04 maio, 2008

 

3 de Maio


de 1808



http://alephaleph.blogspot.com/Tolo/Goya_Shootings-3-5-1808T.jpg


http://static.publico.clix.pt/docs/taschen/files/goya/quadroDaSemana.htm

http://www.infopedia.pt/$o-3-de-maio-de-1808


http://pt.wikipedia.org/wiki/Goya

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ELE VIU E TODOS NÓS VEMOS TAMBÉM

PEDRO CORREIA

Francisco Goya. Mudou a história da pintura com uma tela que começou a ser concebida faz hoje 200 anos: 'O 3 de Maio de 1808 em Madrid'. A arte cruzava-se com a actualidade, tornando-se um poderoso instrumento de crítica política e social
Faz hoje duzentos anos, uma colina madrilena enchia-se do sangue de espanhóis que ousaram erguer-se contra o terror napoleónico. A resposta da tropa ocupante contra os protestos de rua foi brutal: duas centenas de insurgentes foram fuzilados nessa noite.

Na véspera, haviam partido os últimos membros da família real, expulsos pelo exército invasor: Napoleão enviara cem mil soldados para ocupar Espanha, pondo no trono o seu irmão José Bonaparte. O imperador francês aproveitara as divergências ocorridas na corte madrilena que haviam conduzido à abdicação de Carlos IV, a 23 de Março, e à subida ao trono do seu primogénito, Fernando VII, uma figura muito contestada (alguns historiadores consideram-no mesmo o pior soberano espanhol de todos os tempos). Repetia-se assim o ocorrido meses antes em Portugal. Com uma diferença digna de registo: a família real espanhola, ao contrário da portuguesa, não teve tempo de transferir o trono para as colónias americanas, que chegaram a ser encaradas como lugar de exílio.

Tal como tinham feito em território português, os franceses destacaram-se desde o início pelas atrocidades que iam espalhando à medida que avançavam no terreno. O orgulho espanhol ressentiu-se de imediato: estalou a revolta em Madrid, logo estrangulada à força de baionetas. Muitos dos envolvidos nesse levantamento foram executados, à laia de exemplo, para evitar novas insurreições. Em vão: nunca os espanhóis deixaram de se rebelar contra os franceses, que acabaram derrotados em 1813.

Um pintor sexagenário, que vivia atormentado pela surdez mas mantinha o olhar arguto da juventude, testemunhou os acontecimentos da noite de 3 de Maio. Com o instinto inato dos grandes artistas, teve a percepção imediata de que as gerações posteriores deveriam poder testemunhar igualmente a repressão ali abatida sobre o seu povo. Fez um esboço rápido da macabra cena das execuções e guardou-o. Seis anos depois, em 1814, o esboço transformou-se em quadro - um dos mais impressionantes quadros de que há memória. O 3 de Maio de 1808 em Madrid: os fuzilamentos no Monte do Príncipe Pio.

Com esta tela hoje exposta no Museu do Prado, Francisco Goya y Lucientes (1746-1828) virava uma página decisiva na história da pintura, inaugurando uma etapa em que a arte se tornava grito de protesto, pondo os vencidos no lugar habitualmente reservado aos vencedores. Gerava-se um "fenómeno de socialização dos sentimentos", acomo acentua o crítico de arte Manuel Tuñón de Lara. Antes dele, pontificavam as figuras mitológicas recuperadas do imaginário greco-romano ou os santos eleitos através dos séculos pela devoção católica. Depois dele, a grande personagem da pintura tornou-se o Homem. Assim mesmo, com agá maiúsculo.

É precisamente um homem que surge no centro deste quadro. De braços abertos, palmas das mãos expostas, peito entregue às balas que daí a instantes vão trespassá-lo. Não desvia o olhar: encara num último desafio o renque de fuzis que tem à sua frente. Há um feixe de luz a inundá-lo: é o único foco de claridade numa tela onde predominam os tons escuros, acentuando a dicotomia entre o peso da opressão e o impulso dos combatentes pela liberdade. Quem morre, recebe a bênção da luz; quem mata, permanece envolto num manto de trevas.

A luz e as trevas

Olhemos o quadro com um pouco mais de atenção: desconhecemos o nome da figura central. Mas a iconografia aqui representada é-nos familiar. Os braços abertos em forma de cruz e as chagas nas mãos funcionam como metáfora de Cristo mártir. Repare-se na fileira de soldados: nenhum deles tem rosto. Cumprem ordens superiores, de dedo no gatilho, tornando-se implacáveis máquinas de trucidar. Para reforçar a dicotomia, o homem que vai ser morto em primeiro lugar veste uma camisa branca.

No plano geométrico, outro contraste. Entre a verticalidade dos madrilenos e a horizontalidade das armas dos soldados que obedecem aos despóticos irmãos Bonaparte.

O homem no centro de todos os olhares, o quadro como expressão do seu tempo, o artista como assumido intérprete da consciência colectiva: este 3 de Maio de 1808 é uma das maiores peças de propaganda de que há memória. Contra o militarismo, contra a violência gratuita, contra o horror da guerra com o seu cortejo de mortos. Goya quer que nos tornemos testemunhas dos actos macabros que presenciou e transpôs para o seu esboço, hoje depositado no Museu da Sociedade Hispânica de Nova Iorque. Como sublinhou Pablo Serrano, com ele "a arte converte-se em grito de protesto, numa atitude ética e moral de inegável valor humano".

Poucos quadros terão sido tão inspiradores. Do francês Monet ao compatriota Picasso, diversos mestres da pintura prestaram tributo a Goya com telas claramente inspiradas nesta obra seminal (a própria Guernica segue uma linhagem inaugurada aqui). E até pintores contemporâneos, como o chinês Yue Minjun, continuam a fazer variações a este quadro feito por aquele a quem a Irmã Wendy Beckett - célebre pelo seu programa televisivo em que divulgou a arte de todos os tempos junto do grande público - chamou "o mais verdadeiro dos artistas".

Goya, de facto o mais verdadeiro de todos os artistas, era capaz de pintar um rei com a face banal de um homem comum. Outro dos seus grandes quadros, A Corte de Carlos IV, é disso um excelente exemplo. Com ele o pintor deixou de ser um ilustrador servil do perfil dos poderosos, deslumbrado com os lustres palacianos. Torna-se um crítico social, torna-se um homem do seu tempo.

Nesse quadro de 1799 detectava-se outra inovação: todos os membros da família real espanhola, com as suas feições rudes, parecem ter uma expressão submissa em relação a quem os pinta. E quem ocupa aqui a posição central é a rainha Maria Luísa, não o monarca - indivíduo inseguro e timorato, ao que rezam as crónicas.

O olhar implacável de Goya era assim: não se limitava a retratar a realidade - antecipava tendências. No fundo, A Corte de Carlos IV é já uma despedida da monarquia absolutista: vinha aí a Europa liberal.

"Eu vi" era o lema de Francisco Goya. Através dos olhos dele, todos passámos a poder ver também. Quem quer que contemple O 3 de Maio de 1808 em Madrid, sob os mais diversos ângulos, não pode deixar de sentir a mesma repulsa pela brutalidade cega aqui tão cruamente desenhada. Como permanente grito de revolta contra todos os actos de barbárie. Em qualquer tempo, em qualquer lugar.

DN, 3-5-2008
 
Prado mostra arte de Goya em tempos de guerra

EURICO DE BARROS, em Madrid

Chama-se 'Goya en Tiempos de Guerra', está no Museu do Prado, em Madrid, até ao dia 13 de Julho, é formada por 200 obras, várias delas inéditas em Espanha, e documenta 25 anos da existência e de criação de Francisco Goya, num dos períodos mais turbulentos da história do país vizinho

O artista e a Espanha entre 1795 e 1820

São 200 obras de Francisco Goya (1746-1828), expostas pelo Museu do Prado para coincidir com as comemorações dos 200 anos do início da guerra da Independência de Espanha, contra o domínio napoleónico, 90 delas pinturas pertencentes a outras instituições ou a colecções particulares, bastantes inéditas em Espanha e quatro que não eram aqui vistas desde a década de 70. "Goya en Tiempos de Guerra" é, assim, a maior exposição dedicada ao pintor aragonês desde a que o próprio Prado organizou em 1996.

Dividida em quatro blocos, e incluindo pinturas, desenhos, litografias e águas-fortes, "Goya en Tiempos de Guerra" cobre 25 anos da vida do artista, desde 1795, altura em que recuperava de uma doença que o deixou surdo, até 1820, pouco tempo antes da sua morte.

Estas duas décadas e meia abrangem uma das épocas mais turbulentas da história de Espanha, durante a qual se deram grandes alterações políticas e sociais, em especial durante os anos da guerra contra o ocupante francês (1808-1814), e nos seis que se lhe seguiram, com Fernando VII de novo no trono e um país devastado, sangrado e enfraquecido por seis anos de conflito, e exposto a uma vaga absolutista.

Apesar do título, Miguel Zuzaga, director do Museu do Prado, faz questão de frisar que esta exposição não é tanto um "diário de guerra" da arte de Goya, antes "o diário de um artista formado à luz da razão e do progresso, que assiste ao desfilar do irracional" numa Espanha em convulsão, e que disso dá notícia nos seus trabalhos, "reflectindo a sua extraordinária qualidade e a sua visão crítica do mundo".

Este é o Goya lancinante, pessimista, experimental ou satírico dos Desastres de Guerra, de Tauromaquia, dos Disparates ou dos Caprichos, e o pintor dos acontecimentos de 2 e 3 de Maio de 1808 em Madrid; mas também o Goya patrocinado pela Igreja, o retratista da aristocracia, da família e dos amigos mais íntimos, todos captados com admirável realismo psicológico, o autor de naturezas mortas e das mais variadas cenas dramáticas, desde tenebrosos convénios de bruxas a episódios da vida de santos e cenas pias.

As duas "estrelas" desta exposição, da qual servem, de alguma forma, como pivôs, são as telas "El 2 de Mayo de 1808 en Madrid: la lucha con los mamelucos", e "El 3 de Mayo de 1808 en Madrid: los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío", mostrando, respectivamente, a revolta sangrenta do povo de Madrid contra as forças de Napoleão, e a violenta represália destas contra os patriotas.

Datados de 1814 e recentemente restaurados, os quadros estão lado a lado, tal como Goya desejou que fossem mostrados quando os pintou.

DN, 23-6-2008
 
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