22 maio, 2008

 

Leni Riefenstahl


Criadora em tempos diversos




http://pt.wikipedia.org/wiki/Leni_Riefenstahl
http://en.wikipedia.org/wiki/Leni_Riefenstahl

http://www.ipv.pt/forumedia/4/8.htm
http://dossiers.publico.clix.pt/dossier.aspx?idCanal=969

http://www.leni-riefenstahl.de/eng/index.html

http://www.riefenstahl.org/

Comments:
Leni Riefensthal: um pacto com o diabo

NUNO CRESPO

É a personagem mais difícil de toda a história do cinema. Adulada, desprezada e motivo de combates intensos e apaixonados. Celebrada por uns, demonizada por outros. Só agora o estudo sobre a sua obra começa a assumir contornos mais científicos e menos políticos. Morreu a 8 Setembro de 2003, com 101 anos. Qualquer que seja a posição que se assuma, são inegáveis as qualidades cinematográficas e o encantamento que produzem as imagens por ela feitas.

Foi a realizadora de Hitler. Do primeiro encontro que manteve com ele, em Maio de 1932, conta que ele lhe disse: "Assim que chegar ao poder, tem de fazer os meus filmes." Encantado e enfeitiçado que estava com a dança de Leni à beira-mar no filme A Luz Azul (1932). Nesta experiência "tive uma visão apocalíptica que nunca conseguirei esquecer", escreve a realizadora nas suas memórias, ao que acrescenta que a leitura da obra de Hitler Mein Kampft "teve um forte impacto" nela. "Confirmei o meu nacional-socialismo depois de ler a primeira página. Senti que um homem que podia escrever um livro daqueles tinha necessariamente de liderar a Alemanha. E fiquei muito feliz que esse homem tivesse chegado."

Ainda que, nas suas Memórias (1987), tenha assumido a adesão ao III Reich, até ao final da vida reclamou inocência e o total desconhecimento sobre os horrores que os seus protectores e financiadores estavam a fazer nos campos de morte. A sua biografia é cheia de histórias mal contadas, paradoxos e muitas mentiras, mas é a única mulher realizadora a fazer parte da lista dos cem melhores filmes de sempre da revista Time.

Helene Bertha Amalie "Leni" Riefenstahl nasceu em Berlim, em Agosto de 1902, no seio de uma família de classe operária. Apesar da persistente resistência do pai, conseguiu, com o apoio da mãe, começar a sua carreira como bailarina herdeira da nova dança de Isadora Duncan. No início dos anos 20 encontrou em Harry Soka, um banqueiro judeu, um protector, amante e mecenas. Para além das peles, jóias e dinheiro que lhe dava, financiou dois espectáculos de dança e, mais tarde, participou nas suas primeiras incursões no cinema.

Mas foi o encontro com Arnold Fanck que mudou a sua vida. Ao convidá-la, em 1924, para o filme A Montanha da Fé, Fanck transformou-se no seu mentor e escreveu e editou muitos dos seus filmes posteriores. Factos que Leni quase sempre desmentiu. Chegou a apagar os nomes dos seus colaboradores judeus da ficha técnica dos filmes.

A atmosfera e o envolvimento destes seus primeiros filmes de montanha, em que os personagens vivem relações de fusão com a natureza, com a beleza e com os ideais heróicos e puros, é depois transposta para as filmagens dos comícios de Nuremberga. Para o influente crítico e teórico de cinema Siegfried Kracauer, já aqui existia "uma espécie de idealismo heróico" que era "parente próximo do espírito nazi" em luta pelo poder.

Mas foi com os filmes sobre os nazis, primeiro em A Vitória da Fé (1933) e depois em O Triunfo da Vontade (1935), que ficou famosa. Eram encomendas directas de Hitler. Segundo Riefenstahl, valeram-lhe uma zanga definitiva com o ministro da Propaganda, Goebbels.

Existem muitas questões sobre a encenação, os ensaios e sobre a direcção de arte, feita em conjunto com o arquitecto do regime Albert Speer, mas Riefenstahl sempre afirmou tratar-se de filmes documentais sem carga ideológica. O alinhamento dos soldados e as imagens de Hitler filmado como uma estátua grega clássica contra um céu carregado e romântico fazem das suas afirmações meras tentativas de distracção do essencial.

Mas é com Olympia (1938) que a sua carreira atinge proporções internacionais. Ainda que completamente ignorada na América, onde muitos refugiados já se encontravam e onde chegou na manhã seguinte à Kristalnacht, dizendo que todas as notícias eram um exagero dos jornais americanos e um boicote dos intelectuais judeus, este filme é, segundo a própria, uma "manifestação sublime do espírito alemão." Uma nova Alemanha pela qual Riefenstahl estava seduzida e que prova, como afirma Walter Benjamin, que "o fascismo é a estetização da política".

Oficialmente encomendado pelo Comité Olímpico Internacional, o filme foi estreado em Berlim por ocasião do 49.º aniversário de Hitler, em Abril de 1938. Com ele estava a totalidade do panteão nazi: Goebbels, Göring, Ribbentrop e Himmler, entre outros. Relativamente a este filme, como a quase tudo na sua vida, Leni contou mentiras: sempre negou que o financiamento vinha do Reich, dizendo que o verdadeiro objectivo era construir uma imagem da Alemanha como uma nação pacífica, de desporto e benigna.

O filme, do princípio ao fim, é uma glorificação da perfeição física: ideal de princípios racistas nazis em que aqueles que são imperfeitos são doentes e devem ser tratados como seres humanos inferiores e excluídos. Uma espécie de tese darwinista em que os mais fortes não só devem prevalecer como devem ser celebrados e adorados pela sua força e perfeição físicas. É este heroísmo que Riefenstahl encontra na origem grega dos jogos olímpicos e faz a mais original e surpreendente cobertura de um evento desportivo de sempre. Este "fascismo fascinante", como o cunha Susan Sontag, foi um momento de invenção cujos ecos ainda hoje se sentem. Independentemente da qualidade cinematográfica, das inesquecíveis sequências de mergulho e dos planos do esforço e tensão nos rostos dos atletas, trata-se de uma peça de legitimação da "nova" Alemanha.

Como afirma Steven Bach, autor de uma das melhores biografias de Riefenstahl, "depois de manipular a imagem dos outros sobre si, Leni insistiu que a realidade confirmasse a sua versão… a transformação do vulgar em heróico, a seu tempo, haveria de se tornar a sua imagem de marca e o seu talento supremo". Para o regime Leni fazia parte da muito bem oleada máquina de propaganda, a qual tinha um papel central, porque, como dizia Hitler, "pelo uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu com inferno ou vice-versa".

A haver mérito neste jogo manipulador protagonizado pela preferida de Hitler, ele é sintetizado por Bach: "Com arte e jeito, ela casara o poder com a poesia de um modo tão convincente que rejeita qualquer comparação artística com tudo o que de remotamente similar tenha sido feito antes. A sua manipulação dos efeitos formais foi virtuosa, as suas inovações na técnica de filmagem e montagem estabeleceram novos padrões e mantêm-se exemplares na cinematografia." E foi este casamento amaldiçoado que a perseguiu para sempre.

Depois da derrota da Alemanha, do seu processo de desnazificação no qual foi ilibada, e da sua prisão, Riefenstahl ainda tentou fazer filmes, mas só nos 70 regressou com a edição de dois livros sobre os Nuba, com quem nos anos 60 passou seis meses e obsessivamente os fotografou. Novamente, foi a perfeição, a força, a juventude, o heroísmo que atraíram a sua objectiva. E o resultado são fotografias de um beleza intensa, sedutoras, fascinantes, como diz Sontag: "Os mais espantosos livros de fotografias publicados recentemente." Estava-se já em 1975, mas ainda é a estética fascista que domina.

Até ao fim da sua vida trabalhou quase exclusivamente como fotógrafa: fez a cobertura dos Jogos Olímpicos de Munique (1972) para a revista Time, um retrato muito famoso de Mick e Bianca Jagger... Passou a fazer filmes subaquáticos que não têm qualquer interesse artístico. Nas palavras de um muito famoso crítico, podem apenas ser "belos papéis de parede."

A questão ainda por resolver, de que Sontag no seu ensaio Fascismo Fascinante faz um primeiro esboço, é se podemos admirar a obra de Riefenstahl e, sendo assim, de que modo podemos olhar para ela. Perguntas estas que dependem da decisão de os artistas serem ou não seres morais. Para Riefenstahl a resposta foi, claramente, negativa.

DN, 8-3-2008
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?