04 julho, 2008

 

Mário


Cláudio




http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Cl%C3%A1udio

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"QUEM ESCREVE MAL PENSA MAL"

Isabel Lucas

Entrevista.

Mário Cláudio acaba de publicar 'Boa Noite, Senhor Soares', uma novela sobre a adolescência na Lisboa de Bernardo Soares, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, que surge aqui envolto em mistério. A propósito do livro, o escritor fala da inspiração, do acordo ortográfico e do despudor na edição

Este livro desenvolve-se à volta da figura de Bernardo Soares, a partir do olhar de um adolescente que pensa que o talento do poeta pode vir da unha do dedo grande do pé...

(Risos) É o tipo de imagem em que um adolescente pode investir. Lembro-me de na minha adolescência pensar coisas completamente descabeladas sobre as pessoas. Esse rapaz tem uma espécie de temor reverencial pelo poeta, figura longínqua que não sabe bem o que é. Ele ficciona essa identidade, transfigura-a. De repente aparece aquele dedo horroroso a furar a pantufa e ele só tem uma interpretação: é daqui que lhe vem o talento. Numa figura que admira tanto, um dedo do pé horrendo tem de ter um propósito dignificante.

De onde nasceu este adolescente?

Da leitura de um fragmento curto do Livro do Desassossego em que o narrador, o Bernardo Soares, relata a despedida de um rapazinho que trabalha lá no escritório e vai regressar à aldeia; chama-se António como este. Fiquei com a ideia de que podia usar isso para construir um romance em torno da figura do rapaz e lançar um desafio a mim próprio: escrever em torno da adolescência, uma época pouco tratada na nossa literatura.

Esse rapaz não tem nada de heróico...

É um anti-herói. Por isso é uma figura simpática. Os heróis são antipáticos. São pouco humanos.

Inspirei-me em figuras da minha infância e adolescência, sobretudo os caixeiritos, adolescentes que vinham da província para a cidade. Lembrei-me do Manuel Brito, da Galeria 111, que começou a trabalhar numa mercearia. É esse rapaz.

Com algumas diferenças...

Sim, enquanto o Manuel Brito singrou, a este aconteceu o mesmo que à maioria: acabou por naufragar numa existência anódina, medíocre. A maior aventura foi ir a Sevilha numa excursão.

Este livro descreve abundantemente a Lisboa dessa época. Lisboa que ao contrário do Porto não é o seu lugar de escrita. Foi difícil?

Mas é uma cidade a que estou muito ligado. Acho as duas cidades complementares. Nasci no Porto e em relação a Lisboa talvez não sinta a mesma ligação carnal, mas é uma cidade que me oferece propostas de contemplação únicas, lindíssima, muito envolvente pelo seu imaginário, pelo que representa em relação ao país.

Há cuidado em reproduzir a linguagem lisboeta, diferente da do Porto na mesma época.

Sim. A propósito das localizações do lugares, aquela expressão que é um francesismo: rua de qualquer coisa à Estrela; "ele tinha um estabelecimento ao Conde Redondo"... É tipicamente lisboeta. Depois há fenómenos que têm a ver com a idiossincrasia do colectivo que passam por Lisboa e não pelo Porto. O Porto nunca erigiria uma figura como a do Dr. Sousa Martins como ícone a quem se iria pedir coisas. Isso é impossível de imaginar no Porto, que tem uma dimensão muito rural que não se compadece com o espiritismo, fenómeno com origem citadina.

É comum encontrar pistas para escrever nos livros dos outros, como aconteceu neste?

Nos livros não. Nas vidas. Mesmo nas biografias. O Günther Grass diz que qualquer biografia é um romance com notas. A vida que vemos é alguma coisa do que foi, mas é, sobretudo, o que queremos ver. A biografia é uma invenção. Não pode prescindir do existente, mas os espaços vazios são preenchidos pelo biógrafo ao sabor dos seus critérios.

Como é normalmente o seu ritmo de trabalho?

Trabalho muito e muito lento. Não consigo escrever por dia mais de dez páginas manuscritas. É uma escrita muito repetida, muito peneirada. Sou capaz de andar em torno de um problema de pontuação, de uma vírgula, durante horas ou dias.

Sendo tão preocupado com as questões da pontuação e da língua, como tem assistido à discussão em torno do acordo ortográfico?

Com mais perplexidade do que preocupação, até porque não tenciono ser um fiel seguidor de qualquer acordo. Há coisas mais importantes em torno do português do que as ortográficas. Desde logo as de carácter sintáctico. A nossa língua está a ser abastardada. As questões sintácticas têm a ver com o raciocínio, são de carácter mental. As outras têm a ver com cartilha. Quem escreve mal pensa mal e o inverso também é verdadeiro. Escrever e pensar mal são a mesma coisa. E escrever mal não é escrever dança com 's'. É essa ganga do mau pensamento que associo hoje à escrita: gente que pensa mal e que escreve mal.

"Vejo-me, por vezes, como uma antiga mãe de família num prostíbulo"

O Mário Cláudio pertence a um grande grupo editorial (a Leya) que edita todo o tipo de livros. Como olha o que se está a passar no mundo editorial, essa cada vez maior concentração?

Com algum sobressalto, inevitavelmente, mas também com alguma esperança. Acho que as pessoas que estão à frente desses grupos indiscutivelmente apostadas no lucro - é um negócio e é perfeitamente legítimo que estejam apostados nisso - não podem esquecer que estão a lidar com coisas que têm a ver com a vida das pessoas, com o quotidiano, com a formação de mentalidades, com a formação do gosto, com a imagem do País e vão ter forçosamente de privilegiar a qualidade sobre a quantidade. Quer dizer, vão ter de privilegiar os autores sobre os leitores.

Mas assistimos a uma grande dose de publicação. Toda a gente escreve livros.

Isso tem a ver com inconsciência, ignorância, arrogância. Não me preocupo que haja muitos livros publicados. São sobretudo senhoras que não têm muito que fazer, ou se têm muito que fazer gostam muito de escrever. Ouvi uma vez uma dizer que de manhã ficava felicíssima quando se sentava à secretária e escrevia os seus textos e era tudo muito cor-de-rosa. Repudio esse universo. Escrever não é nada disso.

Há falta de pudor em publicar?

Exactamente. Agora o despudor é completo. Acho que há lugar para uma literatura comercial. Não há lugar para a confusão entre as duas e aí a comunicação social tem um papel importante em fazer a triagem, separar uma coisa da outra. A nossa comunicação social ainda não acertou o passo e uma das razões porque é um dos mais fortes segregadores dessa literatura de má qualidade. Nem sequer me estou a referir a figuras que estão dentro da comunicação social, como o Miguel Sousa Tavares, que acho um bom escritor, mas às pessoas que fazem programas de pura diversão, talk- -shows e que só porque têm um nome publicam um livro e intitulam-se logo de escritores.

Como se vê a si no meio desses escritores?

Não sou de puritanismos, mas vejo-me como uma antiga mãe de família se veria num prostíbulo. É um pouco isso.

DN, 4-6-2008
 
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