14 junho, 2008

 

"O pão,


o biocombustível das revoltas"



http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3o

http://www.saborosas.com/frontoffice/subcategory.php?id=53

http://www.museudopao.pt/

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O PÃO, O BIOCOMBUSTÍVEL DAS REVOLTAS

Ferreira Fernandes
jornalista
ferreira.fernandes@dn.pt

Maria Antonieta nunca disse: "O povo não tem pão? Que coma brioches!" Em Confissões, livro escrito em 1766, Jean-Jacques Rousseau atribui a frase a uma "grande princesa" e nessa data Maria Antonieta tinha 10 anos e vivia em Viena. Mas interessa-me a frase porque prova que o estômago vazio é que dá horas às revoluções, não a falta de liberdade. O povo de Paris foi cercar o palácio de Trianon, protestando pelo preço do pão, primeiro, e só mais tarde é que decidiu libertar os presos da Bastilha.

Lembro-o pelas revoltas que vão por todo o mundo, do México à Malásia, por causa da escassez de comida. Segundo o Banco Mundial, o preço dos bens alimentares subiu 83% nos últimos três anos. Para explicar o drama global, nada como a língua global: em inglês, esfomeado (hungry) e revoltado (angry) são palavras próximas na escrita e pronunciam-se de forma ainda mais parecida. Entre o engolir em seco e as barricadas vai um intervalo mais curto que uma digestão saudável.

E tudo porque o petróleo sobe a 120 dólares o barril. Subindo, incentiva a compra de biocombustíveis (sem precisar da Rainha Isabel de Inglaterra dizendo: "O povo não faz o pleno com gasóleo? Que encha com etanol!"). Logo, sobe o preço do milho e do açúcar. Não se podendo comprar tanto milho, compra-se mais arroz. O preço do arroz dispara por causa do barril de petróleo, apesar de os seus sacos de bagos não servirem para mover bielas de um motor.

Ciclo infernal. A economia é uma ciência. A ciência é uma coisa de laboratórios. Nos laboratórios há vasos comunicantes. Os vãos comunicantes explicam que nada se perde, tudo se transforma, o que esvazia daqui, enche ali. Quando uma borboleta bate as asas numa refinaria do Iémen, há uma tempestade nos arrozais da Índia. E tudo à volta do essencial, o pão.

D' Os Miseráveis, de Hugo, a Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch, de Soljenitsin, tudo anda à volta de um pão. Quando John Ford quer contar um sonho, um símbolo de fartura, a Califórnia, pára numa cena de As Vinhas da Ira. Durante a Grande Depressão, a família de Tom Joad percorre a estrada 66 numa fuga bíblica. Numa estação de serviço (olhem, já lá está o petróleo), os Joad não podem comprar sanduíches e imploram para levar pão seco (olha, o pão). O sonho simbólico não vale nada comparado com aquela premência (e preeminência também) enfarinhada.

Que não se brinque com ele, o pão. Habituados que estamos que os conflitos venham de fundamentalistas saciados (com reivindicações de Club Méditerranée, com paraísos e virgens), era bom que descêssemos à terra. O pão é o biocombustível das revoltas a sério. Esse, sim, é um problema que não tem outra solução senão resolvê-lo.

DN, 27-4-2008
 
DRAMA DE FACA E GARFO

Ferreira Fernandes

Era, talvez, a última boa certeza da vida: a mesa é cada vez mais farta. Na comparação com o passado esse era o único item imbatível da modernidade. Diz-se e bem: hoje já não há a segurança (nem a música, nem o Benfica) de antigamente. Até nessa questão da comida, num ponto - os sabores -, a memória ganhava sobre o presente: oh, as ameixas de quando eu era miúdo! Tudo de antes é melhor que hoje, com aquela excepção: à mesa já não se passa fome. "Em minha casa dividia-se a sardinha em três", é a frase com que os avós julgam curar o fastio dos netos. Era a última boa certeza da vida, a tal mesa farta. Mas não é que até isso começa a desmoronar? Olhem as notícias da arca vazia. As reservas mundiais de alimentos estão no ponto mais baixo desde há 30 anos. E, pela primeira vez na sua história, os EUA racionam a compra do arroz: nos supermercados só se pode levar, por pessoa, quatro sacos de nove quilos de arroz! É ainda muito arroz, mas é uma garfada num símbolo.

DN, 26-4-2008
 
O FANTASMA DA FOME GLOBAL

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

A subida mundial dos preços alimentares é um tema dramático. Os jornais trazem previsões aterradoras e notícias de revoltas populares contra o preço da comida. Regressam os medos de fome global, 200 anos após Malthus. Para lá das vulgarizações mediáticas, as médias mensais mundiais publicadas pelo FMI (www.imf.org/external/np/res/commod /index.asp) mantêm-se preocupantes.

Desde o início de 2007 até ao mês passado o preço do trigo aumentou 124%, o do arroz 85% e o do milho 41%. A subida não é só de cereais, porque o azeite aumentou 90%, óleos de soja e de palma 108%, banana 61%, laranja 54%, cacau 56% e café 52%. A energia também está muito cara, com o carvão a subir 140% e o petróleo 90%, como os metais: chumbo 81%, ferro 66%, cobre 48%.

Curiosamente, os preços que mais caíram são alimentares: carnes de vaca e porco desceram 10%, a média do peixe 7%, camarão 15% e o chá 1%. Mas as subidas são impressionantes. No arroz e trigo, os bens mais sensíveis, os aumentos são os maiores dos últimos 25 anos. Os efeitos são já dramáticos, com a fome a surgir em certos locais.

A comida naturalmente apaixona o mundo e os especialistas, gerando teorias contraditórias. A tese de Malthus em 1798 previa escassez e carestia crescentes. Esta ideia, depois rejeitada, renasceu nos movimentos ecologistas. Entretanto surgiu uma teoria com a consequência oposta. A "tese Singer-Prebish" de 1950 supunha uma "degradação dos termos de troca", com os preços das matérias-primas a descer face aos produtos industriais, o que exploraria os países pobres.

A verdade é que os preços dos alimentos sofrem muitos e complexos impactos. Se os limites físicos e ambientais serão sempre determinantes, como disse Malthus, as impressionantes melhorias tecnológicas nas culturas e detecção de jazidas contrariam esses limites. O resultado tem sido uma flutuação intensa sem tendências seculares definidas.

Qual a origem deste surto altista? Uma causa imediata é a queda do dólar. Em euros, as subidas são bem menores (trigo 88%, arroz 55% e milho 19%) mas ainda significativas e no trigo mantêm-se as mais elevadas no registo. Por outro lado, descontada a inflação, os preços, mesmo em dólares, ainda estão bastante abaixo dos valores do início dos anos 80. As matérias-primas registaram uma tendência decrescente nas últimas décadas, agora invertida. O fantasma global ainda vem longe.

A atenção mediática centra-se em alguns efeitos pontuais. Nervosismo internacional, maus anos agrícolas e instabilidade sociopolítica local hão-de passar.

Também a famigerada especulação, supostamente dominante, só de vez em quando surge para ficar com as culpas.

Muito mais importantes são as duas forças decisivas: o mercado e a lei. A razão principal desta situação é algo excelente: o recente desenvolvimento das regiões pobres aumentou a procura de alimentos. Isso significa que a fome está a descer, não a subir.

Curiosamente, agora que os preços alimentares estão altos, os activistas protestam em nome dos pobres consumidores, enquanto antes, quando estavam baixos, protestavam em nome dos pobres produtores. Como sempre, a subida de preços criará a correcção de mercado. Novos investimentos nesses sectores, desencorajados nos anos de preços baixos, tenderão a prazo a reduzir a carestia.

Se a política o deixar, claro. Os mercados agrícolas e alimentares são dos mais espartilhados e regulamentados. Os governos, convencidos que apoiam e promovem, criam enormes bloqueios e distorções, de que a política agrícola europeia é um exemplo terrível. As negociações globais de liberalização da Organização Mundial do Comércio estão moribundas sobretudo por causa do dossiê agrícola. Às pressões rurais juntaram-se agora as ambientais, com a opção pelo biodiesel a justificar novas manipulações.

Desde o tempo de Malthus que as boas intenções políticas, impedindo importações e manipulando preços, geram episódios de escassez.

A melhor solução para a carestia seria a liberalização.

Mas como a comida apaixona o mundo, não há grandes esperanças.

DN, 28-4-2008
 
Portugueses estão a comprar menos pão e leite

CÁTIA ALMEIDA

A subida do preço de produtos alimentares já está a ter efeitos no consumo. Os portugueses estão a comprar menos pão e leite, dois bens de primeira necessidade que registaram fortes aumentos de preço no último ano.

O leite, que aumentou 14% nos últimos 12 meses (de acordo com o Instituto Nacional de Estatística - INE), sofreu uma quebra na produção de 3,6%. "Não quer dizer que a redução no consumo seja exactamente deste valor, mas sendo um produto de pouca duração a produção acompanha as flutuações do consumo", afirmou ao DN Fernando Cardoso, secretário-geral da Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite (Fenelac).

O responsável acrescentou que embora não tenha indicadores rigorosos, há indícios de uma "quebra ligeira" nas vendas. Actualmente o consumo per capita em Portugal ronda os 89 litros (por ano).

Apesar do aumento de preço ao consumidor final tenha sido de 14% (nas marcas de leite "comerciais"), Fernando Cardoso sustentou que o custo do leite para os produtores sofreu um agravamento 40%. "Existe um grande esmagamento das margens", sublinhou o empresário.

Enquanto o preço do litro de leite ao consumidor subiu de 59 cêntimos para 67 cêntimos, na produção o aumento foi de 33 para 44 cêntimos.

No caso do pão, os sinais de consumo são os mesmos: quebra nas vendas. "O consumo está muito retraído, as pessoas fazem contas para comprar carcaças e não existe compra por impulso", sustentou ao DN Carlos Alberto Santos, presidente da Associação do Comércio e da Indústria de Panificação, Pastelaria e Similares.

A tendência do preço deste produto continua a ser de alta e Carlos Santos mantém, assim, a previsão dos aumentos chegarem aos 50% este ano. "A escalada dos cereais, o aumento dos combustíveis e a subida dos juros está a aumentar muito os custos das empresas".

No sector da carne de bovino e suíno, o cenário é diferente. O aumento do preço das rações, fruto da escalada dos preços dos cereais, não está a ser reflectido aos consumidores, o que leva a que a carne seja vendida abaixo do preço de custo. Uma situação que está a espalhar falências pelo País e a levar ao encerramento de explorações.

Aníbal Silva, presidente da Associação Nacional de Engordadores de Bovinos adiantou que "qualquer dia não há produtores de carne nacionais", acrescentando que "o único produto que não está a reflectir a subida dos cereais é a carne".

O responsável explicou que "há muitos produtores a venderem os seus animais por não conseguirem suportar os custos. Vão abandonar a actividade, é uma situação de desespero". Por outro lado, como "há muita carne disponível no mercado, não é possível aumentar os preços ao consumidor". Aníbal Silva frisou que a crise foi gerada pela União Europeia, devido sobretudo à política dos biocombustíveis. "Os cereais que deviam ser usados na alimentação estão a ser usados na energia."

Em relação ao arroz, os consumidores já estão a sentir a subida de preço. O quilo passou de 70 cêntimos, em média, em 2007, para 80 cêntimos, este ano. Para o futuro, as perspectivas são de agravamento, podendo o quilo deste produto chegar a um euro, de acordo com a Associação Nacional dos Industriais de Arroz (ANIA).

Pior do que a subida de preço é o risco do arroz ser racionado, algo que está a acontecer na cadeia americana Sam's Club, do gigante Wal-Mart, e nas lojas inglesas Tilda.

Em Portugal, a situação já é preocupante porque há menos arroz disponível no mercado, mas ainda não há racionamento, tal como o DN noticiou na edição de sexta-feira. Contudo, isso poderá ocorrer se a Tailândia restringir as exportações.

Portugal produz arroz tipo carolino para o mercado interno, mas tem de importar todo o arroz agulha que é consumido (80 mil toneladas/ano). O racionamento nas vendas nos Estados Unidos e em Inglaterra está a afectar sobretudo o mercado grossista, embora o secretário-geral da ANIA considere que este é um sinal de alerta muito importante.

DN, 30-4-2008
 
Isolado gene para produzir mais arroz

JOÃO PAULO MENDES

Uma equipa de cientistas chineses isolaram um gene que poderá influenciar a produtividade e a adaptação da planta do arroz nas zonas temperadas, segundo um artigo que é publicado hoje na revista Nature Genetics. O anúncio da descoberta ocorre numa altura em que o mundo vive sob o espectro de uma crise alimentar, que levou a ONU a criar, no final de Abril, uma célula de crise para lidar com a questão da subida do preço dos alimentos e os consequentes problemas de fome.

Os cientistas, da universidade agrícola de Huazhong, em Wuhan, determinaram o gene que influencia o rendimento da planta, o seu tamanho e o período de floração. Até agora, apenas tinham conseguido determinar a zona onde deveria localizar-se o gene ou os genes implicados, no cromossoma 7.

As plantas de arroz sem o gene agora isolado - Ghd7 - são mais curtas do que as outras, têm menos grãos por grupo de flores e florescem mais cedo, constataram os investigadores daquela universidade do centro do país. Ao reintroduzirem este gene, os cientistas conseguiram duplicar o período de floração e aumentar o tamanho da planta em 60%.

Segundo a agência Lusa, os autores do estudo analisaram a acção do gene Ghd7 em 19 variedades de arroz produzidas em várias regiões da Ásia e identificaram cinco níveis diferentes. Os genes mais activos estão nas plantas em regiões mais quentes, permitindo-lhes explorar melhor a luz e a temperatura, manter a floração e aumentar o rendimento. Já os menos activos estão no arroz cultivado em zonas mais frias, onde o período de crescimento é mais curto.

A descoberta de que o rendimento do arroz depende de só um gene, e não de vários como se pensava até agora, tem "implicações fundamentais" no aumento da produtividade da planta, que pode ser melhorada por selecção ou transformações genéticas, sublinham os investigadores.

Nas últimas semanas, vários países asiáticos produtores de arroz adoptaram medidas para proteger as suas populações do aumento dos preços deste alimento básico na região, recorrendo a racionamentos, subvenções e limitação de exportações. A escalada do preço pode desencadear conflitos sociais, sobretudo na Ásia, onde mil milhões de pessoas são directamente afectadas.

Isso mesmo alertou ontem, em Madrid, o ministro das Finanças japonês. "O recente aumento dos preços do arroz vai atingir duramente os países da Ásia. Os mais afectados serão os mais pobres, incluindo os pobres urbanos", declarou Fukushiro Nukaga durante a Assembleia Geral do Banco Asiático de Desenvolvimento, que amanhã termina na capital espanhola.

DN, 5-5-2008
 
O QUE VEM AÍ

Maria José Nogueira Pinto
jurista

Apesar do discurso optimista do Governo e de a nossa taxa de inflação estar abaixo da média da zona do euro, o aumento estimado em 40,9% dos custos suportados por um agregado em alimentação vai ter consequências sociais e políticas. Uma certeza reforçada, aliás, pelo mau estado dos nossos indicadores relativos a 2007.

O desinteresse do actual Executivo, quer em prosseguir e estabelecer políticas públicas de combate à pobreza e à exclusão, por um lado, quer em antecipar os problemas sociais emergentes com respostas eficazes e em tempo útil, por outro, vai constituir uma pesada factura política, estou certa, com as dificuldades agravadas para 528 mil famílias de baixos rendimentos. A fome é, nas nossas latitudes, um problema dado como ultrapassado. Perdeu-se mesmo o nexo de causalidade entre produção agrícola e alimentação e as grandes superfícies tornaram--se os mostruários da nossa adquirida abundância. Mas talvez não seja assim e esta constatação, por si só, basta para abalar muitos dos pressupostos em que assenta uma certa confiança e mesmo resignação de muitos daqueles que, embora passando dificuldades, comem três vezes ao dia pelo simples facto de viverem num país dito desenvolvido.

Em Portugal cruzam-se, hoje, dois fenómenos, um já constatado e outro já anunciado, o da pobreza e o do empobrecimento. Significa que a uma pobreza persistente se junta agora um movimento descendente, uma dinâmica negativa que faz cair num estado de pobreza pessoas e famílias que se tinham conseguido manter acima dele. O desemprego, os baixos níveis salariais em relação à média europeia, o endividamento das famílias, a subida das taxas de juro e o aumento da carga fiscal, tudo contribuiu para esta situação, agravada agora com a brusca subida dos preços dos produtos alimentares básicos. Vemos como em alguns países da América Latina as famílias de classe média estão já a transferir gastos em educação e em saúde para a alimentação e não é difícil prever que o mesmo acontecerá em Portugal, onde a classe média está atada nas suas próprias fragilidades e cujos estratos mais vulneráveis perdem o pé, sem reserva ou almofada que lhes valha.

Sabemos que esta é uma crise global que atinge a generalidade dos países, mas não deixa de ter efeitos mais dramáticos naqueles, como o nosso, onde o tecido social se tem vindo a esgarçar paulatinamente e onde nada está preparado para o impacto que se vai sentir. É nestas ocasiões que mais se valoriza a existência de políticas públicas coerentes e consistentes, de médio e longo prazo, transversais e integradas. Porque não bastam as boas vontades da sociedade civil, por muito importantes e valiosas que sejam. As políticas públicas são um sinal do empenhamento dos governos na manutenção e reforço da coesão social e da coesão nacional. E ainda o reconhecimento explícito de que não haverá desenvolvimento sustentado se não se encarar, com lucidez, o combate à pobreza e à exclusão, priorizando-o, nomeadamente, na afectação de recursos humanos e materiais.

Quem estiver atento vê como as más notícias, os maus indicadores sociais, capazes de ensombrarem o arrojo modernizante e optimista deste Governo, nos chegam quase sempre de fora, nos relatórios da OCDE e nos ralhetes da UE. São logo desdramatizados e, recentemente, o topete governamental levou mesmo ao seu desmentido. Contudo, é exactamente assim e não há volta a dar.

Lá dizia a madre Teresa de Calcutá: todos falam dos pobres mas poucos falam com os pobres. É que existe uma grande diferença entre uma coisa e outra. Aliás, os pobres são, por natureza, mal-amados: pelos outros pobres, por causa da concorrência, nada é tão revelador da natureza humana como a competição por bens escassos; pelos ricos (a palavra é eufemística...), por causa da má consciência; pelos governantes, porque indicam insucesso e estragam a pintura. Mas, por este andar, algo me diz que o Governo vai ter de transformar em pão as suas flores eleitorais...

DN, 8-5-2008
 
SÍNDROME DA MANTA CURTA

António Vitorino
jurista

Há um ano seria muito difícil prever a evolução dos preços dos bens alimentares registada nestes últimos meses. Essa dificuldade não decorre apenas de incapacidade de previsão, mas também da diversidade das causas do sucedido.

Sabia-se que seria inevitável que o aumento dos preços dos combustíveis acabaria por ter reflexo no preço dos bens agrícolas, atenta a incorporação no seu valor final dos custos inerentes na agricultura mecanizada e nos próprios fertilizantes utilizados.

De igual modo era desde há bastante tempo evidente um aumento da procura de cereais, correspondendo a um crescente número de consumidores em países em vias de desenvolvimento, designadamente na China e na Índia, cuja dieta alimentar evoluiu para um crescente consumo da carne, o que representa uma pressão sobre as matérias-primas utilizadas nas rações para animais.

O que já não se podia saber era que a última produção agrícola de países essenciais para o abastecimento do mercado mundial como a própria Índia, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos da América ficaria muito abaixo do expectável, devido a um conjunto de razões onde avultam as climáticas.

Do mesmo modo, não foi previsto que a crise financeira internacional levaria os investidores a procurar refúgio não apenas nos tradicionais bens de valor garantido (designadamente o ouro) mas também nos produtos alimentares, dando origem a uma cadeia de movimentos especulativos que acrescentaram pressão sobre o aumento dos preços do arroz e dos cereais.

Por outro lado, verifica-se um desinvestimento na agricultura, que é transversal, pois verificou-se tanto nos países desenvolvidos como nos países em vias de desenvolvimento (embora com algumas excepções, como foi o caso do Mali que, graças a um plano integrado de desenvolvimento agrícola que em três anos duplicou a sua capacidade de produção de bens alimentares).

Este desinvestimento traduziu-se numa canalização de recursos e de mão-de-obra para outros sectores mais rentáveis no imediato, tendo sido acompanhado, sobretudo na Europa, por políticas de ajuda ao rendimento que não motivavam os agricultores a produzirem ou sequer a inovarem nos seus processos de produção.

Claro que o desalento da actividade agrícola nos países em desenvolvimento também corresponde à persistência de limitações à comercialização dos seus produtos por parte dos países desenvolvidos, que pretendendo proteger os seus próprios agricultores contribuíram para a inviabilização de um acordo na ronda de Doha da Organização Mundial de Comércio.

Questão mais complexa, porém, é a que tem a ver com os biocombustíveis.

As alterações climáticas e o combate às emissões de CO2 deram um forte impulso à produção de biocombustíveis, através de um conjunto de incentivos financeiros e fiscais que tornaram o uso da terra para esse fim atractivo.

Contudo, o impacto dos biocombustíveis na actual quebra de produção de cereais carece ainda de ser devidamente avaliado, por forma a evitar conclusões precipitadas. Até porque cada caso é um caso.

De facto, a União Europeia invoca em sua defesa que apenas 2% dos terrenos aráveis é que foram destinados à produção de biocombustíveis.

Por contraste, estima-se que cerca de 30% da área total de plantação de milho nos Estados Unidos esteja a ser ou venha a ser transformada em área de fornecimento de matéria-prima para os biocombustíveis.

Convenhamos que entre estes dois exemplos vai um mundo de diferença.

Acresce ainda que nem todos os terrenos são aptos para a produção de cereais, permanecendo assim em aberto uma importante margem de manobra para detalhar os limites à utilização de bens agrícolas com valência alimentar para biocombustíveis e as produções vegetais susceptíveis de terem esse destino em terrenos que, de todo o modo, teriam escassa valia para essa produção alimentar.

Há, pois, que evitar a síndrome da manta curta - a resposta para uma crise alimentar que tem muito a ver com as alterações climáticas não deve fazer esmorecer o objectivo de combater essas mesmas alterações climáticas.

DN, 9-5-2008
 
CRISE ALIMENTAR

João Miranda
investigador em biotecnologia
jmirandadn@gmail.com

Nos últimos meses, o preço dos bens alimentares tem vindo a aumentar nos mercados internacionais. Os responsáveis pelo Programa Alimentar Mundial consideram que está em curso um "tsunami silencioso" que penaliza os mais pobres. Este "tsunami silencioso" introduz uma dose de realidade na opinião pública ocidental.

As elites ocidentais olham para os problemas mundiais do ponto de vista dos muito ricos. A discussão pública é dominada por questões como o aquecimento global e os modos de vida ecológicos. Para responder a estas preocupações prioritárias, os governos ocidentais subsidiam a agricultura dita biológica e os biocombustíveis e penalizam as culturas geneticamente modificadas e a importação de alimentos.

A crise alimentar mundial mostra até que ponto estas políticas são superficiais e contraproducentes. A aposta na agricultura biológica desvia terrenos agrícolas para uma forma de agricultura menos produtiva. Os subsídios aos biocombustíveis desviam cereais da alimentação humana para a produção de combustíveis. Os subsídios à agricultura, o proteccionismo e a penalização dos transgénicos contribuem para a manutenção em actividade de empresas agrícolas ineficientes.

Os muito ricos não se sentem ameaçados por problemas básicos de sobrevivência e por isso tendem a preocupar-se com causas simbólicas. A luta contra o aquecimento global acabou por se tornar na causa simbólica prioritária. Os ambientalistas nunca reconheceram os verdadeiros custos de uma redução significativa do consumo de combustíveis fósseis. A crise alimentar revela alguns desses custos. Se forem desviados recursos agrícolas para a produção de combustíveis, os custos da alimentação aumentam. Este não é um problema específico dos substitutos agrícolas. É um problema geral. No actual estádio de desenvolvimento tecnológico, as fontes de energia alternativas são, em geral, mais caras que os combustíveis fósseis. A realidade acabará por mostrar, caso a caso, até que ponto a rejeição dos combustíveis fósseis é utópica e irrealista.

DN, 10-5-2008
 
Cardeal lança alerta contra o 'escândalo da fome'

JACINTA ROMÃO

Cardeal apela a políticos por justa divisão de bens

Vivemos numa "sociedade opulenta" e depois deparamo-nos com "esta realidade triste, vergonhosa, onde morrem milhões de irmãos à fome". É desta forma que o cardeal português, José Saraiva Martins, que preside hoje e amanhã às celebrações do 13 de Maio em Fátima, um dos "ministros do governo" no Estado do Vaticano, caracteriza o estado actual da sociedade no mundo. Colocando o enfoque nos países ocidentais, onde considera que a situação de pobreza ainda é menos admissível do que nas áreas do globo menos desenvolvidas.

Defende, por isso, que é preciso "proceder a uma distribuição social dos bens que a Terra produz", porque "são de toda a humanidade, não deste ou daquele que se arrogue seu proprietário". O prelado alerta "os responsáveis mundiais" - declarando ao mesmo tempo a incapacidade da Igreja Católica para intervir directamente - para o que considera "o escândalo da fome" na sociedade contemporânea, algo "intolerável e inadmissível". Para si, a actual carência de alimentos para milhões de pessoas "quer dizer que alguma coisa não funciona" e apela aos "responsáveis para que ponham os olhos neste problema e o resolvam porque todos os homens têm direito uma vida digna".

A Igreja "não pode substituir os políticos", sublinhou, ao ser confrontado com perguntas dos jornalistas, num encontro informal ontem à tarde. "Pode levantar a voz e recordar o dever de obediência a certos princípios", diz, mas julga que a separação entre a religião e a política "deve manter-se como até aqui". "A Igreja faz o que pode e não pode ir mais além", justificou. Ressalva, ainda assim, que a Igreja pode e deve manifestar-se dizendo que "estes problemas como a fome" ou a "proibição" do governo da antiga Birmânia de entrar ajuda externa à população constituem "uma violação dos direitos humanos". Aceita que pode entender- -se neste contexto a mensagem que pretende deixar aos peregrinos neste 13 Maio em Fátima, no qual inclui o tema da família, negando, embora, qualquer intenção de comentar os assuntos internos do País no que toca às leis que estão no topo da actualidade nacional como a do divórcio.

Ontem, numa celebração de cariz mais particular onde celebrou uma missa a convite dos membros do Instituto Secular das Cooperadoras da Família, reunidos no Santuário para comemorar os 75 anos da instituição, o cardeal leu o anúncio da assinatura do decreto que declara a heroicidade das virtudes do fundador do Instituto, pelo Papa Bento XVI - monsenhor Joaquim Alves Brás, que foi camareiro secreto do Papa Pio XII, nomeado em 1958. O introdução do processo de beatificação e canonização vinha já de 1990. Saraiva Martins, centrou, por isso, a tónica da sua homilia nas questões da família e reforçou aos jorna- listas a ideia de que esta é questão central das sociedades actuais.

A lei divórcio não deixará, mesmo assim, de constituir tema no Santuário de Fátima nestes dias, mas pela mão do reitor cessante, monsenhor Luciano Guerra. Como já vem sendo hábito, este escreveu o seu editorial deste mês no jornal oficial, Voz da Fátima, e discorre largamente sobre o assunto. Sem nunca mencionar o diploma legal em causa opina sobre as implicações que dela decorrem afirmando: "A verdade das leis mede-se pelo bem que conseguem para aqueles que a aplicam" e lamenta-se pelo alastramento da "mentira" que se tornou uma "epidemia" e provoca "a desintegração da unidade e da verdade social".

E já mais directo ao tema do divórcio que responsabiliza por fragilidades sociais escreve: "Mente-se nas grandes instituições, entre as pessoas responsáveis pela sua liderança, nas nações, nos governos, nos sindicatos, nas empresas, nos partidos; mente-se até nas instituições para educar as crianças". E incisivo, na crítica quando diz que "facilitam o suceder dos divórcios e caucionam a infidelidade conjugal", sem "prevenirem o abandono dos filhos pequenos e só agora descobrem o hediondo crime de pais que recorrem às piores calúnias para privarem o outro progenitor da custódia dos filhos".

DN, 12-5-2008
 
O ESPECTRO DA FOME

Mário Soares

De repente, quase inesperadamente, quando nos nossos ouvidos incautos ainda ecoavam as promessas do início do século, subscritas por todos os Chefes de Estado do Planeta, da imediata necessidade da luta contra a pobreza à escala global -, onde isso já vai?! - um espectro seriíssimo abala o mundo: a fome, uma realidade premente que começa a afectar muitos milhões de seres humanos, em mais de 30 países de África, Ásia e América Latina, susceptível de provocar revoltas, conflitos, motins, massacres, nunca vistos. E, curiosamente, os alertas, angustiados, não vêm só de teóricos ou de revolucionários. Chegam-nos de instituições consideradas "respeitáveis", como: o FMI (Fundo Monetário Internacional, de má memória), o Banco Mundial, a OMC (Or- ganização Mundial do Comércio), a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o PAM (Programa Alimentar Mundial). Porquê? Porque desde há alguns meses os preços dos géneros alimentares de primeira necessidade (trigo, milho, centeio, arroz, leite, carne, ovos, legumes, etc.) estão a subir em flecha, por razões de escassez, de algum proteccionismo dos países produtores e também - obviamente - por especulação.

Quando a crise financeira-bolsista, do imobiliário, a queda do dólar, como moeda internacional de referência, o aumento do preço do petróleo e do gás, e também a recessão económica, que toca à América do Norte (desemprego, agravamento do custo de vida, mal-estar social), está a alargar-se à União Europeia. É uma questão de tempo. Nada poderia ser pior. Contudo, as dificuldades crescem todos os dias e, com elas, os conflitos sociais e políticos. Inevitavelmente. Sem que os especialistas mais reputados - e os governantes - apresentem políticas coerentes capazes de responder às múltiplas crises que afectam o mundo...

A situação dificílima que chegou com pés de lã e todos os dias se agrava aproxima-se da grande crise do capitalismo de 1929. A globalização neoliberal desacreditou-se, sem remédio. O hegemonismo da hiperpotência dominante tornou-se uma miragem. O mundo voltou a ser multilateral. As dificuldades tocam a todos, em maior ou menor grau, embora os países mais pobres sejam os primeiros a sofrer. Chegará à Europa, não tenhamos dúvidas. Não pensemos que Portugal será uma excepção... Não será. Apesar dos esforços positivos do Governo para evitar os desgastes. Teremos de voltar rapidamente e em força a uma agricultura intensiva, aproveitando todos os bocados de terra cultivável que nos restam, das auto-estradas, do betão, da especulação imobiliária, sem qualquer razão de ser. E de voltar também a planos sociais de emergência, eficazes, que cheguem aos mais carecidos. No momento em que estamos - atenção - só excepcionalmente os privados nos poderão valer. É para o Estado Social e participativo que todos se voltarão. Como sempre acontece na hora da verdade.

DN, 13-5-2008
 
DIPLOMACIA DE FACA E GARFO

Ferreira Fernandes

Com o seu fino sentido diplomático, George W. Bush disse que os indianos, com a sua súbita riqueza, são os culpados pelo aumento internacional dos preços da comida. É um pouco como ouvir o major Valentim Loureiro a criticar Manuela Ferreira Leite por ser muito excitada a falar na tevê. A América ameaça transbordar das suas calças como um gelado do seu cone. Foi isso que as autoridades indianas lembraram a Bush: "Vamos a meças!", disseram, oferecendo a cintura delas para comparar com a média americana. Um americano consome 3770 calorias por dia, e um indiano, 2440. "O dinheiro gasto pelos americanos em lipoaspiração dava para acabar com a fome no mundo", também foi dito em Nova Deli. Os indianos e os chineses comem mais, vão continuar a querer comer mais e o equilíbrio do mundo vai ter de aturar esse apetite. São os dois únicos países com mais de mil milhões de habitantes e esse é um dado a ter em conta. As cartas estão na mesa. E isto não é só uma metáfora.

DN, 16-5-2008
 
Futebol demais

D. Carlos Moreira Azevedo
Bispo Auxiliar de Lisboa

Considero importante questionar o alcance da indústria
do futebol na sociedade portuguesa. É demasiado
o tempo que as pessoas consomem a ver,
a ouvir, a discutir, a pensar nas suas paixões futebolísticas.
É demasiado o espaço ocupado pelo
assunto futebol e anexos nos meios de comunicação
social, sem critérios pedagógicos
e apenas seguidores das audiências.
Inventam-se jogadas e criam-se factos
porque a realidade não basta para
tão pouca notícia!
Não é sábio, nem é são subjugar as
mentes e os corações a tanto discurso
inútil, repetitivo, explorador e alimentador
de rivalidades, sujeito a
uma lógica de mercado.
O desporto é bom, sobretudo, quando
praticado. Transformado em espectáculo
distrai, serve de catarse, põe à
solta os instintos, patrocina e enriquece
a indústria, reduz a visão do mundo e das
pessoas. Quando começa a faltar o pão, redobrase
o jogo para entreter e distrair dos problemas.
Os sinais de crise, patentes de alguns anos a esta
parte, são depressa ignorados: por fi ntas para a
frente, caneladas nos ditos intelectuais, medo da
impopularidade e permanentes e novos campeonatos,
nacionais, europeus, mundiais.
É impressionante como o sistema industrial fabrica
a infl uência nas conversas, a
alteração de horários na vida familiar,
o investimento afectivo, a centralidade
de observação existencial.
Todos se lembram como, graças ao
futebol, a bandeira nacional passou
a ser estimada. O que faz crer que
os nossos Maiores, os que identifi cam
o melhor da Pátria, são os jogadores
de futebol!
Não admira que nas novas gerações
haja muitos a desejarem ser jogadores,
até pelos escandalosos proventos!
Dedicar-se ao bem comum, seja
na política, seja na ciência, seja nas artes ou nas
comunidades religiosas não aparece como apreciado
e sedutor.

RRP1, 15-5-2008
 
Preço da comida sobe menos em Portugal

ALEXANDRA CARREIRA, Bruxelas

Custo do leite, queijos e ovos cresceu 14,9% em Abril, revelou Eurostat

Portugal foi o país da União Europeia (UE) que, em Abril, sofreu menos com o impacto da subida dos preços dos alimentos à escala global. Contra uma média de 7,1% nos 27, Portugal apresenta uma subida de 3,2%. Na Zona Euro, o aumento foi de 6,2%, revelou o gabinete europeu de estatísticas, Eurostat. A explicação para esta divergência reside no preço da carne e dos vegetais, já que nas restantes classes de bens a subida registada em Portugal ficou em linha com a verificada, em média, na UE.

Os números divulgados ontem em Bruxelas mostram ainda que o ritmo de crescimento dos preços da comida em Portugal em Abril foi menor este ano do que em 2007. Na UE, pelo contrário, o agravamento duplicou o verificado um ano antes.

A estatísticas europeias revelam também que o impacto da subida dos preços sobre a inflação registou o valor mais reduzido em Portugal, em comparação com os restantes Estados membros. A taxa de subida dos preços aumentou, portanto, 0,1% em Portugal, contra os 3,4% da Bulgária, o país europeu mais vulnerável aos ventos da crise alimentar mundial. Apesar dos países do Leste Europeus serem os mais afectados, as grandes economias da Zona Euro também não escapam aos efeitos da crise. Acima da média dos países da moeda única ficou a Alemanha, que registou uma subida de 6,4%, assim como a Espanha, com 6,8%. Em França e em Itália, os preços dos bens alimentares cresceram 5,5% e 5,9%, respectivamente. Fora da Zona Euro, o Reino Unido ficou um ponto acima da média dos 27, com 7,2%.

O Eurostat apresentou ainda os números referentes à subida dos preços por cada uma das nove classes alimentos para o mês de Abril. O sector que sentiu maior impacto foi o do leite, queijo e ovos, a registar um aumento de 14,9% na UE e 14,4 na Zona Euro. Mais próximo das duas médias, o aumento mais acentuado em Portugal aconteceu, precisamente, no leite, queijo e ovos (14,1%).

A classe de bens alimentares menos afectada a nível europeu é a dos vegetais, com uma descida real dos preços de 1,2% na UE e de 2% nos países do Euro. Aqui, Portugal registou uma descida de 17% nos preços. O preço da carne foi também um dos que menos subiu, quando comparado com as médias europeia, com um aumento de 0,7%, contra, por exemplo, os 19,1% registados na Lituânia.

DN, 3-6-2008
 
A crise alimentar e a solução global

A cimeira dedicada à crise alimentar, que decorre durante três dias em Roma, vai seguramente enumerar vários factores para a actual alta de preços dos bens alimentares. Mas é incontornável constatar o carácter nocivo e insustentável de uma política agrícola comum europeia, fortemente restritiva da produção e persistentemente proteccionista face aos preços nos mercados internacionais. Trata-se de uma questão - desarme aduaneiro de bens industriais nos países emergentes contra forte redução dos subsídios aos agricultores da UE e dos EUA - que tem conduzido a um impasse infindável.

Agora, a convergência de más colheitas com a subida brutal dos combustíveis, que agravou os custos de produção também na agricultura, criou uma oportunidade para aumentos de ocasião no comércio por grosso e a retalho. Na afluente Europa ouvem- -se vozes de protesto, mas a subida dos bens agrícolas foi de 7,2% no último ano (em Portugal a alta ficou-se, segundo o Eurostat, em 3,2%). Já nos países em vias de desenvolvimento é o espectro da fome que se agiganta de novo: 850 milhões de seres humanos em estado de subnutrição crónica.

É, pois, um novo impulso político global aquilo que as Nações Unidas e as suas agências especializadas (FAO, PAM, FIDA) esperam desta cimeira em Roma. Baseado na demolição das protecções à produção própria e a abertura regulada das produções e das trocas comerciais de bens alimentares entre países do Norte e do Sul do planeta. Para dar o impulso necessário à oferta, de tal forma que ela possa satisfazer as necessidades básicas de todos.

DN, 3-6-2008
 
"Fazer pão tornou-se um vício"

JOSÉ MANUEL OLIVEIRA

Conceição Correia. Aprendeu há meio século com a mãe os segredos da arte de fabricar pão caseiro. Hoje, o 'Pão d'Avó Maria', conhecido em França e nos EUA "por ser natural e durar mais tempo", fez dela uma empresária de sucesso.
Não pensa expandir o negócio. Quer estender o pé à medida do lençol
Quando o negócio do marido ligado à venda de máquinas para a construção civil, como retroescavadoras e buldozzers, entrou em crise no início da década de 90, Maria da Conceição Correia, que ajudava na facturação aos clientes e no apoio logístico, encarou o problema como uma "oportunidade" para mudar de vida.

Decidiu então abrir uma padaria na localidade de Odiáxere, perto de Lagos, onde reside há 45 anos. Começou por utilizar um pequeno forno tradicional a lenha existente no quintal da sua habitação. Amassava pão duas vezes por semana para o vender no final do dia a pouco mais de uma dezena de pessoas. Mas a agora padeira depressa percebeu que tinha de se modernizar para conseguir ter sucesso no novo negócio.

Hoje, tem uma fábrica ali instalada, onde produz diariamente quase uma tonelada de produtos, não só para a Padaria da D. Conceição, em Odiáxere, de que é proprietária, e mais três estabelecimentos entretanto criados em Lagos, onde dá trabalho a 65 pessoas, como também para supermercados.

'O Pão d'Avó Maria', como foi baptizado, e os bolos secos também de fabrico caseiro confeccionados à base de amêndoa, tornaram-se famosos até no estrangeiro, nomeadamente França e EUA. As especialidades são o pão de forma branco simples, tipo caseiro, com gosto tradicional (o mais consumido), pão de centeio integral, pão com nozes ou passas e amêndoa, pão com torresmos e com chouriço.

"Estou habituada desde os nove anos a fazer pão e bolos caseiros. Naquele tempo, ajudava a minha mãe, uma vez que a minha avó já não podia fazer esse trabalho, e era frequente oferecer esses produtos aos amigos", lembra ao DN Conceição Correia, que diz: "O pão é a paixão da minha vida, e fazê-lo tornou-se até um vício."

Mas, afinal, qual é o segredo do pão caseiro d'Avó Maria ? "É tudo confeccionado ao natural com massa, água, farinha e sal, sem produtos químicos. Come-se bem de um dia para o outro e não apenas na altura em que é fabricado. Nunca utilizo farinhas corrigidas nem conservantes. Para mim, o mais importante é ficar bom. Não penso no dinheiro que posso ganhar, mas sobretudo em apresentar um produto de qualidade, pois sou muito exigente para comigo própria", explica. O preço de um pão é, em média, de 1,60 euros, enquanto os mais pequenos são vendidos por metade do preço. O 'Pão d'Avó Maria' já contribui para uma facturação mensal na ordem dos 95 mil euros.

Há anos, os tripulantes de um veleiro que participaram numa regata de Lagos aos EUA decidiram encomendar-lhe 30 pães, por ser "o único que resistia durante um mês sem se estragar". E ainda recentemente, a empresária recebeu um louvor de emigrantes naquele país, com a imagem da Ponte de S. Francisco, pela confecção de pães e bolos-reis.

"Tenho uma cliente francesa que quando vem a Portugal costuma levar 30 pães integrais para a filha que vive naquele país", refere Conceição Correia, congratulando-se com o facto de aumentar cada vez mais a procura no 'Pão d'Avó Maria' por parte de muitos estrangeiros residentes no Algarve e de portugueses, sempre que se deslocam a esta região.

Apesar do sucesso, a panificadora de Conceição Correia também não escapa à crise. "As pessoas estão a retrair-se um pouco no consumo de pão. Antes, se entendiam que já não estava mole, compravam outro. Agora, já comem como está", diz.

Projectos para expandir a actividade não existem por enquanto. O objectivo é estender o pé à medida do lençol neste negócio, gerido pelo casal e por dois filhos (uma jovem arquitecta e um especialista em agricultura biológica, que estudou na Alemanha). E, acima de tudo, "manter a qualidade dos produtos", conclui Conceição Correia, que trocou o sonho do pai de a ver "doutora" (ficou com o nono ano num curso nocturno) pela arte da fabricar o pão à imagem do antigamente.

DN, 20-6-20
 
O PÃO QUE A CRISE AMASSOU

RITA CARVALHO (Texto)

ASAE e crise. São estas as palavras- -chave que saltam ao ouvido quando se dá voz aos protagonistas do sector do pão, sejam os que o produzem ou o consomem. Porque se come cada vez menos, porque qualquer pastelaria, hipermercado ou até produtor ilegal fabrica pão. Porque aumentou o preço dos cereais e dos combustíveis. E porque a lei, que já trazia grandes exigências a nível de higiene e segurança, agora tem um 'braço armado' para se fazer cumprir: a ASAE, a autoridade que já encerrou mais de uma centena de padarias e trouxe para o domínio público aquilo que o consumidor não queria ver

O PÃO QUE A CRISE AMASSOU

Consumidor e produtor queixam-se da crise que veio para ficar

A opinião é consensual. O pão de mistura é bem mais saboroso e consistente. Sabe mesmo melhor. Mas a sua presença na mesa do pequeno-almoço desapareceu à medida que a família foi crescendo. Hoje, são oito lá em casa e a carcaça, mais seca e inchada, foi a escolhida por Valdemiro e Lina Líbano Monteiro para se juntar diariamente à mesa com os seus seis filhos. Os mimos só chegam com o fim-de-semana: cereais, pão fatiado e até broa de milho.

"Digamos que, fruto da crise do petróleo, há muito tempo que não temos Golden Grahams", diz João, o mais velho dos irmãos, em tom de brincadeira e aproveitando a discussão do tema para lançar a reivindicação e arrancar uma gargalhada aos pais. O aumento do preço dos combustíveis, dos cereais, a quebra do poder de compra e uma crise que há anos vem arrasando o sector da panificação explicam os 40% de subida do preço deste bem essencial em dois anos. E, por arrasto, os 40 a 50% de quebra no consumo registado em apenas três anos.

Esta não é propriamente uma família em dificuldades financeiras. Pai e mãe estão empregados e a aposta numa casa cheia foi devidamente ponderada e planeada. Mas quando são muitas as bocas para alimentar, todas as opções fazem diferença e a contenção começa nos bens elementares (pão e leite), e estende-se aos "luxos" de jantares fora ou viagens de família. A subida do preço do pão multiplica-se pelas 55 carcaças e os dois pães de Mafra adquiridos na padaria do bairro e consumidos semanalmente por Tiago, 4 anos, Catarina, 7, Miguel, 12, Marta, 14, Madalena, 16 e João, 19 e pelos pais. "E eles não comem muito. Isto é apenas para pequenos-almoços e lanches que os mais novos levam para a escola", afirma a mãe, apressando-se a esclarecer que, apesar de serem magrinhos, aqui não se aplica a política de contenção: "Não é porque nós não deixamos!"

Lina diz sentir mais na pele o aumento geral dos produtos alimentares do que a subida nos 10 a 12 euros gastos todas as semanas em pão. Nas compras triviais da semana, os Líbano Monteiro costumavam gastar cerca de 40 euros, agora a conta chega aos 60. Pior do que o pão, foi a despesa com o leite, já marca branca, que, de um dia para o outro, subiu dos 38 para os 60 euros.

São oito e meia de uma manhã diferente. Há visitas ao pequeno-almoço e as férias escolares permitem um ambiente familiar completo e bem disposto na primeira refeição do dia. A mesa está posta com manteiga, doce, leite e chocolate e a mãe está de serviço à torradeira. Enquanto comem, dizem piadas, partilham vivências e Madalena enche o copo de Tiago com leite, fazendo-lhe sinal para limpar os bigodes de leite. Numa família numerosa como esta, as regras passam dos mais velhos para os mais novos. Por exemplo, cabe aos irmãos crescidos ensinar o caminho para a escola e alertar para os perigos, ajudar a gerir os quartos, um de rapazes, outro de raparigas e dar um olho nas crianças.

Padarias antigas estão às moscas

As restrições em casa dos Líbano Monteiro são apenas uma consequência de uma crise mais alargada que começa a montante e se agrava a cada ano que passa. Os produtores tradicionais que não se souberam modernizar foram os primeiros a sofrer com ela, diz Carlos Alberto Santos, presidente da Associação do Comércio e da Indústria da Panificação, Pastelaria e Similares. Em cinco anos, assegura, encerraram 10% das unidades de panificação. "As empresas estão descapitalizadas, os consumidores estão sem poder de compra e a ASAE veio dar a machadada final."

As causas da decadência do sector são diversas, considera. A venda de pão nos hipermercados e em qualquer pastelaria, as leis comunitárias que exigiram grandes investimentos nas condições de produção e comércio, a moda das máquinas de fazer pão em casa e até o que diz ser uma campanha negativa contra este alimento, conotado com o excesso de sal e de peso, deram cabo dos produtores tradicionais. "Mas se não tivéssemos esta crise paralela, que deriva dos combustíveis e dos cereais, os efeitos não seriam tão nefastos", afirma.

Na padaria da Rua das Gáveas, das mais antigas do Bairro Alto, em Lisboa, não é preciso esperar muito tempo para se perceber que o negócio está mau. São 7.25 e apesar de ter aberto a porta há mais de meia hora, dona Florinda ainda não viu ninguém entrar. A rua está praticamente deserta, com apenas uns sobreviventes de uma noite dura a deambular junto aos caixotes do lixo dos becos sujos e mal cheirosos do bairro mais animado da capital.

Carlos Santos é o primeiro freguês do dia e enche o saco que trouxe de casa com cinco carcaças, cinco bolas e um pão grande, que lhe chegam para a semana inteira. Os 3,10 € da despesa são assentes num pedaço de papel, rabiscado em cima do balcão de mármore onde está também uma balança antiga, enquanto cliente e dona Florinda trocam palavras de circunstância. "A senhora é simpática e gosto do pão", diz este morador do bairro antes de sair porta fora e ir à sua vida.

"Ao sábado chego a estar duas horas sem vender um papo-seco", queixa-se dona Florinda, explicando que a crise levou clientes para a padaria de baixo, onde a carcaça sempre é dois cêntimos mais barata. Aos 74 anos, bem disfarçados, esta senhora de cabelo grisalho curto e avental branco, que a viuvez trouxe para trás deste balcão há 22, prossegue as suas tarefas com genica, apesar de continuar com o estabelecimento completamente vazio.

Arruma os bolos, conta as carcaças, ajeita a cortina branca que tapa os cestos, e faz conversa com dona Marinha, que todos os dias aqui vem fazer-lhe companhia, a maior parte do tempo em silêncio, encostada ao balcão. Às tantas pega no telefone e liga para a colega de outro balcão da Panificação Reunida de São Roque. "Estás a vender muito? Já não sei onde pôr os bolos, vão e vêm e não se vendem", confessa, agarrada ao telefone de parede. "Ai meu Deus, vais devolver mais 100 bolas?", continua, comentando ainda com dona Isabel o tamanho das carcaças de hoje e a cor das tranças que, a adivinhar uma distracção do pasteleiro, "parecem africanas".

À uma da tarde será hora de fechar a porta, ir até casa descansar, para regressar antes das 18h, quando reabre com pão fresco. "À tarde vem mais gente, mais pessoas idosas, e estrangeiros. Compram um bolinho de cada tipo, juntando as moedinhas todas. Ainda são mais tesos do que eu!"

Há quem compre só uma carcaça

Na Panificação Mecânica, uma das mais antigas da capital e em pleno bairro de Campo de Ourique, a situação não parece tão gravosa, a adivinhar pela frequência da padaria. Mas também não é famosa, nem augura grandes melhoras, garante António Gaspar, há 30 anos responsável por esta casa que abriu portas no início do século.

"Há muito tempo que se compra menos pão. Mas agora até tenho pessoas que vêm comprar só uma carcaça", desabafa, recordando os tempos em que as carcaças produzidas diariamente passavam as 22 mil e não se ficavam pelas 3500 como agora. Na sua opinião, a dita crise explica-se pelos novos hábitos alimentares, pelo facto de qualquer café.

DN, 28-6-2008
 
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