20 fevereiro, 2008

 

Stress


de guerra




http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?idCanal=0&id=189189
http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?idCanal=0&id=204661

http://www.geocities.com/associacao_apoiar/

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Veteranos cometeram 121 crimes desde 2001

HELENA TECEDEIRO

"Família culpa Iraque após filho matar a mulher", "Soldado acusado de homicídio revela stress de guerra" ou "Veteranos do Iraque suspeitos de dois crimes". Foi com base em títulos de jornais como estes, além de relatórios policiais e judiciais e entrevistas com suspeitos, familiares e advogados de militares, que o New York Times fez o levantamento dos crimes cometidos nos Estados Unidos nos últimos seis anos por veteranos das guerras do Afeganistão e Iraque. Conclusão: desde 2001, ex-combatentes destes conflitos cometeram 121 crimes após o regresso ao país.

Em metade dos casos, foram usadas armas de fogo. Os restantes consistiram em esfaqueamentos, estrangulamentos ou espancamentos. Num terço dos casos, as vítimas eram mulheres, namoradas, filhos ou outros familiares dos militares. Foi o caso de um militar de 20 anos que matou a filha, de 2, atirando-a contra a parede enquanto recuperava após uma explosão lhe ter arrancado um pé.

"Ele voltou diferente" é uma frase muitas vezes pronunciada pelas famílias dos veteranos. Depois da experiência nas ruas de Falluja ou Bagdad, os militares podem voltar ao seu país irritáveis, desligados, sem conseguir conciliar o sono, viciados em droga ou com problemas de alcoolismo e andam com uma arma à mão. Só no Iraque, desde a invasão em Março de 2003, já morreram quase quatro mil soldados americanos e perto de 30 mil ficaram feridos.

Ainda segundo o New York Times, desde a invasão do Afeganistão, em Outubro de 2001, que levou à queda do regime talibã, acusado pelos EUA de abrigar Ussama ben Laden, cérebro dos atentados de 11 de Setembro de 2001, os crimes cometidos por veteranos de guerra aumentaram 89%.

O Pentágono recusou comentar estes números. Mas o coronel Les Melnyk, porta-voz do Departamento de Estado questionou a validade de comparar dados antes e depois da guerra. Para o militar, os números aumentaram devido à maior atracção dos media por estes assuntos desde o 11 de Setembro. Além disso, o diário de Nova Iorque "mistura mortes involuntárias com homicídios em primeiro grau". De facto, 25% dos 121 crimes a que o New York Times se refere envolvem acidentes de automóvel mortais nos quais os condutores eram militares que se encontravam sob o efeito do álcool. Apenas um dos crimes foi praticado por uma mulher.

Dos militares envolvidos, três quartos ainda estavam ao serviço do exército, apesar de terem regressado ao seu país. Isso talvez explique que um quarto das vítimas sejam colegas dos assassinos. Em Dezembro de 2003, um grupo de soldados esfaqueou e depois incendiou o corpo de Richard Davis, um perito do exército que, tal como eles, acabara de voltar do Iraque. Esta história inspirou o filme de Paul Haggis In the Valley of Elah, protagonizado por Tommy Lee Jones e Charlize Theron.

Quem lamentou a notícia do New York Times foram as associações de veteranos de guerra, que recordaram ao diário o facto de a maioria dos militares que regressam da guerra se conseguir readaptar facilmente à vida nos EUA. Estes grupos lamentaram que a imprensa se concentre na minoria que não consegue adaptar-se. Em 2006, a revista Veterans of Foreign Wars referia-se com desprezo ao "mito do veterano louco" que, segundo ela, torna difícil aos antigos militares encontrar trabalho após voltarem de um conflito.

Décadas de estudos sobre os problemas dos veteranos do Vietname provaram haver ligação entre o trauma de guerra e o desemprego, a violência doméstica e a criminalidade entre veteranos. Hoje, o Pentágono revela que metade dos guardas nacionais, 38% dos soldados e 31% dos marines voltam da guerra com problemas psicológicos. Apesar dos es- forços para detectar essas situações, o exército tem sido acusado de enviar para a guerra pessoas que já apresentavam distúrbios mentais.

DN, 14-1-2008
 
"O 'stress' de guerra é contagioso e crónico"


Sónia Morais Santos Leonardo Negrão

Nunca estiveram numa guerra. Nunca dispararam um tiro, nem escutaram o silvar frio das balas, nem sentiram o cheiro da morte. São mulheres. Escaparam, pela sorte de terem nascido mulheres, à inevitabilidade da guerra. Ou, pelo menos, assim pensavam. Assim era suposto. Mas não. As mulheres dos ex--combatentes da Guerra Colonial vivem em guerra há mais de 30 anos. Uma guerra dentro de casa, insidiosa, violenta, permanente. Uma guerra que nunca vai ter tréguas nem acordos de paz.

Lucília Costa tem 50 anos. Casou aos 19 com um rapaz da terra. Conhecia-o mal. Sabiam um do outro pelas cartas, trocadas durante a guerra. Quando ele veio, casaram, em Outubro de 74. Pouco tempo depois, Lucília começou a perceber que o marido não era o homem dócil que todos descreviam. "As pessoas que o conheceram antes da guerra não o reconheciam. A avó do meu marido até costumava dizer: 'É o meu Manelinho mas sem modos.'"

Guerra dentro de casa

Manuel Costa vinha diferente. Não dormia. Não a deixava dormir. Abanava-lhe a cabeça de encontro à almofada, rosnando: "Eu não durmo mas tu também não!" Gritava durante a noite. Acordava a chorar como uma criança. Isolava-se. Metia-se na cama à sexta-feira depois do trabalho e só voltava a levantar-se na segunda de manhã. Não podia ouvir um barulho mais forte sem se encolher como se tivesse acabado de rebentar uma bomba. Poucos meses depois do casamento, armou uma discussão que acabou em pancadaria. Como muitas outras.

Lucília chorou muito. Tinha 19 anos e sonhava com uma vida diferente. Não podia compreender que o marido visse filmes violentos à frente do filho de sete anos. "Deixa estar o miúdo!", dizia-lhe ele. "Ver estas coisas prepara-o para a vida!" Lucília não podia compreender que os pratos voassem, que as cadeiras voassem, que o triciclo do filho andasse pelo ar, sem explicação, sem motivo aparente, sem culpa. Hoje, compreende. O grupo de apoio na associação Apoiar (uma associação que presta auxílio a ex-combatentes e às suas famílias) tem-lhe feito ver que a guerra que trava há 32 anos não é só sua. Nem só dele. É uma guerra de muitas famílias portuguesas.

Grupo ajuda a compreender

"Quando vi o tsunami na televisão pensei: isto é o meu marido. Um mar calmo, sereno, e de repente… a destruição total." As mulheres estão sentadas em círculo, numa sala da associação Apoiar, em Lisboa, e é Lucília Costa quem faz a comparação. Lurdes Lourenço, 61 anos, acena com a cabeça, em concordância, e atira outra: "A senhora já viu uma cobra a moer um coelho? É o que ele me faz a mim. Mói-me. Desgasta-me. Não faz a barba, não muda de roupa, não fala, não diz rigorosamente nada, não tem qualquer iniciativa. Não sabe dar, não sabe receber. Não existe."

Carla Santos é uma das psicólogas clínicas da Apoiar. Há dois anos que segue estas mulheres, em sessões de psicoterapia: "Passaram 20, 30 anos sem saber o que é que os maridos tinham. São mulheres muito ansiosas, deprimidas, com uma baixa auto-estima e um grande isolamento social. Muitas sofrem de hipertensão e de diabetes, provocados pela guerra em que vivem há anos."

Mas há mais. A sintomatologia é longa. Pesada. Muitas mulheres são praticamente mães dos maridos. Fany Lopes, psicóloga e coordenadora das consultas de stress pós- -traumático no Hospital Júlio de Matos, explica que a incapacidade deles obrigou-as a assumir todos os papéis: "De certo modo, era como se tivessem mais um filho, uma criança, que tinham de proteger." Uma atitude que faz aumentar a baixa auto-estima deles e também a agressividade.

Violência física e psicológica

A agressividade e a passividade. Duas das características mais vincadas nos ex-combatentes que sofrem de stress pós-traumático. Alguns alternam as duas. Outros são tão absolutamente deprimidos e passivos que não chegam nunca a exaltar-se. Como o marido de Lurdes Lourenço: "É um morto. Se eu não falar ele também não fala. Podíamos ficar assim para sempre. A vida sexual? Não existe! Como é que pode haver vida sexual com alguém que já morreu?" Lurdes Lourenço desfaz-se em lágrimas: "Cheguei a dizer à minha filha: para te ver casada com um homem como o teu pai prefiro ver-te num caixão. Ao menos sabia que não sofres o que eu tenho sofrido."

Lucília Costa ouve os relatos das companheiras de grupo de apoio e assente. Sabe muito bem do que falam. De resto, é esta identificação que torna as terapias de grupo tão profícuas. Lucília não perde tempo (todas têm uma grande necessidade de falar): "Ainda ontem estava tudo bem. De repente, só por fazer uma pergunta, explodiu e já me queria dar um soco. Também já me ameaçou várias vezes, diz que incendeia a casa comigo lá dentro. Chego a ter medo dele. Muito medo mesmo", confessa Lucília com um sorriso triste. E continua: "Outras vezes diz que se mata. Deixa-me jornais abertos em artigos que falam de alguém que se suicidou. É assim a minha vida." A guerra psicológica é intensa. Diária. Há 32 anos. "O stress de guerra é contagioso e crónico", explica Lucília.

Divórcio é raro mas acontece

A psicóloga Fany Lopes, pioneira no acompanhamento a estas mulheres, explica que o divórcio é raro: "Ninguém vai divorciar-se de um filho, ainda mais um filho doente!" Carla Santos refere também o peso sociocultural da época para justificar a baixa taxa de divórcios: "Não era suposto que se divorciassem. Mas é bom que se diga que estas mulheres resistem e são maternais mas muitas escondem uma grande revolta, um grande ódio. Pela vida que foram obrigadas a ter."

Rita (nome fictício) divorciou-se mesmo. Não foi capaz de suportar a pressão: "O meu marido não gostava que eu me ausentasse para fazer a minha vida. Era muito dependente. E os medicamentos que tomava tinham efeitos sobre a libido. A nossa vida sexual foi muito afectada." Rita só aprendeu mais sobre a doença destes homens e respectivo contágio na família há pouco tempo, e com a Apoiar (telef: 213870174): "Se tivesse tido este apoio mais cedo, e aprendido a lidar com isto, talvez não me tivesse divorciado. Talvez ainda tivesse uma família. Talvez até conseguisse ser feliz. Apesar de tudo."

DN, 24-4-2006
 
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