20 fevereiro, 2008

 

Ribeira


do Porto


http://www.portugaldiario.iol.pt/noticia.php?id=918056&sec=3

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A Ribeira foi tomada de assalto

ALFREDO TEIXEIRA, FRANCISCO MANGAS e JOANA DE BELÉM

Morte, rivalidade entre gangues. De repente, a Ribeira dos barcos rabelos, bares e restaurantes, do Infante D. Henrique e da Ribeira Negra, salta para a actualidade pelas piores razões. Ilídio Correia, da vizinha Miragaia é assassinado e um grupo de jovens é detido. É nesta parte antiga do Porto que têm o seu ponto de encontro, na sede do clube o Ribeirense. Alguns, poucos, ainda vivem juntos, outros seguiram a tendência da desertificação, procuram paragens diferentes para morar. Mas é à Ribeira que regressam sempre.

Com os quatro membros do gangue da Ribeira detidos, a luta processual só agora começou. Fátima Castro, advogada de Sandro Onofre e Paulo Aleixo, que aguardam julgamento com Termo de Identidade e Residência, está a estudar a possibilidade de processar o Estado Português pela acusação de terrorismo.

A Ribeira e o Porto já tiveram melhor imagem. Quando o naturalista alemão Heinrich Friedrich Link passou por aqui, em 1798, disse que estava perante a "cidade mais limpa do País". E "muito segura, precisamente ao contrário de Lisboa". Na obra Notas de Uma Viagem a Portugal e Através de França e Espanha, Link, além da admiração por ver magnólias nos jardins, conta que "os roubos e os homicídios motivados por roubos eram coisas muitíssimo raras". Exemplos de facadas por ciúmes, contudo, "não faltavam".Se o naturalista voltasse ao Porto, duzentos anos após a primeira estadia, as suas notas de viagem sobre a cidade, por certo, seriam menos solares. Da Ribeira, e do seu povo, o ilustre viajante centrou a atenção num certo declínio do porto da cidade, em parte, devido a corsários franceses que acharam refúgio em Vigo, na vizinha Galiza - e "vagueavam quase sempre em bandos à vista do Porto".

Os corsários, enfim, perderam-se na memória. A Ribeira, essa, recupera um rosto violento. Jardim Moreira, padre de S. Nicolau, não se pronuncia sobre o alegado gangue, porque esse assunto, diz, não é da sua competência. "Será injusto da minha parte apontar o dedo." Padre Jardim tem, no entanto, uma explicação para insegurança e violência com raízes na sua paróquia. "Essa gente é vítima, enveredou por aí porque é vítima, não lhe deram atenção a seu tempo" e procuraram alternativas. "Das autoridades, quem tiver as mãos limpas que atira a primeira pedra".. Para o pároco, pobreza é um sinónimo de injustiça. "Os pobres são uns injustiçados: e podem ser eles culpados da injustiça dos responsáveis? Não, não podem ser". Jardim , que esta semana fez o funeral a duas mulheres de S. Nicolau vítimas de over dose, afirma que é preciso "desmarcar a gente que vive nos palácios e faz tudo o que lhes apetece". Não seriam precisos "tantos milhões", assegura o pároco e também presidente da Rede Europeia Anti-pobreza em Portugal, para resolver o problema da habitação no centro histórico

Por detrás de uma paisagem única, património mundial, uma longa história de miséria e sofrimento. A turística Ribeira, da movida, dos bares e restaurantes, do Hotel Pestana, debruçado no rio, dos barcos de cruzeiro a subir o Douro, ainda não sacudiu em pleno a fuligem, as marcas, de outrora. O tempo, não muito distante, de na mesma casa sobreviverem centenas de pessoas - os chamados "paquetes da Rosa Padeira", na Rua da Fonte Taurina -, com divisões de serapilheira, e uma só sanita para todos, é verdade, faz parte da memória. Ao passado pertence a penúria extrema das crianças que dilacerou o coração do padre Américo, o fundador da Casa do Gaiato, nas suas visitas ao inferno do Barredo. "Tal era a pobreza que as pessoas alugavam garfos e colheres para comer", conta Maria Helena, há 25 anos na cozinha do restaurante A Grade.

"As pessoas tinham para cima de cinco filhos cada", relembra Miguel Gonçalves, 57 anos. Só a sua avó paterna contribuiu para a demografia com 21 filhos, e não era caso único: "Morava muita gente, num simples quarto podiam viver sete ou oito, casas de três e quatro andares com duas casas de banho."

"Ui! Havia tanta gente! Na parte de trás, no Barredo, vivia mais gente do que devia." Maria Sousa tem bem viva a memória dos quartos alugados pela Elisa do Ceguinho e também pela Rosa Padeira, a dona do prédio onde até "num vão de escada vivia uma família". Tempos difíceis, que os mais antigos no entanto olham com saudade. A Ribeira formava "uma família", ouviu o DN da boca de muitos dos que ainda a habitam. "Agora não existe fome nem pobreza, está melhor, mas mais valia a pobreza antiga do que a riqueza de hoje, auxiliávamo-nos uns...

DN, 12-1-2008
 
Velhos prisioneiros dentro da própria casa

FRANCISCO MANGAS

A casa está bem arrumada, limpa. Da janela da exígua cozinha vê-se os telhados da Ribeira, ao fundo, um trecho do rio. O gorjeio agreste das gaivotas prenuncia aguaceiro. Irene, que nos recebe com um sorriso, gosta de gaivotas, gosta de gatos, gosta "muito de crianças". Irene é uma das muitas prisioneiras, cativas na própria casa, no centro histórico do Porto.

Vive sozinha, num quarto andar, na rua da Vitória. As duas "operações às artroses" não lhe retiraram a mobilidade: faz limpeza, cozinha, andarilha pela casa. Apenas por dentro da casa. Irene Faria, 84 anos, "há ano e meio" não sai à rua. As pernas conhecem bem o caminho, mas as "48 escadas", de madeira rangente, assustam. Agora assustam. "Descer, devagarinho, podia. Mas subir..."

Na zona da Ribeira e na freguesia vizinha da Vitória, como Irene, "criada de servir" que aprendeu a falar francês, há dezenas de casos idênticos. Veio a velhice, a casa, o doce lar, virou cárcere. Vivem nos últimos pisos - as rendas aí eram menos tormentosas para gente simples - de prédios antigos, sem elevador. Em grande parte das casas antigas, entretanto recuperadas, o problema subsiste: a arquitectura não permite ou adia--se, por questões de poupança, a instalação do ascensor.

O presidente da Junta de S. Nicolau, freguesia que integra a Ribeira, conhece bem o problema. Jerónimo Poncinao, 73 anos, mora, há décadas, num quinto andar da Rua de Belmonte. Para este beirão, natural da aldeia de Monte- perobolso, os "80 degraus" de escadas funcionam ainda como acesso. O mesmo não dirá a sogra, Altina Marques, 93 anos, que reside na mesma casa.

Há situações em que esta espécie de prisão domiciliária, pena a cumprir por gente que comete o crime de envelhecer, não é total. Ana Pinto, 74 anos, vive com um filho doente e dois gatos (a Boneca e Pretinho) nas águas-furtadas de prédio de cinco pisos. A escadaria é imensa, a pique. Ana desce uma vez à rua, pela manhã. O resto do dia passa-o em casa a ver televisão, indiferente ao intenso cheiro a urina de felino.

A companhia nocturna de Irene é também a televisão. "Fica ligada a até à meia-noite." Durante o dia, deixa ir o olhar no voo das gaivotas ("vêm comer aqui ao peitoril da janela"), a viagem termina na outra margem do rio, em Gaia, onde trabalhou muito tempo. Da outra janela, da parte da frente, vê a ruela que a levava ao centro da cidade. E os gatos a lamber o sol, no mundo que lhe está vedado.

Uma vez por semana abre a porta a um funcionário do Centro Social Sá Homem, que lhe traz as compras para uns dias. Irene é viúva. O amor tardio com o taxista com quem casou, tinha então 47 anos, não gerou nenhum herdeiro. Uma sobrinha visita-a aos domingos; às vezes, a solidão é interrompida com a passagem da assistente social ou do pároco da S. Nicolau e da Vitória. Sempre que é solicitado, padre Jardim Moreira sobe o escadaria de madeira para confessar estes deserdados fiéis, partilhar a amargura.

Na Ribeira e restante geografia de S. Nicolau, segundo os dados do pároco, existem não mais de "900 habitantes". Quando aqui chegou, em 1968, a população ultrapassava as dez mil almas. Uma parte significativa dos sobreviventes atingiu o patamar da terceira e idade. Moram no 3.º, 4.º e 5.º pisos. "Só descendo numa cadeirinha dos bombeiros, senão não saem", diz padre Jardim. "Isto é o drama de muita gente no centro histórico."

A privação da rua, do sol, de caminhar pela cidade, mesmo que seja breve o roteiro, agrava a solidão. Outra mazela arrasta a imobilidade, a clausura doméstica: como vivem fechados, o ar não se renova, não se regenera, no espaço habitável. Quase todos sofrem, ou vão sofrer, de problemas respiratórios que precipitam a morte.

Pouco ou quase nada podem fazer. As reformas pequenas não lhe permitem o sonho de mudar para casa menos desumana, e o acesso a lar terceira idade também se afigura difícil. Irene acalenta a esperança de acabar o restos do dias no lar do centro social da paróquia da Vitória.

Como tinha sido avisada de véspera da nossa visita, Irene Faria pediu a um vizinho para nos abrir a porta da rua. Nas outras visitas, as chaves voam lá do alto da prédio, embrulhadas num pano de flanela para amortecer a queda no lajedo.

DN, 12-1-2008
 
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