23 maio, 2008

 

Cocaína


Branca







http://pt.wikipedia.org/wiki/Coca%C3%ADna

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"O que é ficar agarrado? Já se apaixonou? É isso"

LÍLIA BERNARDES, Funchal

Os bairros da Palmeira, em Câmara de Lobos, e da Nogueira, na Camacha, já não são os únicos pontos de referência. A droga estendeu-se ao Estreito de Câmara de Lobos. Mas não é preciso ir tão longe. Há vários roteiros. Escolhemos um. O centro do Funchal, a zona antiga da cidade, o Beco do Cano, junto ao restaurante Brisa, na Calçada do Pico, na Corujeira (Monte), nas arcadas do Centro Comercial Infante, em Santo Amaro, junto a uma creche. Foi nesta freguesia que passámos uma manhã. Antes de a carrinha da metadona e da troca de seringas parar ao largo. Ali existe um centro de apoio dirigido aos utentes de baixo limiar.

Neste bairro social de excelente imagem, há harmonia de cores e de metros quadrados de verde. Não há grafitti. Não há lixo. Tudo clean. Menos eles, sentados na escadaria. A mãe de um deixa o aviso: "Não digas a ela quem vende." "Cale-se", responde-lhe o filho. " Não me arranjes sarilhos. Aqui não há fotografias. A senhora não faz nada aqui", responde a matriarca sem dentes.

Ricardo tem 25 anos. Mas começou cedo. Dorme na rua. Onde calha. Foi casado. Tem uma filha de cinco anos. E foi posto a andar pela mulher.

"Quem é que atura um gajo como eu? O pior aconteceu em 2000, quando a heroína invadiu o Funchal." E o que é estar "agarrado"?, pergunta-se.

"Nunca se apaixonou? Nunca gostou de ninguém? É isso…" diz, enquanto fala do "pavor" da sua ausência.

O Ricardo quer "sair desta". Inscreveu-se no Centro de Santo Amaro no dia 4, mas só conseguiu consulta para o dia 14. Não sabe porquê. Tira o papel do bolso e mostra o comprovativo. Com horas marcadas para a psicóloga, etc., etc. Mas, afinal, a iniciativa partiu dele e mandam-no esperar duas semanas.

A carrinha aproxima-se. A única que faz a rota e que distribui metadona e seringas pelos pontos críticos. Há um esgueirar de corpos de costas voltadas. Três horas depois, em plena baixa, um grupo de jovens "ganzados" sai das arcadas do Centro Comercial Infante. Dirigem-se ao outro lado da rua. Entram numa casa de prova de vinhos Madeira. O melhor é dar-lhes um copo de sercial ou verdelho "antes que façam estragos. Não sei onde é que isto vai bater…". Desta vez aceitaram uma nega com a promessa de voltarem mais tarde. Hão-de aparecer.

No extremo da Rua Fernão de Ornelas, a cena repete-se. Mais dolorosa. Os olhos de criança pesam-lhe a olhos vistos. Um sono ou sonho imensos, um entorpecimento estranho que condiciona o corpo frágil. Estende a mão sobre o balcão de uma pastelaria do centro comercial. Conhece a dose. Um bolo de arroz e um sumo. São as empregadas que, há meses, decidiram oferecer-lhe provavelmente a única refeição do dia. Decidiram que sim. "De início, julgávamos que estava a dormir em pé. Mas é a droga. Heroína", dizem. E a família? Heroinodependentes. São estas mulheres que se espantam com aquele miúdo adormecido e projectam os seus medos. Têm filhos. E a imagem arrepia. Paulo, Luís, João, qualquer nome lhe serve. Diz que vai para casa. "Não vai nada. Em casa leva porrada", explica uma das protectoras. Ele nada nos diz.

A aproximação não é fácil. Está "noutra". Não ouve, não tem paciência para ouvir. Não quer perguntas nem respostas. Nem sinais de carinho. Os poros do seu corpo jorram água. Diz que já foi ao Centro de Santiago de apoio à toxicodependência. E despacha. Foge. Mora no Bairro da Palmeira, vulgo Malvinas. Passara a manhã na marina, bem no centro do Funchal, a pedir dinheiro a quem passa. Aos turistas. Ali são todos turistas. Em troca, tenta vender-lhes fotocópias de uma Senhora de Fátima com uma lengalenga de rezas e promessas de milagres. Em português. Não serve para nada. Antes estender um copo pequeno de plástico oferecido por alguém que o guardou depois de engolir a metadona e ouvir o som da moeda cair no fundo. Ao contrário dos antigos "meninos das caixinhas", estes podem andar em grupo ou não.

O pão já não interessa. A heroína, a gulosa, tomou-lhes conta das veias. Os putos fazem a recolha do dinheiro, entregam a alguém que, em troca, fornece a dose mínima. Uma dose de heroína, 1/8 de grama, oscila entre 20 e 25 euros. A fome mata-se com um euro. A ressaca precisa de muito mais.

No final da tarde, um outro dia, um bando mais adolescente senta-se no chão do pequeno cais da marina. São agressivos. Mas se soltarmos alguns nomes, denunciam-se. Um casal por perto controla os movimentos. Há uma triangulação estranha.

DN, 9-3-2008
 
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