17 fevereiro, 2008

 

1968

e passaram 40 anos!

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UM ANO DIABÓLICO

FERNANDO MADAÍL

Ao cantarem Simpathy for the Devil os Rolling Stones pareciam estar a fazer a síntese de todos os demónios que pousaram em 1968, o ano dos assassínios de Martin Luther King e de Robert Kennedy, da invasão da Checoslováquia e do massacre de My Lay, da execução a sangue-frio de um vietcong e das imagens das esfaimadas crianças do Biafra - nem faltou o primeiro atentado mortal da ETA. As quatro décadas que vão cumprir-se no próximo ano deverão encher-se de comemorações: o Maio parisiense, a Primavera de Praga, a queda de Salazar da cadeira.

Poderia ter sido apenas o ano de grandes proezas humanas: a Apolo 8 foi o primeiro voo tripulado em torno da lua - embora Borman, Lovell e Anders não viajassem numa nave como as do filme desse ano, 2001, Odisseia no Espaço, de Kubrick; e Christian Barnard fez o segundo transplante cardíaco (o primeiro tinha sido em Dezembro) - enquanto Paulo VI condenava, na encíclica Humanae Vitae, os anticonceptivos.

Ou das grandes façanhas desportivas. Se Goscinny e Uderzo lançavam Astérix nos Jogos Olímpicos, na Cidade do México, onde o tartan se estreava nas pistas, Dick Fosbury inaugurava uma nova técnica no salto em altura e Bob Beamon voava no comprimento conseguindo um recorde para duas décadas. Mas o ícone desses JO seria o gesto de Tommie Smith e John Carlos, os americanos que ganharam ouro e bronze nos 200 metros e, no pódio, ergueram o punho em jeito de cumplicidade com os Black Panthers, o movimento radical de Malcolm X. Não era este o sentido do livro de Marguerite Yourcenar, Obra ao Negro, que também não se pronunciava sobre a condenação da ONU ao regime do apartheid sul-africano.

E, no entanto, Sessantotto, como lhes chamaram os italianos, foi, acima de tudo, o ano da juventude a rebelar-se. Não apenas em Paris, onde os companheiros de Cohn-Bendit queriam descobrir a praia debaixo do chão e inspiravam, por exemplo, o quadro de Pomar Maio 1968; ou em Praga, onde os apoiantes de Dubcek afrontaram as lagartas dos tanques do Pacto de Varsóvia e onde Kundera concluía O Livro dos Amores Risíveis; nem sequer em Lisboa, onde a Primavera marcelista mandava fechar o Instituto Superior Técnico e se começa a publicar o jornal A Capital.

A Semente do Diabo, como no filme de Polanski, parecia ter-se espalhado pelo planeta: os estudantes de Cracóvia entravam em greve, os de Nova Iorque protestavam contra a guerra do Vietname, os de Milão ocupavam a Universidade, os de Tóquio e os de Dakar provocavam distúrbios, os de São Paulo envolviam-se em batalhas campais com a polícia, os do México eram massacrados pelo exército.

Com ou sem Cantares de Andarilho, como no disco de Zeca Afonso ("E se houver / uma praça de gente madura / e uma estátua / e uma estátua de febre a arder"), juntavam-se em marchas e manifestações, urgências e violências, operários e universitários, negros contra a segregação racial e feministas contra a eleição de Miss América, a Nova Esquerda anglo-saxónica e a contracultura hippie, os adeptos da Grande Revolução Cultural chinesa e os seguidores das religiões da Índia, a Internacional Situacionista e a Teologia da Libertação, a utopia dos soixant-huitards e o ícone do Che, checos e polacos a lutarem pela liberdade de expressão e franceses e americanos a contestarem a sociedade de consumo. Enquanto Soljenitsine era proibido de publicar na URSS e Norman Mailer editava Os Exércitos da Noite, um belga - em ano de problemas linguísticos entre valões e flamengos- chamado Tintim apanhava o Voo 714 para Sydney.

O futuro, em jeito de metáfora, era tão branco como a capa do LP dos Beatles desse ano - em que foi lançado o filme de animação Yellow Submarine e eles estavam fascinados pela meditação transcendental de Maharishi Mahesh Yogi - , que ficou conhecido, na discografia da banda, como The White Album.

DN, 29-12-2007
 
A Primavera afogada sob as lagartas dos tanques soviéticos

PEDRO CORREIA

Subitamente, todos os olhos se viraram para Praga. Na capital da Checoslováquia comunista, o partido conduzia em 1968 uma política reformista que assombrava o mundo: a velha clique dirigente, liderada pelo estalinista Antonin Novotny, dava lugar a uma nova geração de líderes, que proclamava as virtudes do "socialismo de rosto humano". A frase fez história e colou-se à face sorridente de Aleksandr Dubcek, o eslovaco que prometia implodir o colete-de-forças imposto por Moscovo. Eleito em Janeiro, logo tratou de acelerar o passo: anunciou medidas liberalizantes no sistema económico, fortemente centralizado, e permitiu a liberdade de imprensa. Em Praga, rompia a Primavera: cineastas como Milos Forman, escritores como Milan Kundera e tantos outros intelectuais podiam enfim criar em liberdade. O jornalista Ludvik Vaculik publicou a 27 de Junho o seu manifesto das Duas Mil Palavras, apelando à mobilização popular para a construção da democracia.

Pressionado pelas bases do partido, Dubcek prometeu a descentralização do Estado, a partir de uma federação entre checos e eslovacos - e com isso abalava mais um dogma da ditadura "socialista". Seguiu-se outro, ainda mais inimaginável: a luz verde dada à proliferação de partidos políticos - incluindo o velho Partido Social-Democrata que estivera no poder antes da guerra e fora ilegalizado a mando de Estaline.

A par de Dubcek, logo outros reformistas se tornaram conhecidos além-fronteiras: o primeiro-ministro Oldrich Cernik, empossado a 8 de Abril; o vice-primeiro-ministro Ota Sik, grande arquitecto das reformas económicas; o presidente do parlamento, Josef Smrkovsky; e o Presidente da República, general Ludvic Svoboda, um ex-herói da guerra que assumiu o cargo a 22 de Março, substituindo o odiado Novotny.

Vista de fora, tanta mudança era de digestão difícil num mundo dominado pela política de blocos. Nas capitais do Ocidente, Dubcek e os seus pares recebiam palavras de simpatia. Mas não faltaram os habituais profetas da desgraça, vaticinando que aquela aventura acabaria mal.

Infelizmente, os cínicos tinham razão: a URSS não consentia nenhuma brecha na monolítica Europa de Leste. De Moscovo, sucediam-se os avisos contra os "desvios burgueses" e de "direita" em Praga. Que esses "desvios" fossem saudados pela esmagadora maioria da população era um pormenor irrelevante para o poder soviético, que encarava a Checoslováquia como um simples pátio das traseiras da mãe-Rússia.

A 14 de Julho, o líder soviético Leonid Brejnev endereçou a Dubcek uma carta-ultimato, exigindo o fim das reformas. Nascia a doutrina da "soberania limitada", ironicamente crismada pelo marechal Tito, que na Jugoslávia do pós-guerra enfrentou Estaline. Dubcek convocara para 9 de Setembro um congresso extraordinário do partido, destinado a renovar por completo o Comité Central. Já não foi possível: na noite de 20 para 21 de Agosto, sete mil tanques do Pacto de Varsóvia (russos, alemães de leste, polacos, húngaros e búlgaros) ocupavam Praga. A Primavera afogava-se em cinzas e no sangue de 72 mortos. "Foi um dever internacionalista", justificava o Pravda a 22 de Agosto. "É um crime abominável", protestou o primeiro-ministro chinês Chu En-Lai. Entre os raros que aplaudiram, contavam-se Fidel Castro e Álvaro Cunhal. Dubcek, destituído de funções, tornou-se um obscuro guarda florestal na Eslováquia.

Checos e eslovacos mergulharam noutro ciclo de chumbo. Podia repetir-se em 1968 o que Camus dissera em 1956, quando os soviéticos esmagaram a insurreição de Budapeste: "Se a opinião mundial é demasiado débil ou egoísta para fazer justiça a um povo mártir, espero que a resistência dure até que esse Estado contra-revolucionário se afunde sob o peso das suas mentiras e contradições." E a resistência durou. Até outra Primavera, surgida 21 anos depois.

29-12-2007
 
E os portugueses descobriram que, afinal, Salazar era mortal

ALBANO MATOS

No dia 7 de Setembro de 1968, o País era surpreendido com um simples boletim médico lido aos microfones da Emissora Nacional:

"Em consequência de uma queda na sua residência de Verão, no Estoril, o Sr. Presidente do Conselho apresentou sintomas que levaram o seu médico assistente a recorrer à colaboração de dois colegas neurocirurgiões. Sua Excelência foi operado esta noite a um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem."

A idade do paciente (79 anos) e o facto de, pela primeira vez, oficialmente, se referir uma questão de saúde de Salazar devem ter feito muitos portugueses duvidar da eternidade do ditador. As três semanas seguintes foram decisivas. No final, o país mudara de dirigente e de algum pessoal político dominante e a sacralização do poder perdera-se definitivamente: o Pai Tirano, severo mas protector (segundo a iconografia oficial e alguns filmes da época de ouro da comédia à portuguesa), dera lugar ao sorriso afável, tanto quanto possível próximo, do Professor cujos alunos louvavam a competência mas criticavam a rigidez das formas. Seria essa rigidez que viria a perdê-lo seis anos mais tarde.

Em 1968, há 40 anos, Portugal já não era o "paraíso triste" que Saint-Exupéry adivinhara no início da II Guerra, esse território falsamente neutral em cuja capital se acotovelavam judeus em fuga da barbárie nazi e espiões de todas as pátrias e convicções. Era, nesse final da prodigiosa década de 60, um país cinzento, a cuja miséria parte da população fugira procurando salvação em França ou na Alemanha. Um país de biscates e tentações - que o cinema tão bem fixou, de Verdes Anos a Belarmino -, de renúncia e pequenos heroísmos quotidianos, que a imprensa pouco retratava e cujos ecos é hoje necessário resgatar de poemas (Sophia de Mello Breyner, Alexandre O'Neill) ou romances (Carlos de Oliveira, Cardoso Pires).

A América ardia, no Vietname ou em casa, por causa da guerra. Na Paris cercada de bidonvilles onde se amontoavam os emigrantes, estudantes procuravam a praia debaixo da calçada. A França que se aborrecia (Pierre Viansson-Ponté no Monde a 15 de Março) acordava sobressaltada com as exigências impossíveis dos seus filhos. Em Praga, a utopia chamava-se "socialismo de rosto humano". Duraria o tempo de uma fugaz Primavera, para morrer sob as lagartas dos tanques do Pacto de Varsóvia e renascer no fogo com que se imolou Jan Palach, o estudante que se sacrificaria em nome da História.

Em Lisboa, o ano quase começara com o primeiro protesto público contra a guerra. Em 21 de Fevereiro, um punhado de estudantes marchara do Liceu Camões até à embaixada americana para dizer não à guerra... do Vietname. Um pretexto literário. A cidade de Orão atacada pelos ratos na Peste, de Camus, era metáfora de Paris ocupada pelos alemães; a Florença mussoliniana de A Cidade das Flores, de Abelaira, ocultava a Lisboa salazarenta, menos violenta mas igualmente sufocante. O protesto contra a intervenção americana no Vietname era, afinal de contas, uma recusa da guerra colonial.

Os ecos do mundo chegavam cá esbatidos, mas as novas gerações já escolhiam a vida a cores, contrariando o aviso daquele professor da Faculdade de Direito que, no primeiro dia de aulas, aconselhava a indumentária apropriada aos alunos: "Os senhores devem vir sempre de gravata, que é sinal de respeito, e de fato cinzento, que é a cor que mais convém à função discente."

Esse mundo estava a ruir. Às 20 horas de 26 de Setembro, o Presidente da República dirigia uma mensagem à Nação. Anunciava a demissão de Salazar, gravemente doente, e a sua substituição por Marcelo Caetano, "um europeu cem por cento", como lhe chamava o Financial Times.

"Não quero ver os portugueses divididos como inimigos", disse Caetano no primeiro discurso, o que abriu a efémera "Primavera marcelista". Mas havia a guerra. Para avançar no seu novo caminho marítimo, agora para a Europa, o regime tinha de acabar com ela. Não conseguiu. E foi a guerra que acabou com o regime.

DN, 29-12-2007
 
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