02 março, 2008

 

Da guerra


colonial






http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=279235&idselect=9&idCanal=9&p=200

http://guerracolonial.home.sapo.pt/

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O SANGUE E OS MORTOS

David Borges
Jornalista

Pede-me o Diário de Notícias que, mais do que sobre o chamado "mundo lusófono", escreva sobre a relação histórica de Portugal com África, no preciso espaço que, hoje, faz o balanço da visita de Cavaco Silva a Moçambique e abre um pouco mais a janela que mostra aos portugueses a paisagem chocante, e até aqui esquecida, dos mortos portugueses nos combates de África e que jamais retornaram à terra de onde, um dia, foram forçados a partir para, por erradas razões da Pátria, combaterem em nome de Portugal.

Não consta que Cavaco tenha visitado algum talhão militar português em Moçambique, mas poderia tê-lo feito porque firmemente agarrada aos mortos enterrados em África está uma das duas mais poderosas raízes da relação luso-africana, firmando-se a outra, também forte, na mistura de sangues, a mistura que produziu José Craveirinha, uma das maiores figuras da África que fala português e que dedicou ao seu "belo pai, ex-emigrante", o mais comovente dos seus poemas, uma elegia a esse Craveirinha de Algezur, do mesmo Algarve de Cavaco, que procurou em Moçambique, no distante ano de 1908, um futuro que o apertado horizonte português não lhe permitia vislumbrar.

Ao pai português, escreveu o africano José, "de coração ronga-ibérico mas afro-puro", que "as maternas palavras de signos", que viviam e reviviam no seu sangue, pacientemente esperavam a época de colheita, soltas já estando "as sentimentais sementes de emigrante português, espezinhadas no passo de marcha das patrulhas, de sovacos suando as coronhas de pesadelo".

Na sua "rude e grata sinceridade", José Craveirinha não esqueceu, nunca, o "antigo português puro", que gerou "no ventre de uma tombasana, mais um novo moçambicano, semiclaro para não ser igual a um branco qualquer, seminegro para jamais renegar um glóbulo que fosse dos Zambezes" do seu sangue...

Em Craveirinha, "ficaram laivos do luso- -arábico Algezur" da infância do pai mas "amar por amor" ele só amou e somente podia e devia amar Moçambique, a sua "bela e única nação do mundo", onde a mãe nasceu, o gerou e com o pai "comungou a terra, onde ibéricas heranças de fados e broas se africanizaram para a eternidade" nas suas veias e o sangue do pai "se moçambicanizou nos torrões da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital, colono tão pobre" como desembarcara em África…

Diante da sepultura do pai, chorou sempre José pelo seu "belo algarvio bem moçambicano", o seu "resgatado primeiro ex-português, número um Craveirinha moçambicano". E deixou-lhe, em "alinhavadas palavras como se fossem versos", uma "homenagem de caniços agitados nas manhãs de bronzes, chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias almas, esguias hastes espetadas nas margens das húmidas ancas sinuosas dos rios"...

A elegia de Craveirinha ao seu belo pai ex- -emigrante convoca-nos para a protecção de tantas e tão poderosas heranças luso-africanas, abrindo caminhos que sigam bem para lá dos negócios sem alma e do turismo sem coração. Só a continuada mistura de sangues, ibérico e africano, e com terras enriquecidas pelo ADN de portugueses e africanos, fará o futuro merecer o que de melhor o passado deu - a Portugal e a África.

DN, 4-4-2008
 
Regresso dos soldados mortos divide combatentes

PAULA BORGES

Guerra colonial. Um debate delicado foi aberto pela exumação dos restos mortais de onze soldados portugueses que perderam a vida com a arma na mão, em Guidaje, Guiné-Bissau. Nem toda a gente está de acordo com a ideia de que o campo de batalha seja a sepultura mais digna para um combatente
O Dia do Combatente, celebrado ontem, na Batalha, é este ano marcado, se não directa, pelo menos indirectamente, pela questão da exumação, em Guidaje, na Guiné-Bissau, dos restos de onze militares portugueses, mortos em combate, em 1973, e sepultados na zona onde se situava um pequeno aquartelamento, já muito perto da fronteira com o Senegal.

A operação de levantamento das ossadas, de acordo com o major-general Lopes Camilo, vice--presidente da Liga dos Combatentes, foi desencadeada no quadro de um plano geral de intervenção que pretende concentrar os restos de militares caídos em combate em determinados cemitérios locais, que serão cuidados e eventualmente transformados em espaços de memória, que podem ser até de memória partilhada com os países onde os cemitérios se localizem e dar origem ao chamado "turismo de memória".

No caso da Guiné-Bissau, a Liga dos Combatentes tem um protocolo já firmado com o Instituto de Defesa Nacional guineense, prevendo-se a concentração das ossadas, depois da sua rigorosa identificação, em cemitérios de Bissau, Babadinca, Bafatá e Gabú.

No caso das onze exumações agora feitas, depois da identificação, que ainda não foi feita, sendo, por isso, os restos considerados como de "soldados desconhecidos", serão as ossadas depositadas no cemitério de Bissau, a menos que os familiares decidam fazer a sua transladação para Portugal, cujas despesas terão de ser suportadas pelas próprias famílias, já que a Liga apenas actuará, nesses casos, na identificação dos militares e no apoio à remoção de barreiras burocráticas que simplifique os procedimentos legais necessários à transladação.

Por localizar estão ainda os restos de 20 outros militares, de incorporação sobretudo guineense, e sepultados na mesma região de Guidaje, que era, em 1973, uma das mais aquecidas zonas de guerra.

Ninguém fica para trás?

Das onze sepulturas referenciadas, com levantamento de ossadas, três dizem respeito a pára- -quedistas, alvos da atenção da respectiva associação, que permanece unida e aparentemente fiel à ideia de que "ninguém fica para trás", e do grande impulso emocional resultante de imagens recentes, e traumáticas, de cemitérios ao abandono em África, com campas depredadas de antigos combatentes.

Nasceu aí um movimento cívico de antigos combatentes, visando "não esquecer os companheiros de armas que em terra do então ultramar tombaram para sempre, dando a vida pelo país" e firmando-se naquilo que é sublinhado como "sentido da honra e dever de lealdade para com os que morreram por Portugal".

O major-general Lopes Camilo situa, porém, a operação no âmbito restrito de uma acção envolvendo a Liga dos Combatentes, o Ministério da Defesa, a Universidade de Coimbra e o Instituto de Medicina Legal. O sucesso da localização e levantamento das ossadas, e uma eventual transladação dos "páras" para Portugal, pode, no entanto, iniciar, pela mediatização e choque emocional da operação em Guidaje, um delicado processo, chocando-se teses que defendem o regresso a casa de todos os que morreram em África ou sustentam que devem os mortos ficar na dignidade dos campos de batalha onde tombaram.

Augusto de Freitas, hoje um neuropsicólogo, sargento em meados dos anos setenta, com missões cumpridas em Moçambique, de 1973 a 1975, nas zonas operacionais de Tete e Nangade e que lidera, agora, a Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra, não esconde uma crítica dura: "É uma vergonha a falta de respeito pelos que lutaram pela Pátria e os governos de Portugal têm esquecido os que morreram e ficaram enterrados em cemitérios que estão hoje ao abandono e que têm sido, em alguns casos, depredados!"

Augusto de Freitas, admitindo que o assunto é complexo, continua à espera de que o País enfrente a necessária tarefa de fazer regressar os restos dos que perderam a vida na guerra colonial, algo que tem de ser feito, mesmo sabendo que essa operação "vai mexer com as emoções do País e dos familiares dos que tombaram em combate".

Há, porém, quem considere que "os mortos são uma marca do império", pessoas que "estão onde, se calhar, devem estar", em locais "onde combateram e morreram", não havendo "sepultura mais digna do que a que foi cavada no próprio campo de batalha".

Defensores desta tese convidam a uma profunda e sensata reflexão que evite a abertura de uma "caixa de Pandora". O regresso dos restos de apenas alguns antigos combatentes poderá levar muitas famílias a reivindicar o regresso também dos seus mortos. "E se não houver esses mortos?", perguntam. É que não poucos combatentes morreram em circunstâncias que não permitiram sequer a recuperação de fragmentos e o antigo "comando", agora escritor, Matos Gomes, combatente na zona de Guidaje, limita-se a contar que numa operação de resgate de vítimas do rebentamento de uma mina, apenas conseguiu identificar, entre inúmeros minúsculos fragmentos, "a roda dentada da caixa de velocidades do veículo"

DN, 6-4-2008
 
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