08 março, 2008

 

8 de Março


Dia do pescador




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Os polvos saem dos potes mas não me saem da cabeça

MARCOS CRUZ

Durante a greve dos pescadores, ouvi uma senhora, na doca de Matosinhos, a dizer que o primeiro-ministro "devia era ir ao mar". Não sou primeiro-ministro nem pretendo sê-lo, mas achei pertinente, para um jornalista, a sugestão. Tratei das coisas, fui e não me arrependo. Tão cedo, no entanto, não me apanham nesta rede. É vida dura, demasiado dura para um burguês como eu, habituado a ter peixe na mesa. Dura e cruel
Motora 'Eça de Queirós' saiu de Matosinhos após o jantar e voltou às 12.30

"Vocês agora vão descansar", recomendou a voz da experiência. Eu, apesar de ter questionado o sentido de se descansar quando não se está cansado, acatei a "ordem" e fui. Bem vistas as coisas, o Eça de Queirós acabara de sair da doca de Matosinhos e havia ainda "duas horas, duas horas e meia" de liberdade pela frente. Depois disso pedir-me-iam para arregaçar as mangas, e eu não fazia a mínima ideia da intensidade do trabalho que me esperava.

O Hernâni, repórter fotográfico, não queria perder pitada. "A mim interessa-me apanhar as várias fases da viagem", respondeu ao armador. Este, nada paternalista, acedeu. Ficaram então os dois à conversa, na casa do leme. A noite estava óptima, e eu, quando desci aos "aposentos" para me enfiar num caixão em cujos extremos os meus expremos tocavam, pensei que eles iriam ter ali um bocadinho agradável. Eis senão quando, depois de haver concluído que não conseguiria dormir ali nem um minuto (com a excitação, o aperto do leito e o balanço das ondas), percebi, pelo ar nauseado do Hernâni, mal voltei "à tona", que fizera bem em ser obediente.

José Luís Silva ria-se. O ritual iniciático estava cumprido. A partir dali, aquela raposa do mar, presidente da Associação de Armadores de Pesca do Norte, não era apenas o mestre dos pescadores da embarcação. Era também o nosso. Os seus conselhos eram ordens.

Foi então que o suplício começou. "Vocês vão trabalhar?", perguntou Nélson, rapaz novo, pai de um casal de crianças. "Sim", retorqui, expondo o processo e o objectivo da reportagem. "Esta vida não interessa a ninguém", postulou ele, num misto de espanto e desdém. Enquanto isso, vestíamos as fardas de trabalho: os sete pescadores, alguns dos quais acabavam de sair das tocas, puseram oleados (calças e casaco), luvas, chapéus e galochas; eu enfiei-me numa jardineira de pesca desportiva com botas incorporadas. Quem dá (apenas) o que tem... pode ver-se obrigado a aceitar a ajuda dos outros: luvas, mangas impermeáveis e umas palmadas nas costas.

De súbito, placas, cordas, roldanas, tudo em andamento. "O que é que eu posso fazer?", perguntei. "Arrumares-te para aí", foi a resposta. A operação pesca de polvo estava no warm up, forma de dizer preparação do equipamento: monta mesa, tira bóia, aperta nós, levanta isto, baixa aquilo... Um corre-corre que eu, embaraçado como um qualquer daqueles muitos fios, só acompanhava com os olhos.

O polvo, mesmo unido, lá foi vencido

Até hoje, a palavra pote desenhou sempre na minha cabeça a imagem do recipiente onde, em pequeno, fazia as necessidades fisiológicas mais repugnantes. Agora, se me falarem num pote, a primeira coisa que me assoma ao pensamento é um polvo desesperado. Um representando muitos. Só eu, naquela noite, devo ter matado mais de uma centena. Posso estar a exagerar, pelo que me custou, mas pareceu. Vinham nos ditos potes, amarrados a um cabo imenso puxado com uma roldana para o porão do barco.

"E agora?", inquiri-me, não querendo atrapalhar a tripulação. "Pegas na lixívia e mandas um bocado lá para dentro. Assim, vês? Olha o gajo a sair. Agora espetas--lhe a faca no meio dos olhos e quando aparecer esta coisa branca ele já está morto. Atiras para ali", ensinou sumária e eficazmente o Nélson. As fotografias ao canto superior direito da página ao lado documentam as minhas primeiras tentativas e, julgo, o meu parco talento.

Foi aí que me senti mais perto do vómito. Chamem--lhe hipersensibilidade burguesa, reacção de menino, o que quiserem. Eu procurava equilibrar-me física e emocionalmente face, por um lado, à agitação do barco e, por outro, à luta estóica dos moluscos contra a morte, forma eufemística de dizer contra mim. Eu, transformado num serial killer, tentando contrabalançar cada facada com a imagem de uma garfada. Matar para dar a viver, que inevitável contra-senso.

"Anda, vamos fazer outra coisa." Era a voz do Rui, mostrando-me a que sabe o som de um gong antes do soco fatal. Fomos enfileirar potes vazios para voltarem ao mar. Tirando o "pormenor" da vida, o porão é uma linha de montagem. "Enjoado?", perguntou. Olhei bem para ele: corpo enorme, olhar manso, uma atitude afável inspirando competência. "Não, não, fiquei só um bocado impressionado por matar tanto polvo."

Que pescador gosta da vida no mar?

Aos 28 anos, o Rui é um homem que não teme a dureza do trabalho. Antes da pesca, passou pela construção civil, como cofrador e a acartar ferro. "Quando um gajo é novo, não quer estudar. Depois, lixa-se", resume. A conversa foi seguindo ao ritmo dos potes. Soube que ele era pai de um bebé de sete meses, que adorava ter outro, que o pior dia da semana para ele e para os outros pescadores era o domingo ("depois de um fim-de-semana com a família, o jantar antes de voltar ao barco nem nos sabe"), que dantes os armadores tratavam os "camaradas" do pior mas agora já mudaram o registo ("como falta mão-de-obra eles são obrigados a respeitar as pessoas; e eu tenho sorte, porque o nosso mestre é cinco estrelas"), que a pesca aceita tudo ("drogados, criminosos, gente boa") e que, ao contrário do que por aí se veicula, os pescadores não gostam da vida no mar ("pergunta a qualquer um destes, vais ver o que ele te diz"). Pudera...

Ouve-se um grito de zanga e o Rui traduz: "É a hora a passar. O pessoal começa a ficar cansado". Nada como o entoar de um fado para acalmar as águas. Está a acabar mais uma rodada de polvo e chega a informação de que talvez o mestre permita uma pausa. Confirma-se, vamos poder encostar-nos, literalmente, às boxes. 40 minutos contados.

Estourado mas sem sono, conjecturo sobre o que ainda virá. Penso numa rede cheia, despejada sobre o porão, todo o tipo de peixe a rabear e nós a separá-lo. Parece-me mais interessante. Qual quê... Assim que a buzina soa e eu me levanto, percebo pelo preparar da mecânica que o esquema não é tão simples. A primeira rede vem e eu furto-me a partilhar a minha imaginação. Sou mesmo ignorante. O peixe chega aos poucos, enredado na teia densa e que vai saindo do mar como uma língua infinita. A nossa tarefa é, ironia das ironias, "safá-lo", termo utilizado para dizer desprendê-lo da rede.

As várias maneiras de "safar" o peixe

O Russo (parece nome de peixe mas é de pescador) vê-me em apuros com os primeiros "convidados". Explica-me que cada um é safado à sua maneira. Vem uma cavala e eu aplico os novos conhecimentos: dobro-lhe o rabo, que se desenvencilha, e puxo-a cá para fora, orgulhoso. Aparece um linguado e abordo-o confiante, sem fazer ideia de que ele escorrega mais que um sabonete. O João, pai do Nélson, velha guarda do mar, com histórias mirabolantes de vida que incluem vinte minutos debaixo de fogo da Frente Polisário nas águas de Marrocos, ri-se. Claro. "Se queres safar um linguado, tens de o apertar aqui [debaixo das guelras], que ele já não mexe. Depois tiras os fios com cuidado." Eu querer, queria, só que um linguado é um magnífico exemplo da distinção entre a teoria e a prática.

"A faneca é pela cabeça", "esse, dá cá, que ainda te espetas", "havia era de vir uma tremedeira para apanhares um choque", "bota isso fora, não vês que está podre?" - a pouco e pouco, resignado a ser motivo de riso, fui-me sentindo mais pescador. O facto de ver que a minha presença aligeirava o dia dos camaradas também ajudou. Caí no erro de o confessar. "Ai é? Então queres voltar no domingo?", troçou o "Batata", fartinho de saber a resposta: "Nem pensar!"

Ao todo, demos conta de 50 redes, em cinco séries de dez. No final de cada uma, recordávamos uns para os outros: "Só faltam x." A resistência, no meu caso, tornava-se já uma questão de orgulho e, com o aproximar do fim da "escravatura", as forças caíam a pique. Um ou outro incentivo, do tipo "tu davas para marinheiro, és rijo!", ia atrasando o estouro. Quando o Rui sentenciou a trégua, eu nem festejar conseguia. Em típica conversa de balneário masculino, "picaram-me" eles: "Anda lá que tens uma gaja boa à tua espera na doca." Claro que o assunto mulheres não poderia deixar de aparecer. Mulheres de fantasia, como sereias, até porque as caxineiras "são tesas".

Há conclusões que também vêm à rede

Nisto tudo, o Hernâni esteve presente. Por vezes, confesso, até me constrangia a convivência com a objectiva, como se eu fosse uma estrela no meio de gente infinitamente mais capaz em inúmeros aspectos da vida. Gente humilde, franca, de fibra. Gente grande forçada a viver pequeno. Gente que nunca se vingou do novato na oportunidade que teve, como acontece tantas vezes em sectores de actividade mais bem cotados.

Foi, pois, uma experiência para reter na memória. Valeria a pena alguns dos nossos governantes porem-se, um dia, na pele de produtores das áreas que tutelam. Claro que aqui, como em quase todos os domínios, se aplica a máxima "nem tanto ao mar nem tanto à terra", ou seja, o equilíbrio estará algures entre o que quem anda com redes nas ondas e o que quem lida com papéis nos gabinetes defende. Mas o que também se aplica é a velha lei: quem se lixa é o mexilhão. Neste caso, o pescador.

DN, 29-6-2008
 
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