19 junho, 2008

 

Intervenção


direito-dever



http://www.defesa.ufjf.br/fts/IGSXXI.pdf

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OS ESTADOS FALIDOS

Adriano Moreira
professor universitário

O direito-dever de intervenção, que mereceu o entusiasmo de Mitterand, foi apoiado na proclamação de grandes princípios de solidariedade para com as populações vítimas de extrema violência ou política ou da natureza, mas os resultados não correspondem aos afirmados objectivos.

O número de Primavera do Asia Europe Journal (2008) avalia a situação em termos que merecem reflexão. Foi em 1988 que a Assembleia Geral da ONU consagrou o dever de "assistência humanitária às vítimas de catástrofes naturais e de situações de urgência da mesma ordem".

Nesse princípio se filiaram, com assentimento do Conselho de Segurança, a intervenção de 1991 a favor dos curdos destroçados pela violência do Governo iraquiano, e também a pouco feliz acção na Somália em 1993, com o nome de Restore Hope. Rapidamente a intervenção foi alargada no sentido de acudir aos Estados falidos (collapsed state), iniciando uma deriva que viria a dispensar a intervenção da ONU, designadamente com a intervenção da NATO no Kosovo em 1999.

A responsabilidade de proteger encontrou doutrinação jurídica de validação para esses casos, desenvolvendo a vertente - coalitions of the whilling - para suprir designadamente a decisão ou incapacidade de um Estado proteger os seus cidadãos contra as catástrofes ou políticas ou naturais.

Que o alargamento do conceito, aliado ao unilateralismo das soberanias mais poderosas, fez tornar frequentemente equívoca a distinção entre intervenção ética e ingerência ilícita, tornou-se evidente, uma evidência que fortaleceu as argumentações contra o unilateralismo americano no Iraque, ou contra os limitados êxitos da intervenção da NATO no Afeganistão.

À medida que as debilidades das intervenções baseadas apenas no poder vão inspirando nos EUA discretas manifestações de políticas de retirada, a secretária de Estado Condoleeza Rice começa a ver recordado o conceito, que em 2006 anunciou na Universidade de Georgetown, de uma nova doutrina chamada diplomacia transformacional. Esta política, não necessariamente apoiada em intervenção militar, procurando até dispensá-la, consistiria em acções multilaterais destinadas ou a construir a democracia ou a mantê-la em casos de risco, para que o bom governo seja uma garantia da boa participação na ordem internacional.

Que a implantação da democracia seja o resultado conseguido pela intervenção militar, é um desejo que os factos não confirmam, por muito que a articulação coerente entre forças armadas e diplomacia tenha sido usada e aperfeiçoada no terreno.

A agenda da liberdade não encontra leitura satisfatória no Iraque, e a busca de afinidades com o processo de reconstrução europeia depois da guerra, ou do alargamento europeu para leste depois do fim da guerra fria, não se traduziu em consolidação e eficácia da doutrina.

Talvez uma das debilidades da doutrina esteja na versão missionária do discurso presidencial americano, na como que sacralização da nação indispensável, referências ideológicas que apoiam a lembrança de doutrinas coloniais, e por vezes inspiram decisões, como a reinvenção do protectorado para o Kosovo, que dificilmente escapam a essa caracterização.

A circunstância de a população iraquiana não ter explodido na esperada gratidão por ter sido libertada de um regime tirânico traduz-se numa indicação de pesados custos no sentido de que, antes de tocar na vida interior do Estado, é conveniente ter informação das convicções patrióticas e identitárias.

Uma coisa é a ingerência legitimada pela comunidade internacional, oposta à indiferença para com as calamidades que atingem os outros povos e Estados: outra bem diferente são as derivas de face missionária e interesse próprio.

Porque estas derivas esquecem que a primeira exigência aos Estados é a do respeito pelo ordenamento internacional: intervir porque a ordem interna não corresponda aos princípios exige respeito pela definição ética e jurídica do direito-dever de intervenção, que não consente nenhuma deriva unilateralista.

DN, 13-5-2008
 
Os ricos generais de um país pobre

PATRÍCIA VIEGAS

Myanmar, a antiga Birmânia, é um dos países mais pobres do mundo e, com a destruição pelo ciclone Nargis, a situação só pode piorar. A riqueza está nas mãos de alguns generais, que gastam quase metade do orçamento no Exército e, desde 1962, governam o país com base numa mentalidade de cerco e de desconfiança em relação a todo e qualquer civil.

O Exército conta com 400 mil homens e a junta militar destina-lhe 5% do PIB e, segundo as Nações Unidas, apenas 0,3% para a saúde. Isto numa altura em que uma em quatro famílias vive no limiar da pobreza, dizem os números do Banco Mundial, sobre o país com 50 milhões de habitantes.

No ano passado, o regime birmanês terá ganho 2,7 mil milhões de dólares em exportações de gás natural. Mas grande parte das divisas estrangeiras são detidas pelas altas patentes. Than Shwe, Maung Aye, Shwe Mann e Maung Aye são alguns dos generais mais influentes da junta.

DN, 13-5-2008
 
DUAS CRISES

António Vitorino
jurista

Na última semana ocorreram duas catástrofes naturais em Myanmar e na China, provocando dezenas de milhares de mortos e de desalojados.

As reacções a estes cataclismos por parte das respectivas autoridades não podiam ser mais contrastantes.

Enquanto na China assistimos a uma assunção clara da dimensão da tragédia e a uma mobilização em massa dos serviços de protecção civil e das próprias forças armadas no apoio às vítimas, na antiga Birmânia prevaleceu uma lógica política de ocultação e de dissimulação dos efeitos do ciclone sobre as populações.

Numa primeira análise, importa sublinhar que está em causa a dignidade das pessoas e o valor supremo da vida humana.

A China e Myanmar são muito diferentes entre si, como países e como tradição histórica e cultural, mas a diferença das reacções não se pode explicar por qualquer razão filosófica.

Pelo contrário, estando em causa os mesmos valores, só razões de ordem política podem explicar tais diferenças.

A escassas semanas dos Jogos Olímpicos, as autoridades chinesas sabem bem que os olhos do mundo estão concentrados em Pequim e que uma catástrofe com estas dimensões sempre teria uma repercussão global.

Por isso, para além da sua obrigação directa de socorrer as vítimas, as autoridades chinesas apostaram numa política de abertura e de informação que nos permite a todos, observadores exteriores, não só solidarizarmo-nos com as pessoas atingidas mas também elogiar a eficácia da resposta dada.

No caso de Myanmar, a Junta Militar adoptou a conduta oposta. Minimizou as consequências do ciclone, primou pela ineficácia (ou ausência mesmo de resposta), preferiu persistir na realização de um referendo que visa concentrar (ainda mais) o poder nas mãos dos generais e barrou o acesso internacional quer à informação quer às equipas de apoio humanitário.

Já muito se escreveu sobre o que significa esta actuação. Mais até do que a omissão do dever de proteger as populações que incumbe às autoridades de um Estado, estamos perante uma conduta equiparável à de um verdadeiro genocídio em massa. Os governantes birmaneses não podem ignorar a dimensão da catástrofe nem as suas previsíveis consequências e, por isso, ao recusarem o socorro às vítimas, só podem pretender o resultado a que infelizmente iremos chegar: para além das mortes directamente provocadas pelo ciclone (oficialmente serão mais de 30 mil, observadores diplomáticos, contudo, indicam que podem chegar aos cem mil), as doenças e o estado de abandono dos sobreviventes poderão ampliar ainda mais estes números terríveis.

E perante este cenário de horror, que provoca uma justa indignação à escala planetária, não se pode deixar de lamentar a tibieza da reacção da comunidade internacional.

Não me refiro, claro está, aos apelos e às declarações retóricas dirigidas às autoridades de Rangum. Nesse plano todos estiveram presentes e fizeram as declarações do costume.

Mas o que é chocante é, por um lado, a inacção das Nações Unidas e, por outro, a divisão sobre o tema dos europeus.

Como europeísta que sou fico desolado ao saber que o Conselho dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia não deu sequência a uma proposta da Alemanha, da França e do Reino Unido no sentido de desencadear uma operação de ajuda humanitária assente em corredores protegidos que permitissem o acesso directo das organizações não governamentais às zonas sinistradas e a entrega de ajuda às populações afectadas. Prevaleceu a regra da unanimidade e o resultado prático foi enviar o comissário do Desenvolvimento a Rangum para convencer os militares...

De igual modo as Nações Unidas não foram capazes de desencadear uma operação de pressão sobre as autoridades de Rangum que fizesse a diferença para as vítimas. Impunha-se uma atitude muito mais enérgica do Conselho de Segurança (onde seria improvável que a China, até pelas razões acima indicadas, pudesse levar até ao fim uma possível intenção de veto), que poderia mesmo indiciar a efectivação da responsabilidade penal internacional dos autores do crime de genocídio.

DN, 16-5-2008
 
Direito de Ingerência

Em 1967, o regime de Salazar fez tudo para esconder, do próprio povo, a dimensão da catástrofe das
cheias de Lisboa.
A Igreja Católica foi das poucas organizações que, no terreno, tomaram consciência da dimensão do desastre que o regime tentava,
através da censura, esconder
interna e externamente.
Para muitos jovens mobilizados
pelos movimentos e paróquias, o contacto com os pobres desalojados e os mortos escondidos funcionou
como vacina anti-regime.
A verdade atrai, a mentira repele…
Em 1973, quando a China sofreu um terramoto idêntico ao desta semana, o regime maoista seguiu
a mesma estratégia de encobrimento. Um grupo de intelectuais franceses de visita ao país só suspeitou de algo anormal quando viu no “Diário do Povo” um estranho editorial contra “os supersticiosos”. Os
chineses acreditavam que os grandes “terramotos”
antecipavam grandes mudanças sociais.
O regime de Pequim mudou, entretanto. E ainda bem. Já não esconde ao povo os seus mortos. Aceita até a ajuda internacional.
Mas ainda não se arrisca a abrir as portas às equipas de socorristas.
Na ex-Birmânia, agora Myanmar, foi pior. A junta militar, que governa o país com mão de ferro, adoptou
a estratégia de todas as ditaduras.
Fechou as fronteiras.
Recusou o auxílio. Deixou a população indefesa à sua sorte. E o mundo pergunta-se se este não é o
momento de usar, com justiça, o polémico direito/dever de ingerência humanitária.

Graça Franco

RRP1, 14-5-2008
 
Hu Jintao agradece ajuda e declara três dias de luto

ABEL COELHO DE MORAIS

O Presidente Hu Jintao exprimiu ontem a sua gratidão aos países estrangeiros e ONG internacionais pelo modo rápido como disponibilizaram ajuda às vítimas do sismo que há uma semana se fez sentir na província de Sichuan.

"Em nome do Comité Central do Partido Comunista da China, do Conselho de Estado e da Comissão Militar Central, dirijo os meus sinceros agradecimentos aos Governos e amigos estrangeiros que contribuíram para as nossas operações de socorro", afirmou o líder chinês durante uma reunião na província de Sichuan, para avaliar o estado das operações de salvamento.

Estas prosseguiam ontem em vários pontos da província, apesar da intensidade de algumas réplicas que, de forma diária, continuam a fazer- -se sentir. Ainda ontem, em resultado de um destes sismos, de magnitude seis na escala de Richter, morreram três pessoas e 50 ficaram feridas na cidade de Jiangyou.

As condições atmosféricas para os próximos dias na zona atingida vêm criar novas dificuldades, com fortes chuvas e trovoadas. Estas dificultarão as operações de socorro e podem provocar desmoronamentos de estruturas em situação precária e deslizamentos de terras.

Um outro desafio se coloca às autoridades chinesas: a prevenção de epidemias nas zonas atingidas pelo sismo e entre os deslocados. Estes são já mais de cinco milhões, segundo os últimos números, a maioria a viver sem condições sanitárias mínimas, com escasso acesso a água potável e alimentação deficiente.

O Governo de Pequim decretou três dias de luto nacional pelas vítimas do sismo, tendo divulgado um novo balanço de mortos, que são agora de 32 477. As autoridades admitem que este número possa chegar aos 50 mil, atendendo que permanecem desaparecidos largos milhares.

Mais de 60 daqueles desaparecidos foram encontrados com vida sábado à noite, todos eles soterrados nos escombros de edifícios; 56 foram encontrados em Yingxiu, enquanto os restantes foram encontrados em diferentes pontos da província.

Desenlace menos feliz parece ser o de três pandas da reserva de Wolong que permanecem desaparecidos. Inicialmente, fora noticiado que todos os animais daquele que é o mais conhecido santuário da espécie estavam sãos e salvos.

O Instituto Nacional de Sismologia chinês reviu ontem a magnitude do sismo, colocando-o em oito na escala de Richter, quando até agora o colocava em 7,8 desta escala. Por seu lado, o Instituto Americano de Geofísica registou 7,9 de magnitude na mesma escala.

DN, 19-5-2008
 
A BIRMÂNIA NÃO É O IRAQUE - E AS ONG NÃO TÊM TANQUES

Ana Gomes
deputada socialista do Parlamento Europeu

O sociólogo Alberto Gonçalves assinava uma página de Opinião no DN do passado domingo 11 de Maio, dedicando alguma prosa a criticar ("Causas Dela") o que escrevi no meu blog ("Causa Nossa", 7 de Maio) sobre a necessidade de uma entrada urgente, de "roldão e por todas as portas e janelas" na Birmânia das agências da ONU, das ONG humanitárias e dos media internacionais em socorro do povo birmanês vitimado pelo ciclone.

O Dr. Gonçalves parece desvalorizar o sofrimento dos birmaneses - à morte e à devastação em larga escala trazidas pelo ciclone, acrescem hoje (passados quinze dias) mais milhares de mortes por falta de socorro. E pouco lhe importa que a causa desses milhares de vítimas adicionais seja a intransigência da ditadura militar que há décadas oprime e desgoverna a Birmânia - uma ditadura que leva a paranóia isolacionista ao ponto de deixar morrer o povo recusando ajuda externa.

Ao Dr.Gonçalves importa mais criticar-me por defender uma urgente "invasão" (palavra dele) humanitária para ajudar as vítimas na Birmânia, sem "atrasos e mariquices diplomáticas" (palavras dele) e por defender que uma intervenção na Birmânia teria também por objectivo/efeito "ajudar os birmaneses a escorraçar a junta opressora" (palavras minhas). Ele omite cirurgicamente o verbo "ajudar" para poder atribuir-me o intuito de pôr esses actores internacionais a varrer a Junta; intuito que efectivamente não tenho, defensora que sou, como sempre fui, de que a ajuda externa só deve ser isso mesmo - ajuda - cabendo aos próprios povos tratar do "regime change" e livrar-se dos tiranos (na Birmânia, no Sudão, no Iraque ou no Portugal do 24 de Abril). O que eu não ignoro - e a Junta ditatorial birmanesa também não e por isso recusa a ajuda externa - é que o fim do isolamento do país ditará inexoravelmente o fim do regime. Mas isso parece ser irrelevante para o Dr. Gonçalves....

Ele acusa: "As urgentes recomendações da Dra. Gomes implicam, assaz simplesmente, uma guerra." Vá lá que não implicou ainda e já entraram entretanto, à sorrelfa, pelas portas e janelas das porosas e longas fronteiras birmanesas, centenas de jornalistas internacionais!

Mas o que verdadeiramente revela a má fé do Dr. Gonçalves é a analogia desajeitada que ele tenta estabelecer entre a minha defesa de um maior envolvimento da comunidade internacional na Birmânia e a minha oposição à invasão do Iraque. Ao distorcer o que defendo para a Birmânia ele tenta expor uma suposta contradição da minha parte: diz que "é capaz de jurar que a Dra. Ana Gomes se opunha com furioso vigor a aventuras unilaterais do género" e lembra que há cinco anos denunciei "os 'criminosos' que entraram de roldão no Iraque". Como se a invasão armada e ilegal do Iraque fosse justificável por quaisquer propósitos humanitários (e eu denunciei a insuportável hipocrisia dos invasores ao usar o pretexto dos direitos humanos, além do das ADM, eles que durante décadas tinham apoiado o criminoso Saddam na opressão do seu povo e na agressão ao iraniano).

Como se eu tivesse advogado uma invasão armada da Birmânia ou defendesse uma qualquer "aventura unilateral" sem base no direito internacional. Para confundir os incautos, o Sr. Gonçalves omite que eu invoco a "responsabilidade de proteger", que decorre directamente das obrigações impostas pela Carta das Nações Unidas a todos os seus membros e que se aplica face aos "crimes contra a humanidade" cometidos pela Junta birmanesa.

Não advogo uma invasão armada para a Birmânia, tal como não a advoguei para o Iraque. Advogo, sim, uma urgentíssima vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta ou do Conselho de Segurança (pois este não tem de autorizar previamente ajuda humanitária que é dever de todos prestar a vítimas de catástrofes).

Além do impacto imediato humanitário, é o impacto político que também me importa. Não acredito - como Alberto Gonçalves, baseado não se sabe em quê - que o forçar da presença das agências e ONG internacionais na Birmânia provoque uma guerra - o regime birmanês é na realidade um "tigre de papel". Basta ir lá - como eu fui - e observar o profundo ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores.

É tempo de levar os membros da Junta a enfrentar o Tribunal Criminal Internacional por "crimes contra a humanidade" - além de todos os já cometidos ao longo das últimas décadas, acresce agora a crueldade refinada de deixar morrer o povo por obstrução do socorro externo.

Claro que o sociólogo Dr. Gonçalves admite a "tirania" da Junta de Rangum. Só que prefere ignorar os imperativos legais e morais que decorrem directamente da calamidade na Birmânia. Impressiona-o mais que a Junta "talvez não aprecie a generosa ingerência" e sobretudo "talvez não aprecie ser escorraçada". E, à conta disso, nada propõe, preparando-se para assistir à evolução sociológica das vítimas e dos seus carrascos.

Obviamente que nada tenho a ver com as causas do sociólogo Gonçalves. E ainda menos com as consequências....

Nota: Alberto Gonçalves responderá a Ana Gomes no seu habitual artigo de domingo

DN, 22-5-2008
 
Chegou a hora

Myanmar, a antiga Birmânia, foi atingida por um
terrível ciclone há mais de quinze
dias. Calcula-se que quatro quintos
dos 2,5 milhões de sobreviventes
ainda não tenham recebido auxílio.
Assim, muitos mais vão morrendo.
A junta militar que governa aquele
país tem difi cultado a ajuda internacional.
O sofrimento do povo não
a preocupa. O que lhe interessa é o
seu futuro político. Por isso, os generais
promoveram um referendo
para consagrar a ditadura. Escandalosamente,
depois da tragédia o
referendo não foi adiado.
O mundo indigna-se com esta criminosa
actuação. Mas a indignação
não basta. É preciso avançar com
o direito, que é também um dever, de ingerência
humanitária.
Ingerência que João Paulo II apoiou na sua mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 2000. O Papa
lembrou, então, que as iniciativas de ingerência
humanitária “devem ser circunscritas
no tempo e precisas nos seus
objectivos, conduzidas no pleno
respeito do direito internacional,
garantidas por uma autoridade reconhecida
a nível supranacional e,
em todo o caso, nunca deixadas à
mera lógica das armas. Por isso, é
preciso fazer o máximo e o melhor
uso do que está previsto na Carta
das Nações Unidas, defi nindo
sucessivamente os instrumentos
e modalidades efi cazes de intervenção,
no quadro da legalidade
internacional”.
É altura de responder, na prática,
a este apelo.

Francisco Sarsfi eld Cabral

RRP1, 20-5-2008
 
PARA A BIRMÂNIA E EM FRAQUEZA!

Alberto Gonçalves
sociólogo
albertog@netcabo.pt

A história é a seguinte: no seu blogue, a dra. Ana Gomes escreveu um apelo à intervenção humanitária na Birmânia; aqui no DN, eu comentei o apelo; também no DN, a dra. Ana Gomes respondeu ao meu comentário. Tudo civilizado, tudo digno. A terminar, gostaria de esclarecer só dois ou três pontos.

Primeiro, a dra. Ana Gomes acusa-me de "desvalorizar o sofrimento dos birmaneses". Decerto deixou-se influenciar pelo meu escasso optimismo. É compreensível. Dado que não alimento crenças na bondade panfletária, não atafulhei o texto com invocações de esperança ou lamentos de pesar. Porém, juro: se me garantissem que cada palavra indignada salvaria a vida de um birmanês e abalaria aquele tenebroso regime, eu preencheria mil páginas com gritos de "Basta!". Por incrível que pareça, também a mim me ofende a dor alheia. Não acho é que confessar a ofensa de dez em dez minutos ajude alguém.

Mas chega de falar de mim. Em resumo, e com o cuidado de usar as palavras da eurodeputada, a dra. Ana Gomes defende uma intervenção na Birmânia, uma "vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta [os tiranos locais] ou do Conselho de Segurança". O processo é linear: a "urgentíssima" e "desarmada" vaga entra no país, ajuda os desvalidos e, de caminho, promove "o fim do isolamento do país", circunstância que "ditará inexoravelmente o fim do regime" (um "tigre de papel", para a dra. Ana Gomes) e o advento da democracia.

Não discuto o princípio que a dra. Ana Gomes invoca: a "responsabilidade de proteger", conceito recente que dá à ONU o direito de afrontar a soberania dos estados a fim de auxiliar populações em risco. Muitos já o discutem. Ninguém o aplica, visto que o Conselho de Segurança não é consensual quanto aos estados que podem ver a soberania afrontada e, logo, não aprova o envio de forças militares (bastante úteis na hora de convencer ditadores reticentes).

Na versão oficial, a "responsabilidade de proteger" é polémica e, como se verificou em algumas das intervenções precursoras do conceito (na Somália e no Ruanda, por exemplo), de resultados duvidosos. Na versão da dra. Ana Gomes, a "responsabilidade de proteger" é outra coisa, um sonho idílico que dispensa armas e a observação da realidade.

Eis a realidade: sem o aval da Junta ou sem um contingente bélico que compense a falta de aval, as ONG e os jornalistas não penetram a Birmânia em número relevante. Com autorização, que agora talvez tenha sido concedida, é possível que penetrem, a fim de ser alvo de saques (há relatos dos saques) e, na melhor das hipóteses, de auxiliar uns tantos desgraçados. Não é mau. Não é "inexoravelmente" o fim do regime. Um exército de 400 mil homens não recua perante a disposição altruísta de voluntários das ONG e repórteres. E invocar o "ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores" apenas constata uma evidência. Décadas de ditadura provam que o pormenor de os oprimidos não apreciarem os sujeitos que os oprimem não anula a opressão. Geralmente, quem manda possui argumentos mais decisivos do que quem obedece, uma desproporção de meios que a "invasão" pacífica proposta pela dra. Ana Gomes não promete alterar.

A dra. Ana Gomes supõe que a ingerência sem coerção conduz à mudança política, quando de facto se entrega na dependência dos políticos que a senhora deseja erradicar. Eu sinceramente espero que do dilema saiam benefícios duradouros para milhões de birmaneses. Sinceramente, espero sentado. E aproveito para pedir desculpa: ao contrário do que antes insinuei, a generosa solução da dra. Ana Gomes não legitima comparações com o Iraque nem com país nenhum, excepto o das Maravilhas.

DN, 25-5-2008
 
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