05 março, 2008

 

Da governação


Opiniões, palpites e outros desabafos



Comments:
O TEMPO DA POLÍTICA ÀS AVESSAS

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

A política portuguesa anda ao contrário. O Governo é atacado por medidas sérias e importantes, enquanto os seus erros passam despercebidos ou até são tratados como sucessos. Como já aconteceu no passado, estamos presos numa rede de mal-entendidos.

A redução do défice, realização magna da legislatura, foi em boa medida uma triste oportunidade perdida. O efémero êxito deveu-se sobretudo à opressão da economia com impostos e dos funcionários com congelamentos de salário e carreira, quase sem mudar a estrutura. Quando estes expedientes forem levantados, como têm de ser, o buraco regressa.

O pior do Governo é um traço autoritário com razões higiénico-legalistas, escondido na apatia geral da população. Da "tolerância zero" à lei do tabaco, passando pela ASAE, DGCI e videovigilância, vivemos numa sociedade cada vez mais controlada. A obsessão regulamentar, ânsia inspectiva e corporativismo clientelar criam um clima sufocante a que poucas vozes reagem. Troca-se a liberdade pelo conforto. Que seja um Executivo socialista a administrar esta passividade burguesa é outro aspecto da política às avessas.

Ao mesmo tempo, porém, os piores ataques ao Governo vêm não de erros mas de medidas essenciais. São dois os mal-entendidos que ensombram decisões difíceis, corajosas e importantes.

O primeiro nasce da geografia e do inevitável conflito entre a visão local e nacional. Nem sempre de perto se vê melhor. É assim a co-incineração. O fecho dos centros de saúde é outro exemplo recente. Governos anteriores, por demagogia e populismo, abriram serviços sem olhar a custos ou até benefícios reais das populações. Qual o ganho de ter um centro de saúde na aldeia, aberto 24 horas por dia, só para enviar doentes ao hospital regional? Se o custo dessa miríade de centros impedir um conjunto adequado de especialistas nos tais hospitais regionais, todos perdem.

A rede de cuidados de saúde, para servir o interesse local, tem de ser planeada a nível nacional e distribuir bem os recursos pelo território. É verdade que essa decisão é sempre inquinada por bairrismos e corporações. Como se viu no aeroporto de Lisboa, estudos técnicos dão resultados conforme a encomenda. Assim, muitos fechos de unidades podem ser errados ou, pelo menos, discutíveis. Mas o elemento central do debate vem, sem dúvida, do confronto entre a miopia paroquial e a visão global. Uma vez aberto um centro de saúde, fechá-lo constitui uma afronta. Por isso se deve louvar o Governo pela coragem de tentar.

A segunda confusão vem da História. É inevitável que a mudança do mundo seja mais rápida que a das nossas ideias e teorias. Aqui o exemplo determinante é a reforma da Segurança Social. Esta geração anda muito indignada com a enorme injustiça de receber menos pensões que os pais. Mas ninguém fala na injustiça muito maior de todos morrermos muito mais tarde que eles. Porque foi esse colossal benefício que impôs a mudança nas regras das pensões. É incrível que pessoas que vão viver muito mais tempo fiquem furiosas por não as deixarem reformar mais cedo. Ainda mais tolo é, temendo pelas pensões futuras, contestar as medidas que permitirão tê-las. A maioria acreditou nos políticos quando eles dramatizaram a falência da Segurança Social, mas agora não acredita quando a mudança assegurou o futuro. Mexer nas pensões é uma medida corajosa que se deve louvar.

Estas duas políticas incompreendidas são motivos de justo orgulho do Governo. Mas, ao mesmo tempo, elas conduziram a uma das suas piores feições. Quando um ministro precisa de tomar medidas difíceis e por isso é muito contestado, acaba por se convencer de que a contestação é um sinal de sabedoria e actividade. O critério da boa governação passa a ser a dureza, não a eficácia. Assim, começando no bom caminho, entra em autismo, sem perceber que, a partir de certa altura, já são os seus erros, e não a incompreensão pública, o motivo das críticas. É essa tentação terrível que tem conduzido à obsessão regulamentar, ânsia inspectiva e corporativismo clientelar.

DN, 21-1-2008
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?