais do que tornar esta situação ainda mais visível e a aprovação do Tratado em cada um dos outros países ainda mais frágil.

A ressaca do referendo irlandês na comunicação social espelhou bem uma reacção a dois tempos por parte dos defensores do Tratado de Lisboa.

Primeiro, ouviu-se uma série de considerações severas e que iam quase todas na direcção de fazer impender sobre a Irlanda e o seu Governo a responsabilidade do encontro de uma solução, como se esta fosse uma simples questão do foro da intergovernamentalidade (!!!) e nada mais do que isso.

Depois, a atitude tornou-se mais nuancée e mais cautelosa, com pistas benevolentes avançadas para a compreensão do resultado, num clima em que passava a ser evidente o respeito por aquela manifestação de soberania. Era como se as "boas práticas" tivessem chegado à política por concessão graciosa daqueles mesmos que as tinham ignorado na altura em que impuseram o Tratado.

Como enquadrar pois a atitude irlandesa na perspectiva europeia, sem traumas, acusações ou rejeições e, sobretudo, sem pôr em causa os valores e princípios estruturantes, o equilíbrio do sistema e a dinâmica da construção da UE?

Na verdade, ninguém é detentor de uma boa resposta para esta questão, a não ser num sentido: o de que a prudência é, neste momento, a reacção mais aconselhável, sendo necessário muito tacto para agir nesta conjuntura e mais valendo partir-se do princípio de que o Tratado de Lisboa terá o mórbido destino da Constituição Europeia, o que é o mais provável.

E entretanto, surge uma boa pergunta: alguém notou que a Europa se tenha tornado ingovernável por falta do Tratado?

DN, 25-6-2008
 
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