21 janeiro, 2008

 

2008, ano vieirino


Padre António Vieira



http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Vieira

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=101

Comments:
2008 declarado “Ano Vieirino”

A Universidade Católica, a Universidade de Lisboa e a
Província Portuguesa da Companhia de Jesus declararam
2008 "Ano Vieirino", de modo a assinalar os 400 anos do nascimento
do padre António Vieira.
O professor da Universidade Católica Portuguesa, Manuel
Cândido Pimentel, presidente da comissão organizadora das
comemorações do "Ano Vieirino", disse à Lusa que, entre 6 de
Fevereiro de 2008 e 6 de Fevereiro de 2009, decorrerão
eventos comemorativos de diversa natureza.
As comemorações têm o patrocínio do Presidente da República,
Cavaco Silva, e do cardeal patriarca de Lisboa, D. José
Policarpo.
As celebrações arrancam a 6 de Fevereiro na Academia das
Ciências de Lisboa, mas o objectivo é estendê-las a todo o
país, com a participação e a adesão de diversas entidades e
instituições, como os municípios, que poderão promover
localmente iniciativas relacionadas com a vida e a obra do
padre António Vieira, como conferências, exposições, música
e roteiros culturais, explicou Manuel Cândido Pimentel.
Entre 18 e 21 de Novembro deste ano realiza-se em Lisboa
um congresso internacional comemorativo do quarto centenário
do nascimento do padre António Vieira.
Os promotores das comemorações desejam a criação de uma
rede internacional de universidades para estudo e divulgação
da figura e da obra do padre António Vieira no mundo.
"Homem do Barroco, Vieira é fruto e parte activa desse tempo
que o fulgor da sua palavra e a assombrosa energia dos
seus passos logram, no entanto, transcender", acrescentou
aquele académico, acrescentando que "compreender Vieira
será sempre um factor de descoberta, um fecundo exercício
de busca de conhecimento".

RRP1, 21-1-2008
 
Rosário Farmhouse vence
“Padre António Vieira”

Maria do Rosário
Farmhouse é a
vencedora da primeira
edição do “Prémio
Padre António Vieira”.
A iniciativa é do Centro
Universitário
Padre António Vieira,
no âmbito das comemorações do quarto centenário do nascimento
daquele sacerdote que se destacou, entre outras
razões, pelo estabelecimento do diálogo inter religioso.
A atribuição do prémio, no valor de dez mil euros, foi divulgada
no CUPAV pelo reitor da Universidade Católica e membro
do júri, professor Manuel Braga da Cruz.
“A Dr. Rosário Farmhouse é uma pessoa que desde os primeiros
anos da sua vida pós-académica se interessou pelo acolhimento,
inserção e integração dos refugiados, particularmente
os imigrantes do Leste vindos para Portugal e fê-lo com
particular empenhamento, com carácter inovativo. Foi pioneira
neste acolhimento e foi graças à sua intervenção e
determinação que algumas iniciativas importantes respeitantes
à integração dos imigrantes ocorreram em Portugal”,
disse.
Rosário Farmhouse é antrópologa e directora do Serviço
Jesuíta aos refugiados.

RRP1, 30-1-2008
 
Padre António Vieira nasceu há quatro séculos

As comemorações oficiais do IV
centenário do nascimento do Padre
António Vieira arrancam hoje. Até à
noite, as suas palavras são evocadas em filme, música e leituras de alguns dos sermões que o celebrizaram.
Agraciada com o prémio com o nome do jesuíta que hoje se lembra, Rosário Farmhouse diz que hoje, se o missionário fosse vivo, estava nas Nações Unidas.
“À escala deste século, ele estaria num cargo muito elevado, provadamente na ONU, a tentar lutar pelos direitos de todos e pelo respeito pela interculturalidade
e diálogo inter-religioso”.
Uma conferência do ensaísta Eduardo
Lourenço, intitulada "Do Império do
Verbo ao Verbo como Império", decorre na Academia de Ciências de Lisboa, às 18h00, onde será apresentado o programa das comemorações, que se prolongarão
até ao final do ano. Na sessão, o
Presidente da República fará uma alocução.
Já no Centro Cultural de Belém (CCB), cinco escritores—Rodrigo Guedes de Carvalho, António Mega Ferreira, Gonçalo M. Tavares, José Tolentino Mendonça e Armando Baptista-Bastos—vão ler excertos dos seus sermões e, à noite,
no mesmo local, decorre um concerto
da orquestra Divino Sospiro e do
Coro Officium, intitulado "Foi-nos um Céu Também". A entrada é livre, tal como para o filme "Palavra e utopia", de Manoel de Oliveira.
Ainda em Lisboa, um eléctrico chamado Vieira - um dos que fazem a carreira número 28, entre o Largo de Camões e a Graça - fará a viagem inaugural hoje, às 15h00, com especialistas que falarão
aos passageiros sobre a vida e obra
daquele jesuíta do século XVII.
Na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, será inaugurada uma exposição
iconográfica e bibliográfica.
O "Imperador da Língua Portuguesa",
como lhe chamou Fernando Pessoa,
nasceu em Lisboa no dia 6 de Fevereiro de 1606.
Ao longo de 89 anos, o padre António Vieira atravessou sete vezes o Oceano Atlântico e percorreu milhares de quilómetros
no Brasil, onde faleceu. Missionário e diplomata, é também considerado um percursor da defesa dos direitos humanos.
Deixou uma obra literária composta por 200 sermões, 700 cartas, tratados proféticos e dezenas de escritos filosóficos, teológicos, espirituais, políticos e sociais.

RRP1, 6-2-2008
 
A obra do Padre Vieira deve ser mais conhecida

Salvato Trigo é reitor da Universidade Fernando Pessoa. Doutorado em Literaturas de Expressão Portuguesa pela
Universidade do Porto, é autor de
várias publicações no âmbito da Língua e Literatura portuguesas e articulista em revistas especializadas. O professor considera que a obra deixada
pelo Padre António Vieira não é
suficientemente conhecida, nomeadamente, pelas gerações mais novas.

Por Letícia Amorim

Rádio Renascença – Quatro séculos
depois, é possível falar em actualidade da obra do Padre António Vieira...
Salvato Trigo – Sem dúvida. O que se passa com os grandes escritores, como é o caso do Padre António Vieira, é que a intemporalidade que reveste a sua
obra permite-nos que a possamos ler
com a mesma acuidade com que o fizeram aqueles que viveram no seu tempo.
E essa intemporalidade resulta de duas circunstância fundamentais. Primeiro, da sua extraordinária capacidade, como Fernando Pessoa dizia, enquanto “Imperador da Língua”, na medida em que se vê, claramente, que ali temos a
Língua Portuguesa na maior pureza da sua realização estilística. Depois, através da temática que ele soube trazer para a sua escrita, designadamente, para aquela que está mais directamente
relacionada com a oratória sagrada.
Essa temática diz sempre respeito ao Homem, na sua dimensão de criatura de Deus e de criatura social. É possível vê-lo nessa dupla realidade. E o que o
Padre Vieira fez nos seus escritos foi procurar compreender a alma humana e, ao mesmo tempo, compreendê-la na perspectiva da sua realização com os outros. Lamentan-se que essa actualidade
não seja suficientemente conhecida
pelas novas gerações que beneficiariam imenso de beberem no Padre António Vieira, como dizia Fernando Pessoa, através do seu semi-heterónimo Bernardo Soares, no “Livro do Desassossego”,
“a fria engenharia sintáctica da
perfeição do Padre António Vieira”.
RR – A obra do Padre António Vieira e, em particular, os seus sermões continuam a estar presentes nos programas escolares do Secundário. Essa presença
não é suficiente?
ST – É insuficiente. Pela simples razão de que dá, apenas, uma das vertentes, sem dúvida importante, da obra de Vieira, através da qual ele é mais conhecido, enquanto pregador e mestre da oratória sagrada. Mas a verdade é que a obra do Padre Vieira vai muito
para além da oratória sagrada, muito para além dos sermões. O conjunto da obra do Padre Vieira reúne-se em 15 volumes de sermões, em sete volumes de obras várias e em três volumes de correspondência. Na verdade, ele tem uma dimensão enquanto político,
enquanto diplomata e enquanto ensaísta filosófico e até ensaísta profético.
Recordo que o seu biógrafo, José Lúcio de Azevedo, publicou postumamente um manuscrito que encontrou do Padre António Vieira intitulado “História do
Futuro”. Vieira é um escritor
fundacional da nossa literatura e
também, um pouco, da nossa identidade como povo, como povo errante, como povo em que a errância e a expansão no mundo nos fez recolher dos outros enormes enriquecimentos de natureza espiritual, cultural e idiossincrática que estão presentes na obra do Padre António Vieira.
RR – Acha que sua obra deveria ser
alargada nos programas escolares?
ST – Todos aqueles autores como o
Padre António Vieira que representam para nós modelos de desenvolvimento da nossa personalidade como povo não
podem estar ausentes dos programas
escolares. Tanto no Básico, como no
Secundário, como no Superior. A formação da nossa própria consciência como povo, a formação da nossa própria consciência social não pode prescindir
de homens com a grandeza de espírito e a qualidade estética que o Padre António Vieira representa e, sobretudo, porque entendemos que, enquanto
“Imperador da Língua”, ele é de facto um manancial extraordinário para se poder compreender como é possível ser um retórico de uma mestria extraordinária, sem ser um retórico complicado.
A mestria de Vieira é, ao mesmo tempo, de uma leveza muito grande, porque todas as suas alegorias, todas as suas figuras estilísticas são perfeitamente compreensíveis pela circunstância dele as envolver, sempre, no empirismo,
naquilo que é o conhecimento da
experiência de vida, da experiência
feita. O Padre António Viera é um
“Tratado de Língua”, numa altura em
que precisamos tanto de fazer regressar a escola à língua, de reconciliar a escola com a língua e de fazer compreender à escola que, através da língua, se acede
a todo o conhecimento. Não existe
nenhum conhecimento fora da língua.
RR – Ainda que a escrita do Padre
António Vieira não se desligue do
registo oral...
ST – Evidentemente que ela tem as
marcas da oralidade, mas a verdade é que muitos dos sermões que foram
publicados pelo Padre António Vieira foram trabalhados por ele. Ele foi capaz de retirar na escrita alguns adornos que não interessaria transcrever na
escrita. Mas, se lermos a sua correspondência e os seus ensaios, verificaremos que ele é um escritor de uma qualidade e de uma limpidez extraordinária, quer
no domínio do seu conceptualismo, que é uma das marcas importantes do Barroco, quer, depois, no domínio do seu culturalismo, outra das marcas do Barroco.
De facto, sabemos que o barroco
tem uma certa obsessão do ver, do
olhar, do preenchimento do vazio. E
essa obsessão também existe no Padre António Viera. Só que, em vez de ser uma obsessão que conduz a um peso, a uma certa intranquilidade na compreensão
da expressão, a uma certa
dificuldade em penetrar verdadeiramente na expressão, essa obsessão é a opção de fazer sempre com que o dizer coincida com o fazer. Portanto, para nós, há sempre uma preocupação da
concretização entre a abstracção do
dizer e a concretização do fazer que na realidade da expressão nos permite degustar extraordinariamente.
RR – A vida do Padre António Vieira
faz-se também de política e de obra
missionária. O facto de ter passado
grande parte da vida no Brasil afastou-o de Portugal?
ST –A ideia de que ele fez grande parte da sua trajectória enquanto homem público e pregador no Brasil é apenas uma meia verdade, na medida em que ele pregou inúmeras vezes, por vários anos, em Portugal, em Roma, na Igreja
de Santo António dos Portugueses. Pregou um pouco por toda a parte por onde ele andou: em Inglaterra, na Holanda… Portanto, não é só pela circunstância de a maioria dos seus sermões ter sido pregada na Baía e no Maranhão que, realmente, é desconhecida essa outra componente da sua actividade, porque a actividade diplomática do Padre Vieira realizou-se de facto aqui, em Portugal e na Europa, ao serviço do Rei, de quem aliás ele era
muito próximo. Era-ao do rei D. João IV e da rainha, D. Luísa de Gusmão e teve mesmo um papel importante na intermediação
dos conflitos depois existentes
entre Afonso VI e Pedro II, seu
irmão. Portanto, é um homem que faz
parte integrante de um momento
importante da História de Portugal: da consolidação da nossa independência relativamente a Espanha. O Padre António Vieira era um português, como se costuma dizer, “dos quatro costados”.
Foi um homem de uma importância
extraordinária no relacionamento das próprias autoridades brasileiras e portuguesas com os índios. Teve um papel primordial, também, desse ponto de vista, no que diz respeito a alguns constrangimentos que lhe foram causados pelo próprio tribunal da Inquisição, em que ele se viu envolvido injustamente – é certo – mas foi um homem que é bem um português do seu tempo. Que teve
de suportar a senha política daqueles que eram seus adversários - e teve vários - não só a senha política pela via
da discussão pública em termos políticos, mas também a senha política pela via de perseguição que o tribunal da Inquisição fez sobre ele e da qual ele se
libertou com alguma dificuldade graças também à intervenção régia.

RRP1, 6-2-2008
 
A MULHER NA OBRA DE VIEIRA

ANA MARQUES GASTÃO

Por que não evocar Vieira - símbolo do Barroco ibérico por excelência - no dia em que passam 400 anos do seu nascimento, relembrando as suas argumentações perante sexo oposto? Antecipemos, pois, algumas das ideias de um estudo sobre a matéria ainda em fase de provas. O Padre António Vieira e as Mulheres/O mito barroco do universo feminino trata, não do contacto que o jesuíta teve com as mulheres na vida quotidiana, mas do papel assumido por estas, para o bem o e para o mal, na sua obra, sobretudo no sermonário.

Os autores do livro, a publicar, em breve, pela Campo das Letras, são José Eduardo Franco, historiador, poeta e ensaísta, doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em História e Civilização, e em Cultura pela Universidade de Aveiro, e Maria Isabel Morán Cabanas, professora de literatura portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela.

Que pretende, afinal, este longo ensaio? Fornecer dados - alguns deles novos -, para uma melhor compreensão da visão barroca do universo feminino nos sermões de Vieira como expressão de um longo processo de elaboração, ao longo de vários séculos, de uma imagem mítica da mulher.

Já Ana Hatherly, pioneira no tratamento desta temática, escrevera que, do ponto de vista artístico, na cultura ocidental, judaico-cristã, existem dois grandes paradigmas: "o da tentadora, que conduz o homem à perdição, e o da salvadora, que o conduz à redenção."

Se, para a escritora e estudiosa do Barroco,"entronizar a mulher através do platonismo é uma forma de exorcizar pela distância o fascínio erótico que e ela exerce, santificá-la é outra forma de neutralizar o impacte da sua sedução transferindo-o para o plano do aceitável, e até louvável, em termos morais. (Imagens da Mulher, do Humanismo ao Barroco in O Ladrão Cristalino/Aspectos do Imaginário Barroco, Cosmos)".

Ora, no entender de António Vieira, a mulher é capaz dos "actos mais nobres e dos sentimentos mais divinos", podendo "originar os desastres mais graves, as paixões mais avassaladoras e perturbadoras da harmonia pessoal e social", e até ser uma via para a ascensão do homem. Esta visão dir-se-ia, bem ao gosto do Barroco, paradoxal. Explica José Eduardo Franco: "O paradigma mariano pode ser entendido como "a auto-estrada para Deus e o eviano como a "viela para a tentação".

Mas se, no seu sermonário, Vieira, reelaborando a cultura de fundo judaico-cristã e greco-romano, exprime as ideias dominantes e inferiorizantes em torno da condição feminina - a sociedade e a igreja seiscentista eram misóginas -, pressente-se o despertar, quase imperceptível, de uma certa consciência crítica perante o universo feminino, tão triunfante, segundo D'Ors, neste tempo quanto derrotado.

Relembrem-se, no entanto, os dizeres de Vieira, ao gosto da época, mas ainda assim inacreditáveis: "Não quis o Autor da natureza que a mulher se contasse entre os bens móveis. O edifício não se move do lugar onde o puseram; e assim deve ser a mulher, tão amiga de estar em casa, como se a mulher e a casa foram a mesma coisa." Ou: "É tal a inclinação e tão impaciente na mulher o apetite de sair e andar, que por sair e andar deixou Eva o esposo, e por sair e andar deixou a Deus. Oh, quantas vezes, por este mesmo apetite vemos deixado a Deus; e os esposos pior que deixados."

Apesar disso, Vieira muito apreciava mulheres de espírito, cultas, tendo escrito sobre figuras bíblicas, mártires santas místicas, Maria. Uma admiração mútua existiu entre o jesuíta e a rainha Cristina da Suécia, que residiu em Roma depois de abdicar do trono e de se converter ao catolicismo.

A integração comparativa da obra do jesuíta no âmbito do Barroco ibérico é uma das inovações deste estudo que vem a ser preparado desde 2004: "Mesmo assim, Vieira foi um grande cantor do feminino nas grandezas e nas misérias!", comenta o ensaísta.

DN, 6-2-2008
 
Mestre da língua portuguesa

António Vieira nasceu em Lisboa de uma família modesta de servidores do Paço. Entre os seus ascendentes contava-se uma avó mulata, provavelmente filha de uma escrava negra trazida para a metrópole. Jesuíta, pregador, missionário, homem de Estado, clássico vigoroso e dúctil da língua portuguesa, nele se fundem o idealismo utópico, sebastianista, e o homem de acção, tanto no domínio social como político.

Paladino de alguns direitos humanos (não tanto para as mulheres...), lutou por um Portugal independente, aquém e além-mar na época da Restauração. Nele acentuam-se facetas do Barroco, como o jogo, a ironia, o culto do paradoxo, a extravagância e a espiritualidade, bem como era sua uma mentalidade de feição escolástica e messiânica.

Se, para Marcel Bataillon, "Vieira era quixotesco", o jesuíta não tem apenas um lugar proeminente na literatura, mas na vida portuguesa do séc. XVII, tanto na metrópole como no Brasil. Talvez a sua ascendência tenha sido vital no futuro missionário que conhecia a língua geral dos índios. Foi aliás, no colégio da Baía que adquiriu uma formação de latinista, bem como aguçou a destreza dialéctica que o tornam único no seu tempo. Ordenado sacerdote em Dezembro de 1634, depressa se tornou num pregador teatral, acutilante e desassombrado, impetuoso.

De D. João IV e D. Luísa de Gusmão recebeu a admiração e a S. Roque acolhia um público só para o ouvir. Nos sermões de Vieira, as teses defendidas eram, umas vezes, teológicas, outras morais e políticas. António Sérgio considerou-o um clássico pela expressão, transparente, liberta da moda cultista: "Se gostas da afecção e da pompa das palavras e do estilo que chamam culto, não me leias" - adverte o orador, explicando que sempre lhe valeu a clareza e que só por ser entendido era ouvido. Defendia, portanto, uma estética da simplicidade, contra os "requintes gongóricos", e a refutação de elementos contrários no desenvolvimento da argumentação, após o que exigia o tirar uma conclusão.

Era um homem do poder estético, do movimento dialéctico, da música da palavra, concisa ou densa, não alheada da perspectivação de ideias, movimentada, plástica, valores, afinal, de uma época cultivadora de jogos de imagens quando era perigosa a reflexão. Gostava de ser admirado, havendo quem o acusasse de querer "pasmar" em vez de converter". Quanto ao púlpito, refere Hernâni Cidade, era a válvula de escape do comentário político."

Padre António Vieira, independentemente da abundância de uma personalidade invulgar e do vasto raio da sua acção , deve ser lembrado como um dos grandes mestres da língua portuguesa.

A.M.G.

DN, 6-2-2007
 
Comemorações de Vieira vêm aí

Lisboa terá um eléctrico chamado Vieira a partir de quarta-feira

As comemorações do IV centenário do nascimento do Padre António Vieira, que decorrem ao longo de todo o ano, arrancam oficialmente quarta-feira, na Academia das Ciências de Lisboa, com uma conferência de Eduardo Lourenço, um dos maiores pensadores portugueses vivos.

A sessão, marcada para as 18.00 do dia em que se cumprem 400 anos sobre o nascimento do jesuíta portuguê, em Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608, contará com a presença do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, e do cardeal-patriarca de Lisboa, José da Cruz Policarpo, bem como do presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Adriano Moreira, e do presidente da Comissão Organizadora de 2008 Ano Vieirino, o professor Manuel Cândido Pimentel.

À mesma hora, na capela da Universidade de Coimbra, realiza-se um recital de órgão e pregação do Sermão de Quarta-feira de Cinzas, promovido pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos e pelo Centro Inter-Universitário de Estudos Camonianos daquela universidade.

Também na quarta-feira, será inaugurada na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, uma exposição iconográfica e bibliográfica do padre António Vieira, coordenada e organizada pelo professor Arnaldo do Espírito Santo, presidente da Comissão Científica de 2008 Ano Vieirino. Na capital, um eléctrico chamado Vieira, um dos que fazem a carreira número 28, que liga o Largo de Camões à Graça, fará a sua viagem inaugural quarta-feira, às 15.00, transportando especialistas que falarão aos passageiros sobre a vida e obra do jesuíta do século XVII. Trata-se de uma iniciativa do Centro Nacional de Cultura e da Carris, que se estenderá até 12 de Fevereiro.

Ainda no mesmo dia, pelas 11.00, um memorial ao padre António Vieira, feito com azulejos da Fábrica Cerâmica Viúva Lamego, será descerrado na Rua do Correio Velho.

DN, 3-2-2008
 
"Anos antes da Revolução Francesa, Vieira era já um autêntico iluminista"

ANA MARQUES GASTÃO

Letras.

Ernesto Rodrigues acaba de publicar - com selecção e prefácio de sua autoria -, a antologia 'Sermões, Cartas e Obras Várias', de Vieira, no âmbito do 4.º centenário do seu nascimento. A recolha apresenta seis momentos da vida deste pregador: o religioso, o político, o missionário, o vidente, o derrotado e o vencido, conjugando biografia e aspectos da obra, bem como revelando bibliografia fundamental

"Anos antes da Revolução Francesa, Vieira era já um autêntico iluminista"

Por que abraça um especialista sobretudo do século XIX a obra de Padre António Vieira para proceder a uma sua antologia?

A minha vida universitária tem-se dividido entre os séculos XVII e XIX. Uma das minhas paixões é Fastigínia (1605), do procurador régio Tomé Pinheiro da Veiga, cuja edição preparo há 20 anos. Todos os cervantistas a conhecem, porque aí se fala, pela primeira vez, em D. Quixote e Sancho Pança. Na Colóquio-Letras, recenseei as Cartas do nosso Padre e o estudo fundamental de Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira. Publiquei há pouco um artigo em que o vemos criticar o estilo jornalístico de António de Sousa de Macedo e do Mercúrio Português, um dos primeiros jornais portugueses.

Que critérios seguiu para organizar (e prefaciar) esta antologia dos sermões, cartas e outras obras do Padre António Vieira?

A selecção devia apresentar os seis momentos da vida de Vieira, segundo o seu melhor biógrafo, João Lúcio de Azevedo, um prosador também notável. São eles: o religioso, o político, o missionário, o vidente, o derrotado e o vencido. O prefácio resume essa vida em acção, no púlpito, na missionação, na diplomacia e nas relações epistolares.

Como decorreu o processo de selecção entre os inúmeros volumes de sermões e cartas?

Reuni seis dos cerca de 200 sermões e 13 cartas do total de 719 conhecidas. Além do Sermão de Santo António aos Peixes e do Sermão da Sexagésima, cujo texto fixei, é bom existir uma edição crítica do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, que também é contra um Deus adormecido, acusado de abandonar os portugueses. Nas cartas a príncipes e reis, procurei o defensor dos índios, e, nas cartas aos amigos, o discípulo de Bandarra e alguém de saúde precária, sobre a qual ainda fala uma semana antes de morrer.

Interessou-lhe mais abordar a forma, a estrutura, do que o seu conteúdo?

Embora Padre António Vieira seja uma máquina de argumentar, com raciocínios inesperados, interessava-me mostrar um homem do nosso tempo. O Sermão do Bom Ladrão, por exemplo, deve ser lido pelo Governo e pelos tribunais. Às vezes, lembra-nos a Arte de Furtar, um clássico do século XVII que lhe atribuíram.

No prefácio, dá sobretudo atenção ao pregador e ao sermão, cujo corpo analisa no contexto de uma biografia que vai esboçando... Porquê?

Vieira é, ao lado de Camilo Castelo Branco, o nosso maior epistológrafo. Mas é como pregador que se impõe, em termos universais. Ora, entre a biografia e a bibliografia mais recente que o leitor vai encontrar, eu pude mostrar aspectos menos conhecidos da sua temática: por exemplo, uma teoria das paixões, no primeiro Sermão do Mandato, ou as relações entre mãe e filho, no Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus. Na segunda parte, falo da sua arte do sermão, a partir de A Oratória Barroca de Vieira.

Para além de um insigne pregador, homem de acção e virtuoso da palavra, definiria como esta figura de feição escolástica e messiânica?

Um iluminado. E, já em 1633, portanto, 156 anos antes da Revolução Francesa, ele é um autêntico iluminista, pois, em dois sermões dirigido a pretos de um engenho, no Brasil, lamentava que o nome, a cor e a fortuna criassem distinções entre senhores e escravos. Dizia que somos filhos de Adão e do sangue de Cristo redentor. Tendo em atenção a época, era preciso ter coragem.

DN, 17-3-2008
 
PADRE ANTÓNIO VIEIRA

Maria José Nogueira Pinto
jurista

O que há de grande na vida e obra do Padre António Vieira é a harmonia do cristão, pregador e missionário, do português, patriota e combatente, do homem, humanista e lutador pela dignidade dos outros homens. Uma harmonia entre o explorador da Amazónia, o mensageiro secreto e discreto do rei, humanista de grande saber e de voz profética, orador e estilista ímpar. É o lutador do pensamento, o visionário realista destes quase 90 anos passados numa e noutra margem do Atlântico, dos faustos da Roma barroca dos papas aos sertões da Baía, da companhia dos grandes da política europeia aos míseros índios do Maranhão, entre o favor dos reis e a perseguição dos grandes. No Brasil português, Vieira bateu-se pela dignidade dos índios, defendendo-os contra as injustiças e opressão, ao mesmo tempo que procurava para eles a protecção da Coroa, o que lhe valeu a fúria dos colonos. Deste tempo e circunstância data o mais célebre dos seus sermões, o Sermão de Santo António aos Peixes. Também neste tempo brasileiro ele explorou a bacia do Amazonas, viajando milhares de quilómetros rio acima, embrenhando-se pelo Tocatins e pelo Madeira, e nessas paragens terá redigido o Quinto Império do Mundo, Esperanças de Portugal.

Esta actividade no terreno não o impede, porém, de dar largas a uma outra das suas facetas: a de conceber grandes projectos estratégicos para Portugal, tais como o de conseguir o retorno ao reino dos cristãos-novos emigrados na Europa e dos seus capitais, a troco da liberdade religiosa; e a concepção de uma grande companhia multinacional de comércio e navegação, para o Brasil e o Oriente, à semelhança das companhias majestáticas holandesas. Entretanto, a maioria destes projectos malogrou-se, pois Vieira, como outros portugueses de excepção, teve dificuldade em ser entendido pelos poderosos do seu tempo e gerou, bem pelo contrário, um cortejo de invejas, de calúnias, de intrigas, de golpes baixos.

Quatrocentos anos depois do seu nascimento, o que ainda impressiona na pessoa, na vida e na obra do Padre António Vieira é precisamente esta "harmonia da discordância" das actividades, a extraordinária qualidade do trabalho desenvolvido em áreas tão diversas, em ambientes tão distantes, em "províncias do saber" tão variadas, em terras e gentes tão remotas. E sempre fiel ao seu Deus e à sua Pátria, aos seus ideais católicos e portugueses, sem parar por isso de interrogar o tempo e os seus modos, o passado, o presente e o futuro. E que espantosa modernidade, assente num profundo conhecimento da natureza humana, das suas limitações e grandezas, expressa de forma ímpar no sermão Pelo Bom Sucesso das Nossas Armas: "A mais perigosa consequência da guerra e a que mais se deve recear nas batalhas, é a opinião. Na perda de uma batalha arrisca-se um exército; na perda da opinião arrisca-se um reino. Salomão, o Rei mais sábio, dizia que 'o melhor era o bom nome, que o óleo com que se ungiam os reis'; porque a unção pode dar reinos, a opinião pode tirá-los."

Vieira era, por tudo isto, um visionário genial. Tendo lutado por um poder português no mundo, assente nos factores materiais do poder - nas armas, nas armadas, nas fortalezas -, procurando consequentemente o dinheiro e negócios necessários para os manter, ele viu também que o destino de Portugal era o de poder vir a ser um Quinto Império: um Império de "mil e muitos anos", uma utopia político-social, sem limite e sem distância, para chegar ao futuro, depois de cumpridos e acabados todos os impérios - inclusive o império português! Seria esse império do futuro a luta que ele travou contra o preconceito racial e esclavagista que expulsara o cristão-novo e oprimia o índio brasileiro? Talvez. Mas, de qualquer modo, um genial profetismo este, nos meados do século XVII, um padre jesuíta que pensa uma companhia transnacional para responder à globalização dos mercados e dos interesses, que prega a grande unidade e dignidade universais das criaturas do Reino de Deus neste mundo, e que a tudo isto dá um sentido cristão e português.

DN, 27-3-2008
 
PADRE ANTÓNIO VIEIRA: O SERMÃO AOS PEIXES

Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia

No quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, presto homenagem ao missionário, ao orador, ao escritor, ao patriota, ao diplomata, ao perseguido pela Inquisição, ao defensor dos índios e dos negros, puxando a atenção para a actualidade pavorosa do seu sermão aos peixes. Sermão de invulgar coragem frente aos colonos do Brasil. Não tinha Cristo chamado aos pregadores o sal da terra? Ora, "o efeito do sal é impedir a corrupção".

É preciso ouvir as repreensões, que, se não servirem de "emenda", servirão ao menos de "confusão". E qual é a confusão? É que os peixes como os homens se comem uns aos outros. O escândalo é grande, mas a circunstância fá-lo maior. "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."

Quando Portugal é apontado como o país da União Europeia com maior desigualdade na repartição dos rendimentos e a corrupção campeia e os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e se anuncia uma conflitualidade social iminente, que diria o Padre António Vieira? Perguntaria: "Que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no mundo?" E responderia: "A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos." "Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe; porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e devoram."

Que diria o Padre António Vieira frente a uma Justiça que não funciona ou que funciona mal e na qual os mais fracos e pobres não podem confiar muito? "Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido."

Com a subida dos preços alimentares, está aí mais fome. Evidentemente, para os pequenos. Há razões várias para a carência, mas uma delas é a especulação. Como é possível especular com o sangue dos pobres? "Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros. E de que modo os devoram e comem? Não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos."

Frente a uma ASAE que "permite" que governantes fumem em aviões fretados, mas inutiliza comida a instituições de solidariedade social por incumprimento de regras meramente formais, que diria o Padre António Vieira? "Os maiores comem os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras." Os pequenos não têm nem fazem ofício "em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem".

Não é preciso ir muito longe para ver a perversa cobiça. "Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar? Vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer."

DN, 31-5-2008
 
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