01 janeiro, 2008

 

Ano novo

Vida nova?

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UM OLHAR POR CIMA DO OMBRO

Nuno Brederode Santos
jurista
brederode@clix.pt

Eu sigo o instinto: não puxo pela memória, porque acredito que ela esvazia com o esforço. É um caleidoscópio que dispara sem critério e esvai-se em factos, tempos, palavras e cores. Tirado o pipo, é difícil recolocá-lo. Tende a voar, janela fora, como a boneca insuflável do amante solitário. Por isso, entre o bacalhau e o peru, não largo a trela.

Daí que eu não passe em revista o ano que chega ao fim. Mas, se penso em 2008, ele assoma. E eu olho por cima do ombro. O que dele vejo e passo a referir pouco mais é que o focinho.

Vejo um semestre de presidência da União Europeia, que inegavelmente correu bem. Claro que pode não se gostar da ideia de nos envolvermos na aventura europeia. E então critique-se essa opção política em si mesma. Mas o sucesso mede-se em função dos objectivos. Pelo que não faz sentido criticar globalmente o modo como nos desempenhámos dela, quando eles foram manifestamente atingidos. Sejam como os quakers: sintam-se livres para não gostar de automóveis, mas não critiquem a condução de ninguém.

Vejo também um referendo, o da interrupção voluntária da gravidez, feito para repor a legitimidade - não jurídica, mas política - de uma decisão parlamentar. Correu bem. Juntámo-nos à modernidade e aos países que a vivem. Tempos depois, os derrotados já só se agarravam a notícias como aquela de que, afinal, o número de abortos voluntariamente solicitados era quase metade do que se anunciara. Raio de argumento. Porque a notícia é boa. Ninguém votou "sim" por achar que nascem meninos a mais.

Registo ainda a reforma do Parlamento. A opinião pública ser-lhe-á mais sensível ao abrir 2008, quando todos os mecanismos de prestação de contas do Governo perante a Assembleia estiverem a funcionar. Houve uma maioria capaz de limitar a liturgia com que os governos celebram o seu triunfo no hemiciclo. Não para vigorar no futuro e para complicar a glória dos outros, mas fragilizando o seu próprio presente. Não creio que haja muitos casos similares.

Fizeram-se eleições na Madeira, para que tudo ficasse ainda mais na mesma. Ficou mesmo. A solução do problema, que o poder soberano criou, designadamente pelas sucessivas contemporizações da Assembleia da República nas revisões constitucionais, continua a residir no modo como o Estado o quiser enfrentar. Alberto João Jardim quer uma quase união pessoal: Portugal e a Madeira serem dois países com um Presidente comum - acrescendo a isto a responsabilidade da República pelas despesas de tribunais, polícias e representação externa. Só uma posição firme do Estado pode repor a normalidade e o bom senso (e, de caminho, impedir que as oposições locais se convençam que é imitando Jardim que melhor lhe fazem oposição).

Fizeram-se eleições em Lisboa. Pouco participadas e com o PS e o PSD a verem os seus eleitorados divididos com candidaturas independentes. Ganhou o primeiro, mas apenas a oportunidade para desbravar o caminho de uma solução a prazo. O uso, por parte do PSD, de uma maioria na Assembleia Municipal que as urnas desautorizaram não augura dias tranquilos.

CDS e PSD mudaram as suas lideranças. O CDS não superou a sua perplexidade. E se, em termos de regime, alguém como Ribeiro e Castro podia valorizar a componente democrata-cristã e dar voz, nas instâncias políticas, a pulsões da Igreja, já os conservadores de Portas estão atolados na sua aflitiva redundância com a gente mais direitista do PSD. Este, por seu turno, trocou a insuficiência de Marques Mendes pela ineptidão de Menezes. Agora, como um canhão accionado por um artilheiro cego, o partido não acerta com as regras da balística. Ora fica aquém do alvo, convencido de que revela grande sentido de Estado, e desdobra-se em propostas de pactos de regime e apoios incondicionais a um Presidente da República que tem feito gala em apoiar o Governo, ora acerta além do alvo, com os irresponsáveis radicalismos de uma nova Constituição de raiz, o fim do Tribunal Constitucional e o "desmantelamento" do poder do Estado em seis meses.

Triste sina a de quem tem boas razões de queixa: sem oposição, não há Governo que acredite nelas.

DN, 23-12-2007
 
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