29 janeiro, 2008

 

AP

Administração pública

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA OU UMA REFORMA SEM MODELO

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Recentemente, li que tinham "entrado" na administração pública quarenta mil pessoas. Por outro lado, o Governo tem alardeado números relativos aos que saíram em idêntico período. Se fosse um simples deve e haver, não estaria mal, mas esta questão não tem nada de linear. Com que critérios saíram os que saíram e com que critérios se abriu a porta aos que entraram? Como e quem os seleccionou? O que deixaram de fazer uns e o que passaram a fazer os outros? Seriam mesmo necessários ou trata-se, uma vez mais, de uma reserva ou bolsa de clientelas que há que manter tranquilas? Afinal, qual é o modelo de Estado proposto por Sócrates? Um Estado mais garante e menos prestador? E em que sectores concretos se operará essa reconversão? Dúvidas pertinentes face à baixa taxa de execução das anunciadas medidas ou ao seu invisível reflexo orçamental.

Antes de o Estado ter engordado, o chamado funcionalismo público possuía um conjunto de defeitos e qualidades adequado ao sistema: num certo sentido, a sua falta de imaginação era a nossa segurança e a sua lentidão não era, ainda, o nosso desespero. A função pública revestia-se de alguma dignidade: o funcionário público tinha apresentação e educação razoáveis, não se sentia tão desgraçado e não tinha chegado ao seu posto de trabalho sem saber ler nem escrever e, o que é mais grave, sem saber o porquê.

Depois de o Estado ter engordado, as fileiras do funcionalismo engrossaram sem limite. Perdeu-se a noção de trabalho - era só emprego - e a da utilidade também. De um modo irresponsável, o Estado recrutou e seleccionou pessoal sem objectivos definidos e sem qualquer política de recursos humanos. A factura tornou-se insustentável.

Foi assim que chegámos à "reforma" da administração pública, erigida em prioridade pelos sucessivos governos dos últimos vinte anos. Em nome da "modernização" emergiram os sinais exteriores de mudança, mas, no essencial, tudo se manteve. Primeiro, foi a febre da formação, reconversão, reciclagem. Os colóquios, seminários e jornadas multiplicaram-se de tal forma que grande parte dos funcionários passou mais tempo fora do serviço do que a trabalhar, com custos agravados e resultados incertos. Depois, falou-se de produtividade e da necessidade de a estimular e criou-se a ficha de classificação do funcionário público. Este instrumento foi de imediato subvertido pelas próprias chefias, que procederam a uma abundante distribuição de bons, muito bons e excelentes, destruindo qualquer possibilidade de avaliação do mérito e, consequentemente, da criação de estímulos. Não sei que mente perversa esteve na origem dos chamados "conteúdos funcionais", uma espécie de quarto escuro onde o funcionário é colocado com a certeza e segurança de uma monotonia vitalícia. Periodicamente, criaram-se quadros ou bolsas de excedentes ou supranumerários, sem mais consequências que as de gerar angústia e instabilidade, pois as medidas de mobilidade, constantemente evocadas, parecem nunca ter surtido qualquer efeito.

Também nesta linha, foram inúmeras as medidas para modernizar a imagem da nossa administração pública: balcões abertos para substituir o guichet de triste memória, fardamento tipo hotel, música nos telefones, telefones nos carros e muito, mesmo muito, hardware e software.

Com o andar desta caricatural carruagem, sucederam-se situações de injustiça em que funcionários experientes e dedicados foram afastados como trapos velhos, enquanto os novos aperfeiçoavam a técnica da "prateleira". Quem não conseguisse pronunciar, em mau inglês, um jargão tecnológico em cada três palavras, tornava-se um caso perdido. Rapidamente, uma mancha de opróbrio cobriu todo o edifício, sem distinções nem excepções. E uma onda de desânimo alastrou, engolindo os melhores.

Tudo isto vimos e vivemos em Portugal. Por isso sabemos que não há reforma da administração pública enquanto persistir esta recusa medrosa de repensar o papel do Estado. Porque uma reforma sem modelo nunca serviu para nada.

DN, 29-11-2007
 
A INVERSÃO DO PAPEL DO ESTADO

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp..pt

O futuro terá muita dificuldade em entender a nossa obsessão com o Estado. Esta é a época que mais teoriza sobre o papel das autoridades, onde os poderes públicos mais se esforçam por melhorar a vida dos cidadãos, mas onde existe a maior confusão, atropelo e ambiguidade nesses mesmos poderes. O Estado não faz o que deve e anda a meter-se onde não é chamado. Assistimos nos últimos tempos a um recuo evidente do Governo nas suas funções básicas. Ao mesmo tempo há funcionários, fiscais e técnicos a invadir a intimidade dos cidadãos em nome da segurança e bem-estar. Se isto continua em breve teremos uma inversão total da estrutura institucional.

O mais surpreendente é que muitas mudanças básicas acontecem, não por razões ideológicas, de forma planeada ou segundo análises fundamentadas, mas por mero deslize. São consequências laterais de tácticas oportunistas, expedientes patetas ou golpes de conveniência. A tacanhez política está a ter efeitos radicais que dificilmente serão corrigidos.

O recuo do Estado nas suas funções próprias é bastante evidente. Desesperado pelo défice, o Governo perde de vista o seu papel. A fúria de privatização há muito deixou de ter propósitos estruturais, para se tornar mero instrumento financeiro. Privatiza-se não o que se deve, mas o que rende. Como as corporações capturaram as funções que deveriam exercer, cada ministério trata mais de reivindicações de profissionais que do seu serviço ao povo.

Um recente caso escandaloso é o das Estradas de Portugal. Entregou-se a uma sociedade anónima uma função essencial do Estado, a liberdade de circulação, pois estradas abertas constituem um direito fundamental de cidadania. Qual a razão? A bomba de relógio financeira das SCUT, criada na ilusão de obter dinheiro privado para infra-estruturas, está a explodir. Por isso entrou-se numa fuga para a frente, generalizando a abordagem. Quando o primeiro-ministro afirmou em 16 de Novembro que a nova empresa tem por objectivo a "sustentabilidade financeira", ele sabe que isso só será possível com uma qualquer forma sofisticada dos antigos bandoleiros dos atalhos.

Enquanto aliena funções fundamentais, a sempre crescente máquina estatal atarefa-se a tratar da violência doméstica, inovação tecnológica, galheteiros nos restaurantes, embalagens de brinquedos. Proíbe o fumo, o ruído e o excesso de velocidade, promove o aborto e facilita o divórcio. Dizemos ser um país livre, mas é impossível a matança do porco, brindes no bolo-rei, ou termómetros de mercúrio.

Tudo isto no meio de uma fúria legislativa, onde novas versões de diplomas surgem antes de secar a tinta nas anteriores. Um exemplo sugestivo, já que se fala de trânsito, é o Código da Estrada. O Estado, que se demite da gestão rodoviária, está cada vez mais enfiado com o condutor ao volante. Como andar de automóvel não muda há décadas, seria de esperar estabilidade nessa legislação fundamental que afecta toda a população. Pelo contrário, esse campo é um emaranhado de diplomas.

Referindo apenas os principais, tínhamos um código, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, que foi depois revisto e republicado pelos DL 2/98, de 3/1, e 265-A/ 2001, de 28/9, e alterado pela Lei 20/2002, de 21/8. Então o Governo decidiu criar um novo Código, que aprovou pelo DL 44/2005, de 23/02. Desde então, nestes dois anos já foram publicados 26 novos diplomas que o complementam, corrigem e acrescentam. São quatro leis, cinco decretos-leis, dois decretos regulamentares, seis portarias e nove despachos. O site da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, na secção Trânsito, tem um total de 46 diplomas que devemos conhecer cada vez que entramos num carro.

O mais incrível é que os responsáveis não se dão conta de que esta profusão legislativa apenas manifesta a sua tolice, impotência e incapacidade. O Estado tornou-se uma galinha tonta, a correr em todos os sentidos. As gerações futuras vão divertir-se com este tempo infantil que acha que a lei resolve tudo mas não consegue decidir qual lei o deve fazer.

DN, 3-12-2007
 
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