22 maio, 2008

 

Rede Judiciária Europeia


em matéria civil e comercial


http://ec.europa.eu/civiljustice/index_pt.htm

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A mulher aranha

JORGE FIEL

Fátima Adélia Martins. Conheça a portuguesa que lidera a partir do seu quartel-general, em Haia, a Rede Judicial Europeia, uma organização composta por 400 magistrados dos 27 países da União Europeia, criada há dez anos para levar a um combate sem tréguas ao crime organizado
Tornou-se magistrada por um daqueles acasos em que a vida é fértil.

Com o curso de Direito tirado de fresco, Fátima gozava em Lisboa uns dias de descompressão pós-exames, antes de ir de férias para a casa do pai, em Bragança, quando um encontro acidental lhe formatou o resto da vida. Estava no Rato quando tropeçou num antigo professor do liceu em Bragança.

Ela reconheceu logo Lopes da Mota, mas não iniciou qualquer movimento para o cumprimentar por temer que ele já não se recordasse dela. Ao fim e ao cabo, são milhares as caras que desfilam pela frente de um professor e Fátima era uma miúda de 15 anos quando fora sua aluna.

Lopes da Mota não só se lembrava dela, como ainda por cima fez uma festa enorme por a reencontrar. Fátima tinha sido uma das mais brilhantes alunas que lhe passara pelas mãos durante a carreira docente deste minhoto, também ele licenciado em Direito, que naquele ano de 1988 era assessor na Procuradoria-Geral da República, que fica ali mesmo ao lado na Rua da Escola Politécnica.

Lopes da Mota ficou satisfeitíssimo por saber que a antiga aluna tinha desistido da ideia de fazer Filosofia e acabara de concluir Direito.

O que ela planeava fazer no futuro? Para já nada. Ia passar o Verão com a família, em Trás-os-Montes, e depois se veria. O mais provável é que em Setembro voltasse a Lisboa, para onde já se tinham transferido os irmãos, e se pusesse em campo para arranjar um escritório que lhe proporcionasse o estágio de advocacia.

Se queria ir visitar a Procuradoria? Claro que sim. Adorava! Então ele iria fazer-lhe uma visita guiada.

Lopes da Mota não se limitou a mostrar-lhe a casa. Também a apresentou ao procurador, não poupando nos adjectivos quando se tratou de explicar a Cunha Rodrigues quem era aquela mulher com ar vivíssimo e sorriso travesso estampados numa cara de adolescente. "Foi a melhor aluna que eu tive", garantiu.

Os elogios de Lopes da Mota impressionaram Cunha Rodrigues, que transformou a conversa de circunstância numa inesperada entrevista de recrutamento.

O procurador disse-lhe que o Ministério Público estava muito necessitado de pessoas como ela e desafiou-a a fazer uma experiência.

À época havia lugares provisórios de representantes do Ministério Público (MP) por preencher.

Se ela estivesse interessada podia, sem tomar qualquer compromisso irremediável quanto ao futuro, ir experimentar como era ser magistrada. Depois escolheria que rumo dar à carreira - se ficava no MP, queria ser juíza ou preferia antes fazer o estágio e tornar-se advogada.

A proposta era sedutora. Fátima disse que sim. "Entrei lá para ver como era por dentro o edifício da procuradora e saí de lá com um emprego", sintetiza. Foi destacada para o Redondo, no Alentejo, onde foi colocada no final do ano.

A remodelação do guarda-roupa foi a primeira das suas preocupações nos preparativos para a nova vida. Tratou de comprar "roupa de velha" com ar severo e chumaços, que lhe camuflassem o aspecto irrequieto de miúda do secundário.

Como ia ser a "senhora doutora delegada" tinha de se apetrechar de um visual susceptível de impor respeito aos GNR com que iria lidar.

O irmão Abílio ofereceu-se para a levar ao Redondo. Meteram-se no Nissan Sunny dele e rumaram a sul. Na viagem, os dois jovens que tinham crescido no agreste e acidentado Trás-os-Montes - com as montanhas vencidas por estradas que serpenteiam nos montes numa infinita sucessão de curvas e contracurvas - estranharam a paisagem.

"Eram rectas enormes numa imensa planície. De vez em quando subíamos uma lomba, mas logo depois voltava aquela planura. O Abílio só me dizia: Ó Fátima, isto aqui não tem montes!", recorda.

Não foi suave a aterragem no lugar de representante no Redondo do Ministério Público. Logo na primeira noite, ainda não tinha desfeito as malas na casa de magistrado, quando lhe bateram à porta.

Era o comandante da GNR: "A senhora doutora delegada tem de me acompanhar. Há um morto numa casa junto a umas vinhas."

Era noite e chovia a cântaros. Fátima meteu-se no jipe da GNR que a levou até ao seu primeiro morto. A última parte do caminho teve de a vencer a pé, enterrando-se na lama até ao tornozelo.

"Eu não podia dar parte de fraca. Mas é uma terrível sensação. Quando se abre a porta não sabemos o que nos vai aparecer pela frente", recorda.

Além dos GNR, Fátima estava acompanhada pelo delegado de Saúde. E não ficou nada satisfeita com a excessiva gentileza dele, que fez questão de que fosse ela a entrar primeiro na casa do morto. "Faça o obséquio, senhora doutora. As senhoras, primeiro!"

Lá dentro estava o cadáver. Sozinho. Um homem nu, na banheira.

Seguiu-se o procedimento do costume. Após o levantamento do corpo, tratava-se de o autopsiar, operação que era feita no cemitério local, para onde a comitiva rumou, a meio da noite chuvosa.

Chegados ao cemitério, o primeiro problema foi a falta de frascos para acomodar as vísceras que tinham de ser recolhidas e enviadas para análise no Instituto de Medicina Legal, em Lisboa. Tiveram de improvisar, recorrendo a uns garrafões de azeite.

O pior foi quando faltou a luz. Fátima passou-se. Meteu-se no jipe da GNR e acordou o presidente da câmara com o relato das desgraças. Tinha um cadáver nas mãos, uma autópsia a meio, e não havia luz!

Tudo acabou por se resolver. Mais tarde, apurou-se que não tinha sido nem homicídio, nem suicídio. Apenas um infeliz acidente. No final de um dia de árduo trabalho na vinha, o homem tomou um banho quente e acabou por morrer vítima desta preocupação higiénica, através de uma fuga de gás.

Não ficou desmoralizada com esta agitada primeira noite e o brutal contacto com as esquinas da profissão de delegada do Ministério Público.

No final dos quatro meses que durou a sua missão no Redondo, Fátima não tinha dúvidas. A experiência agradara-lhe. Voltou para Lisboa e preparou-se para o exame do CEJ. Não queria ser juíza, mas sim delegada do Ministério Público.

Depois do Redondo, Murça, Alijó, Porto, Lisboa e Macau foram as mais importantes escalas do longo caminho que levaria Fátima Adélia Martins até ao quartel-general, em Haia, da Rede Judiciária Europeia, a organização comunitária criada para combater o crime organizado de que ela é secretária-geral, coordenando a acção de 400 magistrados espalhados pelos 27 países da União Europeia.

DN, 8-3-2008
 
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